21.5.22

Gentes deste mundo (8)

 


A caminho de Machu Picchu (Peru), 2004.
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Notícias de um outro mundo

 


ROSSIO, 20.05.2011

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João Bénard da Costa

 


Partiu há 13 anos. O tempo passa depressa.
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20 de Maio: o simbolismo de uma data

 


«Nos anos 1980 a solidariedade portuguesa assinalou de várias formas, no mesmo dia, o direito à autodeterminação de Timor-Leste e do Sara Ocidental. Numa dessas iniciativas, que se tornou memorável, José Afonso juntou a sua voz à dos presentes na Voz do Operário, em Lisboa, ampliando a força das convicções na luta pela justiça a nível internacional.

O 20 de Maio celebrava a formação da ASDT (Associação Social-Democrata Timorense), em 1974, que meses mais tarde se transformaria na Fretilin (Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente). Foi a data escolhida para o reconhecimento internacional da independência do país, em 2002, cujo 20.º aniversário festejamos esta semana. Mas recordava também a realização, em 1973, da primeira acção armada da Frente Polisário (Frente Popular para a Libertação de Saguia El Hamra e Rio de Oro) contra o colonialismo espanhol. Sendo os dois “territórios não-autónomos”, pendentes de descolonização, e constando da lista das Nações Unidas no âmbito da Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e Povos Coloniais (1960), o paralelo era evidente.

Havia mais algumas coincidências. As ditaduras que governavam os dois países colonizadores entraram em colapso em meados da década de 1970, dando origem a processos de democratização: em Portugal, a 25 de Abril de 1974, através de um golpe militar que se transformou numa revolução; em Espanha, por vontade do ditador Franco, através da relegitimação da monarquia constitucional, em 1975. Os dois territórios foram invadidos por um poderoso vizinho, no último trimestre de 1975: o Sara Ocidental pelo Reino de Marrocos, em final de Outubro (a data convencional é 6 de Novembro); Timor-Leste pela República da Indonésia, também a partir de Outubro, com o assalto final a Díli no dia 7 de Dezembro. Ambas as acções foram fortemente condenadas pela ONU. Os respectivos movimentos independentistas, como forma de luta contra a ocupação ilegal dos seus países, proclamaram unilateralmente a independência: a República Democrática de Timor-Leste foi instituída dias antes da conquista pela força de Díli, a 28 de Novembro de 1975; a República Árabe Sarauí Democrática foi consagrada no dia seguinte à total retirada das tropas espanholas, a 27 de Fevereiro de 1976. Em 1984 foi aceite como membro de pleno direito da Organização de Unidade Africana (hoje União Africana).

Em 1991 surgiu um raio de esperança: a Frente Polisário e o Reino de Marrocos assinaram um acordo de cessar-fogo, sob os auspícios da ONU e da OUA, concordando em realizar um referendo de autodeterminação para decidir sobre o futuro do território. Nesse sentido, foi criada a Minurso (Missão de Paz das Nações Unidas para o Referendo no Sara Ocidental) e iniciou-se o processo de identificação do universo eleitoral sarauí. A Resistência timorense, os activistas em vários países que apoiavam a luta pelos direitos do povo de Timor-Leste, festejaram. Era um precedente importante, e poder-se-ia aprender muito.

No mesmo ano de 1991, enquanto o regime marroquino colocava todos os entraves possíveis à elaboração dos cadernos eleitorais, em Timor ocorria o massacre de Santa Cruz, que provocou indignação mundial e deitou por terra um plano negociado durante anos entre Portugal e a Indonésia no sentido da aceitação da soberania indonésia contra promessas, por parte de Jacarta, de respeito pela cultura portuguesa e pela religião católica na sua “27.ª província”. Seguiram-se a prisão de Xanana e o seu mediático julgamento, o reforço dos protestos da juventude timorense, a expansão da solidariedade internacional a todos os continentes e, em 1996, o Prémio Nobel da Paz atribuído a Mons. Ximenes Belo e a José Ramos-Horta. Foi nesse dia, no seu discurso de aceitação, que o bispo timorense afirmou: “Quando um povo escolhe a via não-violenta é frequente ninguém o ouvir”.

Fiel à palavra dada e à confiança na luta política por meios pacíficos, o povo do Sara Ocidental esperou até que a ONU, em 2000, desse por terminado o recenseamento eleitoral. Ao conhecer o resultado, prevendo uma derrota, Marrocos recusou-se a aceitar a realização do referendo. A lógica de Rabat foi então a mesma de Jacarta: em 2007 ofereceu aos sarauís a possibilidade de uma autonomia no quadro do Reino.

O povo timorense teve a oportunidade de escolher, a 30 de Agosto de 1999, entre aceitar ou rejeitar a “autonomia especial integrada na Indonésia”. Sabe-se como, apesar das ameaças, 95% dos eleitores inscritos foram votar, e 78,5% recusaram a autonomia, optando pela independência. Foi precisa clarividência e coragem política de todas as partes e apoio internacional a uma resolução pacífica de um conflito sem saída. As Nações Unidas ganharam credibilidade, Portugal, potência administrante, viveu um momento de unidade nacional lembrado com orgulho e saudade, a Indonésia libertou-se de uma guerra, e a região criou laços de cooperação entre os países que a compõem, a todos os níveis.

No caso do Sara Ocidental, as negociações conduzidas pela ONU não chegaram até hoje ao desfecho que, de acordo com o Direito Internacional, só pode ser um: dar a palavra ao povo sarauí para que ninguém escolha por ele o seu futuro. Consequência de 45 anos de impasse, a guerra entre a Frente Polisário e Marrocos recomeçou em Novembro de 2020, e continua. A procura de uma solução política também.

Ao mesmo tempo, a espiral de violação dos direitos humanos não cessa, porque uma ocupação pela força de um território é isso mesmo que provoca: humilhação e discriminação da população, reacção desta, repressão mais violenta, reforço das convicções e da luta. Um regime que oprime outros povos não aceita liberdades nem críticas em casa. Coerentemente, Marrocos é um regime autocrático, que castiga duramente todas as pessoas, incluindo intelectuais e jornalistas, que ousam pedir justiça.

A inaceitável invasão da Ucrânia levou à condenação generalizada, veemente, e com razão, da Rússia de Putin. O secretário-geral das Nações Unidas disse: “As fronteiras não devem ser redesenhadas a bel-prazer das grandes potências... A Carta das Nações Unidas baseia-se na igualdade soberana de todos os seus membros. Exige ‘o respeito do princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos’. Não podemos permitir que se minem estas normas” (13 de Março de 2022).

Estas e outras afirmações semelhantes, assim como o processo de autodeterminação de Timor-Leste, expõem um problema que se tenta muitas vezes esconder: a prática da política de “dois pesos e duas medidas”, de acordo com interesses circunstanciais.

Saibamos renunciar a ela, é o nosso futuro comum que está em jogo.»

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20.5.22

Gentes deste mundo (7)

 


Monges budistas em Luang Prabang (Laos), 2009.

Centenas de monges saem ao nascer do dia e andam pelas ruas da cidade a recolher oferendas, em espécie ou dinheiro. Em cada família, há todos os dias uma pessoa que reúne o que pode e entrega aos monges, na convicção de que aquilo que é dado alimentará (também) os seus próprios antepassados.
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Boa pergunta

 


Hugo van der Ding no Facebook
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Marcelo e as eternas palhaçadas


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Os números que ninguém sabe

 


«Os números que ninguém sabe «Os exercícios de adivinhação sucedem-se. Se há momento evidente em que os números de infecções com covid não só não são exactos, como estão muitíssimo abaixo da realidade, é este.

Curiosamente, como no passado, não assistimos ao desfile de negacionistas ou de elementares agentes da iniciativa económico-liberal a contestar números e percentagens. Agora, quando os números são mera numerologia ou uma espécie de ciência oculta, a desobrigatoriedade das máscaras em espaços fechados faz o seu serviço e deixa auto-satisfeitos e felizes os arautos da falta de empatia. É só mais uma gripezinha, dizem. E será. Quando for. Entretanto, os números da mortalidade continuam altos, a pressão hospitalar aumenta, muitos dos serviços médicos têm boa parte dos seus profissionais doentes e sem poder trabalhar, sectores económicos (como a restauração) pedem o regresso das máscaras nos seus espaços, o almirante Gouveia e Melo diz-se disponível para uma nova "task force", o país assiste sem mexer a uma explosão de novos casos todos os dias. Para aqueles que se convenceram que o "novo normal" já tinha chegado, está mesmo tudo normal. Para alguns, basta não sentirem uma máscara na cara para tudo estar bem. Para outros, basta que não se fale em vacinas e novas doses. Como estaríamos, agora, se o anterior Governo minoritário de António Costa se comportasse como o novo Governo maioritário de António Costa?

A ausência de reacção de Marta Temido ao aumento exponencial de infecções é um acto político e não de saúde pública. Contrasta em absoluto com os cuidados apurados (e, em determinados momentos, até excessivos) que revelou no passado. Perante os números actuais, já é difícil compreender que o abandono das máscaras em espaços fechados com grande concentração de pessoas tenha sido mantido até agora, sem um piscar de olhos. Mas é inaceitável este entendimento, quando se suspeita que a esmagadora maioria dos novos casos de covid nem sequer consta dos números oficiais, já que boa parte das pessoas - sobretudo à custa da extraordinária adesão às vacinas - apresenta sintomas ligeiros ou se encontra assintomática, não se declarando oficialmente com covid. A gravidade da doença é, obviamente, menor mas a transmissibilidade aumenta. A linha SNS24 está a rebentar pelas costuras, mas só não explode porque a maioria das pessoas nem sequer liga.

Portugal abandonou a maioria das restrições em Fevereiro e deixou de considerar a máscara como obrigatória quando a mortalidade estava acima do limiar de 20 por milhão de habitantes a 14 dias, como definido pelo Centro Europeu de Controlo e Prevenção de Doenças (ECDC). Este ano, temos cerca de 20 vezes mais casos e quase 5 vezes mais óbitos do que no mesmo período do ano passado (Abril assistiu a cinco vezes mais mortes do que em Abril de 2021). A taxa de letalidade é menor mas continua a morrer muita gente. Demasiada gente. Não são necessários isolamentos, nem a economia tem de fechar para que haja coragem de voltar atrás, maior contenção e alguma empatia.»

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19.5.22

Gentes deste mundo (6)


 

Uma menina de Mandalay, (Birmânia), 2009.
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19.05.1975 - O «caso República» que fez cair um governo

 


O chamado «Caso República» teve o seu início crítico no dia 19 de Maio de 1975, embora as hostilidades internas, entre a Comissão Coordenadora de Trabalhadores (CCT) gráficos e dos serviços administrativos de um lado, e a Administração e a chefia de Redacção do outro, tivessem já começado nos primeiros dias do mês.

Na manhã de 19, a CCT decidiu suspender do exercício das suas funções a Administração e a chefia de Redacção, acusando-as de estarem a tentar transformar o jornal num órgão afecto ao Partido Socialista. As instalações do jornal foram ocupadas pelos trabalhadores e a edição desse dia saiu com uma constituição diferente.

O PS organizou imediatamente uma manifestação de apoio à antiga direcção, no Largo da Misericórdia (com a presença, entre outros de Mário Soares, Salgado Zenha e Manuel Alegre), a multidão foi engrossando e gritaram-se palavras de ordem contra o PCP, Álvaro Cunhal e MFA.

Quem estiver interessado nos detalhes desta saga, que foi um marco no PREC dois meses depois do seu início, pode ler um detalhado resumo dos acontecimentos.

O República acabou por estar fechado durante algum tempo e reapareceu nas bancas em 10 de Julho, constituído maioritariamente por elementos das forças armadas e de uma certa esquerda radical. Como consequência destes factos, no dia 7 de Julho, o PS abandonou o IV Governo provisório (o mesmo acontecendo pouco depois com o PPD / PSD) que acabou por cair no dia 17 do mesmo mês.
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Supremacia branca: a grande mentira

 


«Roberta, Celestine, Pearl, Heyward, Katherine, Geraldine, Ruth, Aaron, Andre, Margus tinham entre 32 e 86 anos. Eram avós, tias, mães, pais, filhas, ativistas, professoras, cuidadoras, taxistas, seguranças. Pessoas amadas. Pessoas negras. Assassinadas há poucos dias por um terrorista supremacista branco em Buffalo, nos Estados Unidos. Vítimas do ódio racial. Vítimas de uma grande mentira: a supremacia branca. E de várias outras grandes mentiras que a sustentam.

O terrorista assassino escreveu um manifesto de 180 páginas no qual afirma ser racista porque acredita na diferença de capacidades entre raças. Partilha vários memes racistas que animalizam as pessoas negras e vários pseudo-estudos que demonstram a sua inferioridade. O terrorista acredita na teoria conspirativa da “Grande Substituição”, outra grande mentira. Teme que a sua “raça branca” seja substituída e diz ter até equacionado matar-se tal era o desespero. Em vez disso, preferiu matar outros. Matar o máximo de negros possível. Para isso preparou a sua performance macabra difundida em direto na Internet, e escreveu no manifesto um modus operandi para influenciar outros, tal como ele próprio foi influenciado.

É um lobo solitário. Outra mentira. Este assassino assumidamente racista, mas também antissemita e transfóbico, reivindica a pertença a uma comunidade. Uma comunidade internacional de supremacistas brancos. Ele não quer só salvar os americanos brancos, quer salvar a raça branca no mundo. E para isso incita outros à ação. “O lobo solitário não existe”, afirma a investigadora da evolução dos movimentos nacionalistas brancos, Seyward Darby, num artigo da Time, pondo também em causa a explicação da doença mental: “Racismo e supremacia branca não são doenças mentais, são comportamentos que se aprendem. Dizer isto é uma forma de as pessoas em posições de privilégio e poder se consolarem, pensando não ter aqui qualquer responsabilidade”.

A responsabilidade. De quem é a responsabilidade? Primeiro do autor, claro está. Foi capturado ileso apesar de estar fortemente armado graças a “técnicas de desescalada” utilizadas pelos agentes, segundo as declarações do comissário de polícia de Buffalo, Joseph Gramaglia. Técnicas estas que parecem inexistentes na detenção de pessoas negras desarmadas mortas pela polícia, como George Floyd ou Michael Brown.

O terrorista vai ser julgado, mas a responsabilidade não é só dele. A teoria da “Grande Substituição” tem os seus embaixadores. Nos EUA, um dos maiores porta-vozes desta teoria é Tucker Carlson, animador vedeta ultraconservador da Fox News. O Tucker Carlson Tonight, emitido cinco vezes por semana, é um megafone para todo o tipo de teorias conspirativas, de combate à “teoria crítica da raça” ou à inventada “teoria do género” e também de propaganda pro-Kremlin, sendo difundido e aplaudido na televisão estatal russa - “Cada vez mais os seus interesses correspondem aos nossos”, afirma a apresentadora Olga Skabeeva. O The New York Times analisou mais de mil episódios do Tucker Carlson Tonight dos últimos cinco anos e concluiu que existe uma omnipresença da teoria da “Grande Substituição” e do “racismo antibranco”. No seguimento desta investigação, um artigo do Le Monde refere que Tucker Clarson chegou a ser enaltecido por David Duke, cabeça dirigente do Ku Klux Kan, sugerindo num tweet que Trump o escolhesse como vice-presidente, e ainda que Andrew Anglin, neonazi, supremacista branco, editor do The Daily Stormer, afirmou sobre Clarson: “Literalmente o nosso melhor aliado”.

Os holofotes estão neste momento direcionados para os EUA e o caso está a ser tratado por muitos como “terrorismo doméstico”, esquecendo a sua dimensão internacional, esquecendo que o terror pretendido não é só direcionado para os negros do país. Esquecendo ainda que o termo “Grand Remplacement” foi criado e promovido por um ideólogo francês Renaud Camus, apesar de se ter inspirado de outras fontes, e foi, tal como no caso de Carlson, amplamente difundido por Éric Zemmour, também ele com direito a voz num programa sem real contraditório, durante anos, quatro vezes por semana, no canal de extrema-direita CNews. Zemmour, outro admirador de Putin, é o maior porta-voz da grande mentira do “Grand Remplacement” em França e foi ainda mais longe porque criou o partido “Reconquista”, lançando-se na corrida à presidência da República.

Portugal, país de brandos costumes, do festivo encontro luso-tropical entre povos, com uma Constituição robusta antifascista apresenta-se como estando imune a estes movimentos internacionais supremacistas, a estas grandes mentiras. Há por aqui um ou outro criminoso neonazi, é verdade, mas até têm bom fundo e merecem ser acompanhadas pelo Ministério Público na luta contra terríveis antirracistas. Mas a verdade é que Portugal não está imune.

André Ventura, a 14 de outubro de 2021, levou para dentro da Assembleia da República a grande mentira da substituição demográfica, a mesma que levou ao assassinato destas dez pessoas negras. Afirmou: “Há um problema estrutural, não só em Portugal como na União Europeia, que se chama substituição demográfica (…). A verdade é só uma, a UE no seu conjunto tem vindo a ser substituída demograficamente por filhos de imigrantes (…), é um problema que a Europa tem de enfrentar, porque ninguém quererá que daqui a vinte anos a Europa seja composta maioritariamente por indivíduos vindos de outros continentes”. No texto que acompanha a publicação Facebook do vídeo desta intervenção, André Ventura escreve “Substituição demográfica – Algum dia teria de se falar no Parlamento da perigosa substituição demográfica que está em curso em Portugal e na Europa. Ontem foi o dia!”.

Pedro dos Santos Frazão, deputado do Chega, partilha também o vídeo com um emoji de uma bomba e de uma explosão e escreve “Pela primeira vez no Parlamento Português ouve-se falar da grande substituição populacional que ocorre na Europa – este é O (a maiúscula está no texto) assunto político do século XXI que todos querem ignorar! E esta questão é totalmente de vida ou morte, literalmente!!”

Frazão, quando diz que é uma questão de vida ou morte, não está errado, mas quem morre, ou melhor, quem é morto são pessoas negras, latinas, muçulmanas, judias, brancas aliadas ou que estavam no lugar errado e no momento errado, por esse mundo fora, da Nova Zelândia aos EUA. O terrorista supremacista branco, por enquanto, está preso. Como se responsabilizam os instigadores? O medo é uma arma e as grandes mentiras também.»

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18.5.22

Gentes deste mundo (5)

 


Pegadas nossas nos confins dos Himalaias Orientais. Darjeeling (Índia), 2010.
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E hoje é já outro dia

 

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Coreia do Norte



 

Se estava a planear férias para estas paragens, talvez seja melhor mudar de planos...

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Devemos entregar a presidência do Tribunal Constitucional à extrema-direita?

 


«Deitando água na fervura, o Presidente veio a terreiro explicar que uma futura alteração da lei do aborto será inviável, pois o tema “deixou de existir como questão em Portugal”. O contexto não parece favorecer essa convicção tranquilizante: o Supremo Tribunal dos EUA está prestes a anunciar a anulação do acórdão de 1973 que aceitava a constitucionalidade do aborto e, como sempre na nossa era, é nesse país que se levanta a vaga que atravessa o mundo. E, mesmo no nosso recanto, a ministra da Saúde, que não é suspeita de transigência na matéria, meteu-se numa alhada sobre o assunto, chegando a misturar a dramatização dos efeitos do aborto, para explicar uma bizarra bonificação salarial aos médicos de família que o evitassem, e uma não menos estranha insensibilidade ao comparar o direito ao aborto ao direito a fumar.

Talvez por causa deste nevoeiro ameaçador, o Presidente escolheu discutir a sua memória pessoal e dar a entender, mesmo que por meias palavras, que, depois de uma longa resistência anteriormente bem sucedida, se tinha enganado ao votar no referendo contra a legalização do aborto, ou que as suas razões caducaram perante a realidade comprovada pela prática de uma medida elementar de saúde pública.

Entretanto, o assunto mereceu este regresso ao passado por uma circunstância surpreendente: o Tribunal Constitucional estará a concluir, se não tiver concluído, o processo de cooptação de um novo juiz indicado pela ala direita da instituição, que poderá vir a ser a ser o seu próximo presidente, e o indicado, António Almeida Costa, seria o mais trumpista dos mandatários do Palácio Ratton, tendo-se destacado precisamente pela recusa do direito de escolha pela mulher.

Foi o DN que investigou o percurso do candidato, citando, entre outros, uma sua publicação de 1984 – que o autor, passadas quase três décadas, nem refuta nem corrige – em que apresenta a doutrina da proibição do aborto, a não ser na única exceção em que a vida da mãe esteja em risco e o feto seja inviável. No entanto, é quanto ao aborto em caso de violação que a sua teoria constitucional melhor se revela, e é um monumento com requintes explicativos que merecem um estudo de motivação. Em primeiro lugar, diz Costa, citado pelo DN em detalhe, são “os casos de gravidez proveniente de violação muito raros”, pelo que “no plano jurídico, e dentro da boa técnica legislativa, tal circunstância afasta, desde logo, a indicação ética ou criminológica como fundamento para a legalização do aborto”. Esta noção da raridade do crime para justificar a ignorância das suas consequências é curiosa.

Mas mais curioso ainda é como Costa chega ao metódico cálculo da raridade da gravidez causada por violação. Escreve ele: “o próprio ciclo de fertilidade da mulher faz com que a concepção só se possa verificar durante um período de um ou dois dias e, mesmo aí, apenas com 10% de possibilidades”, ou seja, a probabilidade de o violador provocar uma gravidez poderia ser calculada entre 0,3 e 0,6%. E continua o nosso jurista: “depois, na larga maioria das violações não se verifica um coito completo”.

Suponho que ninguém lhe explicou como é a vida mas, na sua teoria das probabilidades, a “maioria” dos casos com coito incompleto deveria baixar as probabilidade para quanto? Ponhamos metade, 0,15 a 0,3%, para respeitar este pensamento original. Há mais: “em terceiro lugar, investigações médicas demonstraram que um forte choque emocional, como o que resulta da violação, altera o ciclo menstrual da mulher, impedindo ou interrompendo a ovulação - pelo que, mesmo que ocorra no período de fertilidade, a cópula tem poucas probabilidades de conduzir a uma gravidez”, ou seja, mesmo que haja ovulação e que o violador tenha acertado no dia, o milagre do medo anulará a gravidez.

E ainda mais: “finalmente, fatores ligados ao próprio violador diminuem ainda mais a possibilidade de aquela se vir efetivamente a verificar”, dado que “a experiência (Qual experiência? De quem? É melhor nem perguntar) demonstra que, muitas vezes, o violador é, ele próprio, estéril devido a outros comportamentos sexualmente aberrantes.”

Portanto, baixa probabilidade, com a ovulação a desaparecer e o sexualmente aberrante violador a tender para estéril, zerou o crime. Isto é o que se pode chamar uma elaboração doutrinária de um grande jurista, fundamentando que, perante tão escassa probabilidade, a violação, a resultar numa rara gravidez, deve ser consumada pela obediência da mulher, que será punida em caso de aborto.

Se há algo de patético nesta argumentação tormentosa, convém considerar que os direitos da mulher passaram a ser uma das definições da democracia e que não é de racionalidade nem de Direito Constitucional que se trata nesta batalha, mas de convocar uma emoção politicamente arrasadora, a saudade da ordem que inferioriza a mulher. E há uma lição na persistência da extrema-direita, ao criar uma identidade em torno da violência contra a mulher: os seus dirigentes estão convencidos de que esse rasgão na sociedade, evocando os seus fantasmas, tem uma útil função identitária e é eleitoralmente mobilizadora a longo prazo.

É certo que, no imediato, os resultados são contraditórios, Trump perdeu graças aos votos das mulheres e o anunciado ataque pelo Supremo Tribunal parece fazer renascer as esperanças dos democratas para as eleições intercalares do outono. No entanto, em Espanha e Portugal o crescimento do Vox e do Chega estão associados a um voto predominantemente masculino e, no primeiro caso, a rejeição dos direitos das mulheres passou a ser um manifesto político, ao ponto de a anulação da lei contra a violência de género ter sido a primeira condição para o acordo da extrema-direita com o Partido Popular no governo de Castela e Leão - e a condição foi aceite.

A estratégia da polarização deste supremacismo macho, ou da “coutada do macho ibérico”, como escreveu um juiz português numa sentença a desculpabilizar uma violação, é vista pela extrema-direita como uma parte importante da afirmação dos seus valores reacionários. A sua estratégia é tentar levantar a seu favor a história da civilização que ignorou a democracia e que colocou a mulher no lugar da subalternidade.

O Washington Post publicou esta segunda-feira um estudo que mostra que já um em cada cinco dos deputados e eleitos estaduais republicanos faz parte de uma rede ou de uma milícia da extrema-direita. A identidade em torno da proibição do aborto é talvez o fator comum mais forte nesta mainstreamização republicana da extrema-direita e esta vaga chegará sempre a Portugal. Ou já desembarcou e só agora nos vamos apercebendo de onde quer colocar a sua bandeira. Se os juízes do Tribunal Constitucional cooptarem António Almeida Costa e eventualmente o elegerem presidente, daremos um passo de gigante neste sentido.»

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17.5.22

Gentes deste mundo (4)

 


Oração numa das onze igrejas escavadas na rocha no século XII. Lalibela (Etiópia), 2013.
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17.05.2013 – A morte de um carrasco: Jorge Videla

 


Foi há nove anos que morreu Jorge Videla que governou a Argentina entre 1976 e 1983 e que foi responsável por mais de 30.000 mortos ou desaparecidos. Condenado em 2010 a prisão perpétua, viu a sua pena aumentada em mais 50 anos, em Julho de 2012, por ter dirigido uma rede que roubava bebés de prisioneiros políticos.

Por ocasião da sua morte, num artigo intitulado «Nem Freud imaginou isto», Simone Duarte resumiu bem o drama de algumas destas crianças: «É este o legado do general Videla. Uma geração que desapareceu. Outra que ficou sem saber quem era. E está até hoje a tentar descobrir».
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Joe Berahahahardo

 


«Como não percebo muito de finanças, agradeço quando a realidade me apresenta os problemas de forma simples. De acordo com os jornais, Joe Berardo devia cerca de €900 milhões aos bancos. Agora, pede uma indemnização de cerca de €900 milhões aos bancos. Ou seja, trata-se de um “quem diz é quem é” financeiro. Neste caso, quem diz que eu devo 900 é que me deve 900. Manobras financeiras complexas eu não tenho capacidade para compreender; pirraça infantil entendo perfeitamente.

Alguma coisa grave se passou com Joe Berardo, isso é certo. Na comissão parlamentar de inquérito ele era um fanfarrão sem qualquer bem em seu nome que não tinha nada a perder e ria na cara dos deputados. Na acção que esta semana interpôs em tribunal é um desgraçado que perdeu tudo e exige €100 milhões de euros só em compensação por danos morais. Este é o aspecto mais intrigante do processo. Se uma pessoa parte loiça numa loja de porcelana, é natural que tenha de desembolsar uma indemnização elevada. Mas se causa danos numa loja dos 300 talvez faça menos despesa. Ora, exigir €100 milhões por danos morais significa que os bancos foram capazes de fazer estragos na moralidade de Joe Berardo naquele valor. Revela especial perfídia da parte dos bancos. Encontrar a moralidade de Joe Berardo já deve ter sido difícil. Deixá-la 100 milhões de euros pior do que a encontraram requereu, em princípio, um esforço destruidor absolutamente selvagem. Segundo o processo, a conduta dos bancos provocou em Berardo “indescritível sofrimento e profunda depressão, com reflexos de dramático agravamento do seu processo de envelhecimento físico e mental”. Ou seja, os bancos facilitaram-lhe o crédito para lhe dificultar a vida. Não há dúvida de que estas instituições financeiras têm um plano adaptado a cada cliente. Em geral, é quando nos dificultam o crédito que nos transtornam. Com Berardo, optaram pela estratégia inversa: beneficiaram-no para o prejudicar. Pessoalmente, fico a torcer para que os bancos sejam condenados a pagar a Berardo, se não a indemnização completa, ao menos a compensação por danos morais. €100 milhões é uma quantia que permitirá a Berardo reconstruir algum do seu edifício moral. Sugiro, por exemplo, investir num pouco de vergonha.»

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16.5.22

Gentes deste mundo (3)

 


Mulheres uzbeques muçulmanas e os seus belos vestidos coloridos. Samarcanda (Uzbequistão), 2011.
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Ucrânia, mitos e factos

 

«Tem estado a ser partilhado um texto intitulado “Ucrânia: Com mais 11 partidos banidos, 44% do eleitorado não tem representação”. Na realidade, não só o número real é 10% como apenas três destes 11 partidos concorreram às últimas eleições – e um deles não conseguiu eleger nenhum deputado.» 


Ler o artigo da Visão AQUI.
.umum

16.05.1958 - Chegada de Humberto Delgado a Santa Apolónia

 


Em 16 de Maio de 1958, vindo do Porto, Humberto Delgado foi alvo de uma grande manifestação de apoio em Santa Apolónia, violentamente reprimida pela polícia.

Ver mais AQUI.
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Xangai, uma cidade inteira à janela

 


«São impressionantes as imagens que nos chegam de uma das cidades mais cosmopolitas da China. Xangai é uma espécie de Nova Iorque do futuro. Percorrer as ruas daquela urbe é um autêntico banho de inovação, de arquitetura vanguardista, de tecnologia e de ambiente internacional de negócios. Mas hoje parece ter entrado num túnel que a forçou a uma viagem ao passado. Uma das metrópoles mais importantes do mundo vê-se debaixo do uso e abuso da autoridade e da força bruta.

No mesmo país onde se fabrica a mais alta tecnologia, os direitos humanos são ainda uma miragem em muitas situações. Nesta cidade da China, os trabalhadores de uma fábrica da marca Apple saíram à força das instalações da empresa onde estavam obrigados a viver e trabalhar para que a empresa nunca parasse as linhas por qualquer contágio de covid-19. Solução encontrada: detê-los nas instalações. As medidas de controlo de covid-19 em Xangai ultrapassam qualquer filme de ficção científica. Por toda a cidade têm ocorrido episódios de violência e revolta.

Exaustos e enclausurados há semanas, os habitantes de Xangai estão fartos de ficarem presos em fábricas e casas. A falta de comida começa a ser dramática. Os relatos evidenciam a escassez até de bens essenciais. O governo estará alegadamente a controlar todos os locais onde há armazenamento de comida e só permite que chegue à população o que bem atende, comentam os populares. Apontam ainda que os mais ricos e as pessoas do partido estarão a ser beneficiados em quantidade de alimentos, em detrimento dos mais pobres. Acusam as autoridades de injustiça social e limitação das liberdades individuais.

Muitos saem à rua, protestam e logo são reprimidos de forma dura pelas autoridades. Outros, muitos outros milhões, vão às varandas e janelas e batem em tachos e panelas como forma de manifestação ruidosa. A já apelidada "revolta das panelas" tem ocorrido à noite e o governo chinês tenta deitar as culpas nos estrangeiros por essas manifs, quais perigosos seres que pretendem usar a liberdade de expressão e de movimentos! O acesso a plataformas digitais e redes sociais tem sido a grande arma dos residentes que, através desses meios, têm organizado os protestos.

As autoridades voltaram a apertar as regras de confinamento no âmbito da tolerância zero à covid. Por exemplo, os infetados são levados à força para alegados centros de recuperação. O governo considera estar a agir legalmente para controlar a doença, mas o mesmo governo teme o barulho de tachos e panelas.»

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15.5.22

Gentes deste mundo (2)

 


Um herdeiro da Civilização Maia. Iximché (Guatemala), 2014.
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Cadastrado

 

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Ucrânia: quais os deveres da China?

 

«Scholz, Macron e o conjunto da liderança europeia têm de ir mais longe e confrontar sem ambiguidades Xi Jinping: que pretende a China fazer para contribuir com todo o seu peso político e económico para que a Rússia de Vladimir Putin cesse as hostilidades e respeite a soberania do seu vizinho? As videoconferências têm de ser mais exigentes e explorar o que significam, na prática, as grandes declarações de princípios. A gravidade da situação internacional requer um diálogo que vá além do faz-de-conta.

A China, para além do seu estatuto de membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, é uma potência global, por muito que isso custe a alguns dirigentes ocidentais. Ambas as realidades, em Nova Iorque e no mundo, dão à China direitos e responsabilidades. E no caso da violação da soberania da Ucrânia, a China tem o dever de contribuir ativamente para o regresso da paz e da lei internacional. Não pode utilizar o argumento de que se trata apenas de um problema europeu e que por isso cabe aos europeus resolvê-lo.»

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Pobreza: mitigar e erradicar



 

«Todas as promessas de desenvolvimento do país não passarão de falácia se não forem resolvidos problemas estruturais que geram e ancoram a pobreza.

As duras realidades deste flagelo exigem da sociedade todos os esforços possíveis para mitigar os seus efeitos e atenuar a sua ampliação. Contudo, a erradicação da pobreza, objetivo que todos os portugueses deviam assumir, exige um combate corajoso com políticas estruturais que eliminem as suas causas.

Nas notas de apresentação do seu Congresso a "EAPN Portugal - Rede Europeia Anti Pobreza", começa por afirmar "A pobreza vive de mão dada com o desemprego, a instabilidade laboral, a ausência de recursos financeiros, as dificuldades no acesso à educação e à saúde e a má qualidade da habitação" e lembra-nos que com "a pandemia da covid-19" e nos "períodos de crise socioeconómica todos estes fatores se agravam, juntamente com o estigma, a vergonha, a discriminação e a exclusão".

Já aqui afirmei e hoje repito: os portugueses são vergonhosamente condescendentes com a pobreza. Têm acreditado que bastam solidariedades de emergência, políticas públicas de "reparação de danos" e de gestão mais humanizada da situação dos pobres. Não. Isso pode e deve ser feito, mas apenas mitiga sofrimentos. Grande parte das políticas especificamente dirigidas aos pobres são políticas paupérrimas. São os não pobres, e em particular os mais ricos, aqueles que estão em condições de retirar os pobres da condição de pobreza. O Estado deve favorecer um combate cultural e políticas públicas com o objetivo da erradicação. Com autoridade democrática, deve impor ao poder económico políticas laborais mais justas e garantir melhor distribuição da riqueza.

O segundo dos quatro seminários do congresso da EAPN Portugal decorre hoje mesmo na Universidade de Aveiro, sob o tema "Trabalho, Pobreza e Desigualdades". O "Documento Temático" de apoio ao debate dá-nos um preocupante retrato da pobreza que atinge uma enorme fatia dos trabalhadores portugueses, e identifica as suas causas.

Temos trabalhadores pobres porque: 1) os salários da esmagadora maioria dos trabalhadores são baixíssimos e os de muitas mulheres ainda mais; 2) muitos não conseguem trabalho a tempo inteiro ou estão em trabalho informal; 3) milhares de desempregados e vários grupos sociais não têm a necessária proteção social; 4) as políticas austeritárias transferiram rendimentos do trabalho para o fator capital; 5) a desvalorização salarial e das profissões continua utilizada como variável de ajustamento da economia; 6) não se valoriza suficientemente o saber fazer em múltiplas atividades; 7) tem-se destruído a contratação coletiva; 8) existem milhares de trabalhadores em situações de vulnerabilidade e os empresários e o Estado não estão preparados para reconhecerem as suas capacidades; 9) as condições de trabalho existentes não asseguram proteção integrada nos planos material, físico e psicológico; 10) os custos da habitação e a dificuldade em aceder a direitos fundamentais são insuportáveis; 11) são demolidores os efeitos da precariedade nos planos salarial, da proteção/segurança social, das qualificações, da solidariedade entre gerações.

O combate à pobreza deve focar-se no objetivo da sua erradicação e não no da mitigação de efeitos. O atual Governo tem condições políticas para fazer essa mudança de agulha. Será imperdoável que não o faça.»

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