26.6.21

Será? Ou nem assim?

 

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Maria Velho da Costa



 

Seriam 83, hoje.

“Porque eu dormia e vieram contar-me que tudo era possível, já. Porque eu sonhava e vieram dizer-me a liberdade, já.»
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Sevilha: não sei se ria ou se chore



 

Só agora é que soube?
«Marcelo Rebelo de Sousa optou por não se deslocar a Sevilha atendendo à situação epidémica na Andaluzia.»

Lê-se e custa a engolir em seco:
«Numa nota, o gabinete do presidente da Assembleia da República justificou que, com a decisão de Marcelo de não ir assistir ao jogo, Ferro, sendo o seu convidado, também não se deslocará a Espanha.
No entanto, disse esperar, "em qualquer caso, que o número de portugueses em Sevilha seja elevado".
"Não gostou, em Budapeste, de ver 80% dos presentes contra a nossa seleção. E Sevilha é muito mais próxima. Portugal não é Lisboa. A sul do Tejo existem e vivem milhões de portugueses", lê-se na nota.»


Entretanto, oiço numa rádio que já chegaram muitos portugueses a Sevilha e que são esperados muitíssimos mais hoje e amanhã.
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O crescimento da má educação

 



«Não sei bem como lhe chamar. “Má educação” é um termo muito ambíguo, “incivilidade” demasiado intelectual. Vou ficar-me pela “má educação”, que sempre diz mais do que incivilidade. Depois é uma matéria que é irrelevante para muita gente e demasiado importante para alguns. Há brutos e há flores de estufa. É uma matéria que não é sentida da mesma maneira quando se é mais novo ou quando se é mais velho. E é de difícil tratamento objectivo, não há um padrão que permita definir o que é “boa educação” ou “má educação”. Depois, há atitudes que para uns são condenáveis, para outros normais ou indiferentes. Há locais onde a “má educação” é a regra, como é o caso das brigas entre condutores. À segunda troca de palavras vêm os insultos mais grosseiros. Outra palavra, “grosseiro”, outra ainda “rude”, que fazem parte deste grupo de caracterizações de alguma coisa sobre a qual a maioria das pessoas tem opinião, mas que ninguém é capaz de teorizar, muito menos medir. Vicente Jorge Silva provou desta complexa confusão quando chamou a uma geração de jovens estudantes “geração rasca”, e provocou um efeito de revelação, eles eram mesmo “rascas”, ou uma caterva de críticas pelo atrevimento do julgamento.

Dito tudo isto, parece-me, pela medida mais empírica e subjectiva que se tem nestas matérias, que a má educação, agora sem aspas, está a crescer. Há cada vez mais pessoas a tentar passar à frente nas bichas de supermercado, nas filas das vacinas, nas filas para entrar em lojas ou restaurantes. Pode-se dizer que isto se passa porque há mais filas. As restrições da pandemia geraram um mundo de filas e consequente perda de tempo e isso irrita as pessoas. Por isso, as passagens à “má fila” ou as estratégias para fazer de conta que se está indevidamente à frente de alguém são cada vez mais comuns. Experimentem protestar. Das duas, uma: ou o protesto é colectivo e a fila que foi ultrapassada protesta toda em uníssono e o prevaricador é posto na ordem, ou quem protesta é olhado de alto abaixo como um excitado pelo seu direito individual à ordem de chegada.

Reparem como num multibanco, coisa que há cada vez menos, alguém leva um monte de papéis para processar, ocupando a caixa durante muito tempo sem consideração pela fila que está atrás. Ou como quem faz cargas e descargas de forma mais caótica e fora de horas, ocupa uma fila de trânsito, reage com veemência afirmando o direito de quem “está a trabalhar” e todos os outros a preguiçar e, por isso, pode parar onde quer, e como quer e durante o tempo que quiser. Não pede desculpa, nem acelera as entregas, nada, acaba e parte para outra como se nada acontecesse. O mesmo quando um carro impede a saída de outro e o que era o obstáculo acha que não tem de se justificar e tira o veículo prevaricador com maus modos.

Já não me refiro sequer a jovens famílias que acham normal as suas crianças andarem aos encontrões e a jogar a bola com total desrespeito pelos que estão num jardim ou parque a descansar, a ler, ou simplesmente desejam estar sossegados, e no intervalo em que estão a comer, estão a jogar à mesa, os adolescentes e os adultos ao telemóvel, num espectáculo de uma peculiar sociabilidade zero. Percebe-se como isto é absolutamente normal para os pais e mães e experimentem chamar a atenção de que é suposto as suas criancinhas serem controladas para não incomodar terceiros e vão ver a fúria e os impropérios com que afirmam o seu direito a que “ninguém se meta na sua vida”.

O incremento da rudeza, brutalidade, má educação tem sem dúvida que ver com a pandemia, que põe as pessoas fora de si, obrigando-as a suportarem-se demasiado perto dentro das casas confinados. Há demasiadas desgraças, que depois vêm cá para fora. Estas atitudes comunicam com a violação das regras de saúde, com o laxismo, com a indiferença face aos outros. Nestes dias de recuo no confinamento pagamos demasiado caro esta incivilidade, esta má educação, porque ela vai direitinha ter com estes comportamentos que todos podemos observar. Os que furam as filas não mantêm qualquer regra de diferenciação social, os que deixam os pequenos selvagens à solta estão-se marimbando para usar máscara.

O problema é que a má educação é uma forma de agressividade cujos alvos são os mais fracos, os mais bem-educados, os mais velhos, os que têm menos defesas. Vão para a rua e olhem com atenção. Não é um espectáculo bonito.»

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25.6.21

Teremos sempre Paris

 


Paris 1889
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Ferro Rodrigues

 


Soma e segue!!!


Para além do resto, quando se sabe que a Andaluzia tem risco elevado com taxa de incidência de 166,50 e que o primeiro-ministro belga aconselha isto aos adeptos que pensam ir assistir ao jogo Portugal-Bélgica: «Séville est toujours dans une zone rouge, je serais très prudent à leur place».
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25.06.1967 - «All You Need Is Love»



 

Há 54 anos, foi lançado All you need is love, dos Beatles. A BBC convidou-os a participarem no primeiro evento transmitido mundialmente via satélite, ao vivo e simultaneamente para 26 países, e, vá lá saber-se por que milagre inesperado, Portugal foi um desses países.

Mais informação e vídeo neste post de 2019.
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Um arraial em segurança é um oxímoro



 

«O deputado único do Iniciativa Liberal tem toda a razão. Na enxurrada de análises ao seu arraial, ninguém foi ao essencial: aquilo foi bom? O jornalismo de investigação morreu; é só opiniões e palpites. Tudo preocupado com a coerência política ou um surto liberal e ninguém a verificar se os barris de cerveja tinham chegado para a noite inteira.

Na falta de um “Sexta às Nove” dedicado ao tema, posso colmatar a lacuna: todas as minhas fontes garantem que foi excelente. Não consegui extrair informação sobre a relação qualidade-preço das sardinhas, mas a música mereceu aprovação. Mesmo com uma passagem pelos Xutos & Pontapés, escolha duvidosa para os Santos Populares, o DJ não caiu na tentação de intelectualizar a coisa com Marante e foi direto para Quim Barreiros. Mau grado a contagem obsessiva das máscaras e a medição metódica das distâncias, não se tratou de uma manifestação de negacionistas. No máximo, estava lá um bando de “acabacionistas”, cansados de olhar para o fim da pandemia como uma miragem. Primeiro foram as máscaras, das máscaras passámos para as vacinas e agora é não se sabe lá bem o quê, mas está tudo na mesma.

Com a ditadura sanitária instalada, organizar um arraial é uma declaração de amor à liberdade. Se Cotrim Figueiredo não encontrar nada em Orwell, é citar o filósofo católico alemão Josef Pieper: “É através de festivais que os seres humanos afirmam o significado fundamental das suas vidas e o seu lugar dentro do universo.” Está em linha com a requalificação de Santo António como um liberal avant la lettre e o direito fundamental de procurar a felicidade em qualquer lugar, incluindo numa sarjeta lisboeta pelas duas da manhã.

Já tenho mais dificuldades em acompanhar o dirigente do Iniciativa Liberal e o seu candidato à Câmara de Lisboa, Bruno Horta Soares, quando garantem ter demonstrado ser possível honrar as tradições lisboetas em segurança — e que Medina, como todos os socia-listas, é só mais um cobarde incompetente. A mão invisível pode ser o melhor garante do bom funcionamento do mercado, mas nunca ouvi falar do seu valor na boa distribuição de vírus. Fiquei, assim, meio na dúvida se alguma vez tinham posto os pés em Santos ou Alfama nesta altura do ano. Do que me lembro, juntar as palavras “segurança” e “arraial” é um oxímoro. O próprio conceito dos Santos Populares implica um nível de alcoolemia incompatível com o exercício da liberdade com responsabilidade. O agente económico, racionalmente, investe todas as suas poupanças nos líquidos, descurando os sólidos, para realizar o mais depressa possível o objetivo pretendido: chegar ao limiar do coma alcoólico.

A comprovar esta afirmação apresento a colocação em minha casa de uma cerca sanitária à volta de um infetado no ar¬raial liberal. Apesar de ter ouvido o próprio Cotrim Figueiredo afirmar que “cá estaria” em caso de contágios, não estou a reclamar. Depois de ler os vá¬rios Power Point que servem de manifesto e programa ao Iniciativa Liberal, sei que cabe a cada um assumir os custos e as consequências da sua liberdade. Meti-me numa alhada, trato eu dela. Pensem também nisso. Ao contrário do eleitor comunista, quem quer libertar Portugal, quando não é um burguês do teletrabalho em pleno confinamento Netflix, é filho dele. Neste momento, com a chegada do verão e as temperaturas a subir, apetece-lhe ir tranquilamente a banhos e está farto do fascismo higiénico. Mas não me fiava muito que continue assim se a curva insistir em empinar.»

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24.6.21

Sevilha espera-vos

 



Marcelo e Ferro Rodrigues estarão lá para vos receber no próximo Domingo.
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Rir precisa-se

 


(Daqui)
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Com homofobia não pode haver festa



 

«Cresci sem futebol. Estádios, só Alvalade para concertos. Dias antes do Euro 2000, o Independente desenhou um figo (a fruta) na capa da revista e eu não percebi a piada. Só que estava a viver na Bélgica e acabei arrastada para ver dois jogos da seleção no estádio. Apanhei-me no corrupio de duas vitórias de Portugal, contra a Inglaterra e a Alemanha.

No estádio, rodeada de emigrantes portugueses que tinham saído de Portugal em circunstâncias muito diferentes das que, no final dos anos 90, me levaram àquelas paragens para estudar. Fora do estádio, rodeada de amigos dos outros países, o que dava um significado diferente a cada jogo. A coisa entranhou-se, talvez pela emoção partilhada com os conterrâneos nas bancadas do estádio, ou com os forasteiros fora dela, talvez pela dualidade entre o meu apego a Portugal e a festa de partilhar competições internacionais com amigos dos outros países.

Infelizmente, onde há exclusão, não pode haver festa. Esta semana a UEFA impediu o presidente da Câmara de Munique de iluminar o estádio com as cores LGBTQ+ durante o jogo Alemanha-Hungria. Contrariamente ao que afirmou a UEFA, não é uma questão de neutralidade política, porque não há contenda política sobre direitos humanos. Há um ano, um jogador não identificado da primeira liga inglesa escreveu uma carta dizendo que é gay, mas nem os seus colegas de equipa conhecem a sua orientação sexual. Por viver escondido, o seu quotidiano é “um pesadelo”. Se é assim em Inglaterra, onde os jogadores da primeira liga usam fitas arco-íris para apoiar as pessoas LGBT+, nos outros países só pode ser pior.

A UEFA, que não teve nada a dizer sobre a legislação homofóbica da Hungria passada no decorrer do Euro, censura ativamente uma mensagem de inclusão. Falando de patrocinadores, em vez de nos entretermos com a novela CR7 vs Coca-Cola, que tal refletir nos milhões pagos pelos patrocinadores de países onde a comunidade LGBTQ+ é abertamente discriminada e perseguida? Talvez seja um ponto de partida.»

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O Estado a que chegámos…

 


Custa a acreditar, mas é verdade. Com a pandemia como está, com o mais do que provável «cerco» à AML durante o fim-de-semana, ontem à noite, quando saía do estádio de Budapeste onde tinha ido assistir ao Portugal-França, a segunda figura do Estado disse o que se lê em rodapé. Mais concretamente, que se vá «de forma massiva» a Sevilha, no próximo Domingo, para ver o Portugal-Bélgica.

Pior é sempre possível.
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23.6.21

Portugal mais papista que o Papa



 

Não assinou a carta sobre direitos LGBT na Hungria por "dever de neutralidade" quando a presidente da CE diz isto.
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23.06.1959 – O dia em que Boris Vian morreu

 


Boris Vian morreu com 39 anos, vítima de crise cardíaca.

(Informação e vídeos neste post de 2020.)
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Para respeitar “dever de neutralidade”???



 

SHAME ON US!

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A maré baixa da extrema-direita e os festejos precipitados

 


«Percebe-se a razão do seu medo. Desgastado pela sua indiferença por meio milhão de vítimas de Covid, Bolsonaro ficou recentemente sem vários dos seus aliados mais poderosos: Trump foi derrotado, Netanyahu caiu, Macri foi varrido na Argentina. Vem ainda pior: no Chile, as eleições para a Constituinte comprovaram o isolamento do governo de Piñera, o Peru foi “perdido” para um sindicalista, como o presidente brasileiro se queixou, Duque está confrontado com uma sublevação popular na Colômbia, a oposição de direita na Venezuela dividiu-se e não se ouviu falar mais dela. O mapa dos poderes da extrema-direita está a empalidecer, o que faz da disputa brasileira o centro da política na América Latina. Assim se compreende que os chefes da direita tradicional, a começar por Fernando Henrique Cardoso, pelos ex-aliados de Bolsonaro no “centrão” do parlamento e até por algumas lideranças neopentecostais, se distanciem deste desastre e procurem alternativas, mesmo que alguns já pareçam resignados à bipolarização que pode levar Lula de novo ao poder.

Na Europa, Orban está confrontado com uma convergência das oposições húngaras, o apoio ao governo da Eslovénia descambou de 56% para 26%, na Polónia o governo ensaia uma viragem económica em desespero de causa, em França Le Pen estagnou, em Itália Salvini é perseguido tanto pelo ascenso de outro partido de extrema-direita como pela recuperação do centro e da velha direita, que procuram recompor-se com Draghi, em Espanha o Vox perde para o Partido Popular.

O que há de comum entre todos estes casos de desgaste eleitoral é o exercício do poder. Sempre que puseram pé em governos, mesmo quando suportados por vagas xenófobas que garantiram a opacidade da sua autoridade, estas forças atacaram direitos fundamentais, condicionaram tribunais, fecharam jornais e televisões, proibiram atividades sindicais, perseguiram opositores, em alguns casos criaram milícias e, sempre, exponenciaram os discursos de ódio. Virou-se contra eles, como não podia deixar de ser. Nos casos de Trump e Bolsonaro, desprezaram a pandemia, multiplicaram o negacionismo genocida, promoveram curandices irresponsáveis, afastaram cientistas e correram a proteger privilégios económicos. Mas, sem exceção, foram todos atropelados pela realidade, provando que há uma diferença entre as tonitruantes promessas anti-sistema e os efeitos que são capazes de produzir na vida do dia a dia das populações. Vive-se pior com estes governos e essa é a prova dos factos.

Por isso, conhecer a realidade destas governações, a panóplia dos seus ministros e os jogos que movem tornou-se um instrumento essencial das lutas democráticas atuais. A bufonaria é deslumbrante, até ser vista; os bufões são esfuziantes, até serem percebidos; e a elevação de uma companhia de rufias e corruptos deixa danos profundos e duradouros, mas mostra quem eles são e o que fazem. Os heróis da extrema-direita, Bolsonaro, Trump, Salvini, Orban, Modi, mudaram a política mundial ao chegarem ao poder e têm desde então criado a sua própria desautorização.

Essa mudança ainda se prolonga e prolongará, não estamos livres dela. Le Pen beneficia do apodrecimento do poder de Macron, confirmando que o centro nunca é uma barreira contra o autoritarismo social da extrema-direita, e ainda tem pela frente uma campanha presidencial com maiores chances do que no passado. A radicalização da direita histórica espanhola é um efeito da contaminação pelo Vox e ficará, tudo nos nossos vizinhos será disputado ao som da memória e da linguagem da Guerra Civil do século passado. Bolsonaro, no seu desespero, tentará os militares, e Trump anda por aí. A semente está plantada.

No nosso caso, ainda só está a começar a festa. Moedas, em Lisboa, copia Ayuso, de Madrid; Rio compete com Ventura; Figueiredo organiza uma festa Covid; uma convenção junta os aristocratas da direita e o que resulta é uma polémica infindável sobre o saudosismo salazarista, e estão por verificar os efeitos duradouros de uma direita que deixou de disputar o centro e se limita a estralhaçar-se. Em todo o caso, a lei é implacável: se os partidos de direita se imitam, têm que se agredir para que alguma coisa os diferencie. O efeito é pesado, um espaço político com um partido de 20% e dois outros de 5% ou algo mais torna-se radicalmente inviável. Alguns concluirão que, assim sendo, Ventura é o melhor aliado de Costa e que Rio será somente uma ponte para Passos Coelho. Ora, muita água ainda passará debaixo das pontes até conhecermos o desenlace desta tragédia à direita, mas fica um aviso para as esquerdas: se há quem pense que basta esperar sentado para assistir ao espetáculo, é melhor perceber como o mundo tem mudado. Não tem sido para tornar a vida mais feliz.»

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22.6.21

Euro2020

 

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Azuis por fora, podres por dentro

 

Este texto sobre a manifestação do Movimento Zero, que teve lugar ontem em Lisboa, é de leitura absolutamente obrigatória, na íntegra.

«Tudo nesta concentração, obviamente, é extremista, como tudo no M0, desde que surgiu - lembremos que por "revolta" contra a decisão de tribunal que condenou oito agentes da PSP por terem sequestrado, agredido e insultado de forma racista jovens negros da Cova da Moura -, ressuma a uma corrente política que chama "regime" à democracia e diz querer "substituí-lo". Convinha que não só o governo e o PR como todas as forças democráticas tornassem claro que, se as legítimas aspirações dos agentes das forças de segurança merecem todo o respeito e atenção, este tipo de manifestação deve ser repudiado e quem nele participa sofrer consequências.»
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O laboratório francês



 

«Le feu qui semble éteint souvent dort sous la cendre (Corneille)

Marx, que considerava a Alemanha a pátria da filosofia (assim cantava Caetano Veloso: "só é possível filosofar em alemão"), atribuía à Inglaterra a primazia na economia e à França a vanguarda dos movimentos políticos. Alguém não menos inteligente, Jaime Gama, dizia há pouco que tínhamos que estar muito atentos às mudanças políticas em França, que encerrariam fortes indícios para o nosso futuro.

Vivi algum tempo em França e sou afrancesado desde pequenino. A oportunidade de passar os últimos quinze dias do mês de junho entre Paris e Estrasburgo levou-me a esse feliz reencontro, que é sempre encontro com uma parte de mim. Mas alguma coisa me inquietou.

Nunca vi os franceses tão céticos em relação ao universo das lutas políticas, tão desprendidos do seu famoso espírito "frondeur", que bem recentemente vimos florescer nos "gilets jaunes", tão indiferentes e de tal modo resignados que até a Sra. Le Pen ganhou um tom cordato e institucional que contrasta com o modo arruaceiro que é sempre apanágio e graça da extrema direita. É verdade que um mês antes dos acontecimentos de maio de 1968, o "Monde" publicava um editorial sob o título "A França aborrece-se"... Nunca se sabe o que poderá brotar de uma aparente passividade. Como dizia Corneille, o fogo que dorme sob as cinzas pode bem vir a surpreender-nos.

O deslizar tranquilo e sem surpresas de Macron para a direita e a (apenas tática?) inflexão de Marine Le Pen para um tom de seriedade e responsabilidade institucional, leva muitos franceses a desvalorizar a política de "frente republicana", que levava a esquerda a votar no candidato de direita mais bem posicionado para derrotar a extrema direita, e a considerar sem sobressalto a hipótese de uma vitória de Le Pen. A esquerda foi-se diluindo nas suas múltiplas cambiantes ideológicas, enquanto a direita democrática disputa o seu espaço político com um Macron enfraquecido. Macron tentou esvaziar o universo político francês das suas alternativas, sem conseguir simultaneamente mostrar-se como eficiente barreira a uma extrema direita que deixou (até quando?) de assustar eficazmente os franceses.

A preocupação que eu senti com a França prende-se com a ausência ali, não de um debate de ideias, que existe e é bem forte (tomáramos nós...), mas de uma ideia consistente de alternativa política. A nação que foi considerada a mais política da Europa deixou-se deslizar para um estranho estado de anomia, que nos faz recear, face às ameaças que nos rodeiam, um acentuar da impotência europeia, que a França, ainda assim, é das poucas a denunciar no seu discurso.

O regresso dos Estados Unidos às suas responsabilidades mundiais obriga ainda mais todos os que acreditam num papel próprio para a Europa a assumirem plenamente as responsabilidades que lhes cabem como europeus. Ora a indiferenciação política não favorece a vontade de assumir qualquer papel ou responsabilidade que seja.

Poderá o nosso futuro político vir inscrever-se na triste alternância entre uma direita tecnocrata e economicista e uma extrema direita um pouco mais polida e asseada? Quando voltei a Portugal, chocou-me certamente o tom rasteiro, deselegante e mal articulado de boa parte dos nossos debates; mas senti como uma bênção que eles continuassem a existir.»

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21.6.21

Solstício



O tempo passa depressa. Há 10 anos, vivi o dia mais longo da minha vida bem ao Norte, na belíssima cidade norueguesa de Bergen. O bom gosto chegou lá e instalou-se. As casas, o verde, a água, a luz, as cores do mercado – nada destoa, tudo parece ter sido inventado para se completar.
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Em jeito de solidariedade com o Brasil

 

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Os refugiados de hoje

 


… serão os médicos, professores, artistas, heróis no desporto, cientistas, etc., etc.

David Schneider no Twitter
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Reconstruir o tecido social

 


«Na sua intervenção, no dia 10 de junho, o presidente da República interrogou-se, em nome de todos os portugueses, nestes termos: "esta Terra" - o país que somos - "exige mais de nós? Que o não esqueçamos nos próximos anos, não nos limitando a remendar o tecido social ferido pela pandemia, reconstruamos esse tecido a pensar em 2030, 2040, 2050". É mesmo por aqui que vamos, senhor presidente?

Trata-se de um propósito positivamente transformador da vida dos portugueses, com duas exigências de partida: i) a sociedade portuguesa - começando pelo presidente - ser capaz de romper com a tolerância e condescendência face à pobreza; ii) não sermos embrenhados na discussão de soluções mágicas para daqui a décadas, como forma de escamotear os problemas do presente, que é contínuo.

A profunda relação entre o trabalho, o emprego e a proteção social está no cerne de qualquer estratégia para reconstrução do tecido social. É preciso valorizar o trabalho e criar mais e melhor emprego, o que passa por reforçar e qualificar o tecido produtivo e garantir os direitos sociais e laborais às pessoas. Nestes campos, há que pôr de lado as políticas de remendos e dar passos consistentes que rompam com posturas oportunistas ou tacanhas muito enraizadas na sociedade.

O tecido produtivo está deslaçado, não basta fazer-lhe chegar dinheiro. Se a economia for tratada apenas como negócio, alavancada por um forte pendor de importações e assente numa dimensão desproporcionada de serviços de baixo valor acrescentado e de baixos salários; se continuarmos com relações intersetoriais não entrosadas e desequilíbrios regionais sistémicos, não se geram bases para reconstruir o tecido social. Mude-se de agulha nas políticas económicas e assegure-se um sistema de relações laborais em condições de dar efetividade ao diálogo e à negociação coletiva.

O sistema de proteção de que precisamos exige compromissos de solidariedade social estruturada. Cidadãos persistentemente dependentes da caridade de outrem perdem a dignidade e a liberdade e são reprodutores de pobreza, em todo o espaço das suas relações sociais. É indispensável reforçar o sistema de segurança social. Isso depende, em primeiro lugar, do volume de emprego, do valor dos salários e da existência de vínculos laborais para todos os trabalhadores - portugueses e imigrantes. Na maioria das situações a precariedade só tem uma justificação: ser instrumento de redução da remuneração do trabalho. E um trabalhador que roda de emprego em emprego tende a usufruir de um salário cada vez menor.

Os setores políticos e económicos que aproveitaram a anterior crise para instabilizar as relações de trabalho e transferir, injustamente, riqueza e poder do trabalho para o capital gritam agora, sem vergonha, contra as instabilidades que resultariam de alterações à legislação laboral necessárias para criar um pouco mais de justiça. O governador do Banco de Portugal já veio, esta semana, alimentar o peditório: só sabe olhar trabalho e salários como variável de ajustamento.

Senhor governador, preocupe-se com o que é fundamental na sua missão: a supervisão do sistema financeiro e a sua sustentabilidade. Se o fizer com eficácia dará saúde à economia, ajudará a reduzir encargos do Estado e, seguramente, contribuirá para reconstruir o tecido social.»

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20.6.21

João Semedo

 


Seriam 70, hoje.
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Carta para Noah

 


«Escrevo-te esta carta para quando souberes ler. Não é provável que a venhas a encontrar. Mas imagina que um dia resolves pesquisar o ano de 2021, este mês de junho, e deparas com um episódio da tua vida. E opiniões, muitas opiniões. Entre elas estará a minha.

A minha profissão é ver crescer crianças como tu. E responder a perguntas. Está bem ou mal? Magro ou gordo? Alto ou baixo? Devia falar mais? Que lhe dou para comer? Dorme suficientemente? Porque se porta assim? Pode fazer isto? E aquilo?

Pois tu, caso não te lembres já, ou não te tenham voltado a falar disso, esta semana acordaste muito cedo, levantaste-te, e saíste pela porta da rua entreaberta. Dizem que foste atrás do teu pai. E desapareceste. Estiveste desaparecido um dia e meio.

A GNR montou um quartel general na praça da aldeia onde vives. Vieram pessoas participar nas buscas. Não se cansaram. Fizeram-no sob a coordenação de uma equipa profissional. Milhares de pessoas pensaram em ti com afeto, preocupação e esperança. Até que um casal te encontrou. E voltaste à tua família e ao teu cão.

Tenho duas fotografias tuas. Uma foi a que os teus pais publicaram para que te procurássemos. A outra é a que mostra um momento pouco após o teu achamento. Tu és um menino esperto e aventureiro. Vê-se bem. Também se vê que o teu pai gosta de ti e que os soldados da GNR desta vez estão satisfeitos, porque fizeram o seu trabalho.

Não sei mais nada da tua família. Nem tenho de saber. Basta-me que se tenham reunido. Mas quero que saibas que os teus pais são gente boa. Tu soubeste caminhar pelos baldios de Proença, pela lama e pelos trilhos, atravessaste a vau uma ribeira, talvez te tenhas alimentado e bebido água. Não te magoaste. Não foste atacado. Talvez não tenhas encontrado nenhum animal maior do que tu. Se sobreviveste foi porque os teus pais estiveram contigo, estes anos. E te viram crescer. E te ajudaram, quando precisaste. E agora, que te perdeste, eles estiveram à frente dos que te procuraram.

Tens de ter algum cuidado. Aprender melhor os caminhos de volta. Saber olhar para o sol. Marcar os trilhos. Levar mantimentos.

Mas podes contar connosco. Espero que nos encontres, muitas vezes. Porque nós precisamos das nossas crianças, todas. E precisamos tanto de alguns como tu, Noah.»

Luís Januário (pediatra) no Facebook
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O teu trabalho nas minhas mãos



 

«Se está a ler esta crónica através do seu smartphone, lamento informá-lo de que a probabilidade de ter o resultado da exploração de uma criança congolesa nas mãos é elevado. E sim, eu sei que o Dia Mundial contra o Trabalho Infantil já passou, mas só hoje consegui ler o artigo The dark side of Congo’s cobalt rush que guardei, também no meu smartphone, há cerca de duas semanas. E caramba se alguma vez, especialmente este ano, é tarde para escrever sobre trabalho infantil.

Gostava de começar por vos apresentar Ziki, menino congolês que “conheci” durante a leitura e que, depois de perder os pais num acidente, foi enviado por uma tia para trabalhar numa mina de cobalto quando tinha cerca de quatro anos. A mesma idade do meu filho, que ainda ontem fez uma festa porque se conseguiu calçar sozinho. E se para nós é estranho que uma criança desta idade trabalhe, no Congo, o trabalho infantil nestas minas é uma espécie de prato do dia, apesar da sua proibição legal.

Aliás, nem sei se devia chamar “trabalho” ao que estas crianças fazem, porque cada relato que leio é mais assustador do que o anterior. Crianças que trabalham 12 horas diárias em minas caseiras inseguras, sem qualquer material de protecção individual, muitas vezes drogadas para não sentirem fome e a receberem uma remuneração entre o nada e o miserável, consoante aquilo que consigam produzir. Crianças a quem não são sequer fornecidos alimentos se não fizerem dinheiro suficiente para o patrão que as explora.