«Deitando água na fervura, o Presidente veio a terreiro explicar que uma futura alteração da lei do aborto será inviável, pois o tema “deixou de existir como questão em Portugal”. O contexto não parece favorecer essa convicção tranquilizante: o Supremo Tribunal dos EUA está prestes a anunciar a anulação do acórdão de 1973 que aceitava a constitucionalidade do aborto e, como sempre na nossa era, é nesse país que se levanta a vaga que atravessa o mundo. E, mesmo no nosso recanto, a ministra da Saúde, que não é suspeita de transigência na matéria, meteu-se numa alhada sobre o assunto, chegando a misturar a dramatização dos efeitos do aborto, para explicar uma bizarra bonificação salarial aos médicos de família que o evitassem, e uma não menos estranha insensibilidade ao comparar o direito ao aborto ao direito a fumar.
Talvez por causa deste nevoeiro ameaçador, o Presidente escolheu discutir a sua memória pessoal e dar a entender, mesmo que por meias palavras, que, depois de uma longa resistência anteriormente bem sucedida, se tinha enganado ao votar no referendo contra a legalização do aborto, ou que as suas razões caducaram perante a realidade comprovada pela prática de uma medida elementar de saúde pública.
Entretanto, o assunto mereceu este regresso ao passado por uma circunstância surpreendente: o Tribunal Constitucional estará a concluir, se não tiver concluído, o processo de cooptação de um novo juiz indicado pela ala direita da instituição, que poderá vir a ser a ser o seu próximo presidente, e o indicado, António Almeida Costa, seria o mais trumpista dos mandatários do Palácio Ratton, tendo-se destacado precisamente pela recusa do direito de escolha pela mulher.
Foi o DN que investigou o percurso do candidato, citando, entre outros, uma sua publicação de 1984 – que o autor, passadas quase três décadas, nem refuta nem corrige – em que apresenta a doutrina da proibição do aborto, a não ser na única exceção em que a vida da mãe esteja em risco e o feto seja inviável. No entanto, é quanto ao aborto em caso de violação que a sua teoria constitucional melhor se revela, e é um monumento com requintes explicativos que merecem um estudo de motivação.
Em primeiro lugar, diz Costa, citado pelo DN em detalhe, são “os casos de gravidez proveniente de violação muito raros”, pelo que “no plano jurídico, e dentro da boa técnica legislativa, tal circunstância afasta, desde logo, a indicação ética ou criminológica como fundamento para a legalização do aborto”. Esta noção da raridade do crime para justificar a ignorância das suas consequências é curiosa.
Mas mais curioso ainda é como Costa chega ao metódico cálculo da raridade da gravidez causada por violação. Escreve ele: “o próprio ciclo de fertilidade da mulher faz com que a concepção só se possa verificar durante um período de um ou dois dias e, mesmo aí, apenas com 10% de possibilidades”, ou seja, a probabilidade de o violador provocar uma gravidez poderia ser calculada entre 0,3 e 0,6%. E continua o nosso jurista: “depois, na larga maioria das violações não se verifica um coito completo”.
Suponho que ninguém lhe explicou como é a vida mas, na sua teoria das probabilidades, a “maioria” dos casos com coito incompleto deveria baixar as probabilidade para quanto? Ponhamos metade, 0,15 a 0,3%, para respeitar este pensamento original. Há mais: “em terceiro lugar, investigações médicas demonstraram que um forte choque emocional, como o que resulta da violação, altera o ciclo menstrual da mulher, impedindo ou interrompendo a ovulação - pelo que, mesmo que ocorra no período de fertilidade, a cópula tem poucas probabilidades de conduzir a uma gravidez”, ou seja, mesmo que haja ovulação e que o violador tenha acertado no dia, o milagre do medo anulará a gravidez.
E ainda mais: “finalmente, fatores ligados ao próprio violador diminuem ainda mais a possibilidade de aquela se vir efetivamente a verificar”, dado que “a experiência (Qual experiência? De quem? É melhor nem perguntar) demonstra que, muitas vezes, o violador é, ele próprio, estéril devido a outros comportamentos sexualmente aberrantes.”
Portanto, baixa probabilidade, com a ovulação a desaparecer e o sexualmente aberrante violador a tender para estéril, zerou o crime. Isto é o que se pode chamar uma elaboração doutrinária de um grande jurista, fundamentando que, perante tão escassa probabilidade, a violação, a resultar numa rara gravidez, deve ser consumada pela obediência da mulher, que será punida em caso de aborto.
Se há algo de patético nesta argumentação tormentosa, convém considerar que os direitos da mulher passaram a ser uma das definições da democracia e que não é de racionalidade nem de Direito Constitucional que se trata nesta batalha, mas de convocar uma emoção politicamente arrasadora, a saudade da ordem que inferioriza a mulher. E há uma lição na persistência da extrema-direita, ao criar uma identidade em torno da violência contra a mulher: os seus dirigentes estão convencidos de que esse rasgão na sociedade, evocando os seus fantasmas, tem uma útil função identitária e é eleitoralmente mobilizadora a longo prazo.
É certo que, no imediato, os resultados são contraditórios, Trump perdeu graças aos votos das mulheres e o anunciado ataque pelo Supremo Tribunal parece fazer renascer as esperanças dos democratas para as eleições intercalares do outono. No entanto, em Espanha e Portugal o crescimento do Vox e do Chega estão associados a um voto predominantemente masculino e, no primeiro caso, a rejeição dos direitos das mulheres passou a ser um manifesto político, ao ponto de a anulação da lei contra a violência de género ter sido a primeira condição para o acordo da extrema-direita com o Partido Popular no governo de Castela e Leão - e a condição foi aceite.
A estratégia da polarização deste supremacismo macho, ou da “coutada do macho ibérico”, como escreveu um juiz português numa sentença a desculpabilizar uma violação, é vista pela extrema-direita como uma parte importante da afirmação dos seus valores reacionários. A sua estratégia é tentar levantar a seu favor a história da civilização que ignorou a democracia e que colocou a mulher no lugar da subalternidade.
O Washington Post publicou esta segunda-feira um estudo que mostra que já um em cada cinco dos deputados e eleitos estaduais republicanos faz parte de uma rede ou de uma milícia da extrema-direita. A identidade em torno da proibição do aborto é talvez o fator comum mais forte nesta mainstreamização republicana da extrema-direita e esta vaga chegará sempre a Portugal. Ou já desembarcou e só agora nos vamos apercebendo de onde quer colocar a sua bandeira. Se os juízes do Tribunal Constitucional cooptarem António Almeida Costa e eventualmente o elegerem presidente, daremos um passo de gigante neste sentido.»
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