19.6.21

Se o Alemanha-Portugal vos afectou muito…


 

... um bom descanso ajuda.
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19.06.1944 – Quando o Chico nasceu

 


Chico Buarque da Holanda faz hoje 77 anos. Vi-o pela primeira vez em 1966, em Lisboa, em «Morte e Vida Severina», estreada no Brasil pouco antes, com poema de João Cabral de Melo Neto e música do Chico. É até difícil imaginar que este tinha então apenas 22 anos!

Muitos o recordarão hoje de outras formas, eu prefiro esta:


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O argumento soviético da loucura



 

José Pacheco Pereira no Público:

«Os mecanismos do radicalismo hoje em curso à direita do espectro político são bem visíveis em textos de articulistas, nas páginas das redes sociais e nesse espelho das cabeças que são os comentários em caixas de comentários sem moderação ou pouco moderadas, seja no Observador, no Sol, e mesmo no PÚBLICO. Aliás, a prática de uma mesma publicação ser moderada no corpo principal e permitir tudo nas páginas do seu Facebook favorece a degradação da opinião, com o falso argumento da sua democratização.

Embora seja fácil perceber que uma multiplicidade de nomes falsos e pseudónimos pertencem à mesma pessoa, para se criar a ilusão da quantidade, não é irrelevante conhecer esta forma ficcional de vox populi, intencional e pretendendo obter objectivos políticos. Do mesmo modo, é possível perceber outros mecanismos deliberados, como seja enviar opiniões pejorativas ou no início ou numa fase já avançada dos comentários, de modo a que estes sejam ou os primeiros ou os últimos e, de algum modo, condicionarem a leitura do conjunto. Há gente que faz isto como quem respira, verdadeiros militantes das caixas de comentários, e há profissionais de agências de comunicação ou grupos organizados nos partidos políticos, semelhantes aos que existem nos programas de rádio, os fóruns em directo de opiniões, a actuarem escondidos.

Muitos dos mecanismos deste tipo não são exclusivos da direita radical, existem também à esquerda, mas a maré tribal que está a subir é a da direita radical, associada ao populismo antidemocrático, exacerbado pelo sentimento de impotência face à situação política actual e às sondagens. Os temas e o modo de os apresentar e discutir são tão semelhantes entre si, do Observador ao Diabo, que representam um elenco que pode ser identificado e discutido.

Noutros artigos voltarei a esta questão, com os retratos do “argumentário”, quase todo associado a ataques pessoais, que desde o início do século XX foi identificado e estudado como um modus operandi do jornalismo de ataque populista radical. Hoje fico-me por aquilo que é o uso do argumento soviético do período de Brejnev para usar a interpretação psicológica, psicanalítica e psiquiátrica para explicar a dissidência. A dissidência era considerada uma doença mental, e vários opositores ao regime soviético como Vladimir Bukovski, Leonid Pliushch e Grigorenko foram perseguidos como doentes. A ideia apresentada de forma simplista era esta: como é possível, sem padecer de uma qualquer doença mental, pôr em causa um regime perfeito de sociabilidade política como o socialismo soviético, fonte de felicidade e bem-estar? Como era possível, sem diminuição das faculdades mentais, estar “contra o povo”?

Este argumento soviético é hoje muito usado no mundo do ataque pessoal da direita radical. Pode parecer estranho pela aparente oposição política, mas não é: há uma similitude na vontade de destruir o outro e os mecanismos para o fazer são idênticos. Este tipo de ataques muito comuns nas margens cinzentas da política está cada vez mais a emigrar para as zonas “respeitáveis” da opinião. Como é possível sem se ser doente, demente, senil, “maluquinho”, lunático, sem se ter as faculdades mentais diminuídas, pôr em causa o discurso da direita radical sobre o “ditador” Costa, sobre o “socialismo autoritário” que nos rege, como não é possível ver a essência corrupta da democracia, descrita como o “sistema”, como é possível não se aceitarem as teses “científicas” sobre a realidade, como, em suma, se pode discordar sobre o mundo do Mal que nos governa sem se ser ou servil ou doente ou as duas coisas?

Os termos que usei e que repito – demente, senil, “maluquinho”, lunático, sem as faculdades todas – foram todos usados por cá nos dias de hoje, e são uma espécie de upgrade da redução das posições políticas a traços e comportamentos psicológicos, seja a inveja, seja o ressentimento, os dois mais comuns, que são centrais nos ataques pessoais. É um estilo cada vez mais vulgar, que acompanha a crescente incapacidade de aceitar posições numa conversação democrática, ou sequer admitir que ela possa existir porque isso é aceitar o “sistema”. O melhor exemplo são os republicanos pró-Trump, e os seus imitadores nacionais.

Se retirarmos o psicologismo, e a sua forma superior no argumento da dissidência ou da discordância como doença mental, não sobra quase nada. Espreme-se e sai vazio, o que significa que não se trata de debater ou discutir, mas de considerar que o outro não pode nunca ser ouvido ou ser um interlocutor, porque está diminuído nas suas faculdades mentais, como se vê pelas suas posições...»
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18.6.21

Maria Bethânia

 



Chega hoje aos 75.
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Noah e o bisavô



 

Foram quase dois dias terríveis, mas que acabaram bem, muito bem, talvez por o Noah ser bravo, uma criança sem dúvida muito forte.
O ADN não engana. E estou certa de que o seu bisavô, o meu queridíssimo amigo NUNO BRAGANÇA, daria uma enorme gargalhada como esta quando ele apareceu.

(P.S. – Sei, desde ontem, quem é a mãe da criança – alguém de impecável pelo que me diz quem a conhece bem. Mas só hoje escrevo isto porque vi há pouco o seu nome divulgado nalguma imprensa.)
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A ditadura do futebol



 

«A minha paixão pelo futebol não é recente, não é de moda, não é fruto do acaso. Vem de sempre, do mais longe da infância, manteve-se sempre constante e alimentou-se sempre de um genuíno prazer pela estética e pela geometria do jogo: até mesmo ver miúdos a jogar na areia de uma praia me cativa, não apenas ver jogar Messi ou Ronaldo. Mas, hoje em dia, dou por mim a ficar cada vez mais farto de futebol. O jogo, em si mesmo, é cada vez mais desinteressante, a partir do momento em que o seu objectivo principal — marcar golos — foi substituído pelo de não deixar o adversário marcar golos. O futebol-arte foi substituído pelo futebol-indústria, no qual desaguaram em força todas as máfias de dinheiro obscuro do mundo — da Rússia, do Médio Oriente, da Ásia — que forçaram o espectáculo futebolístico até aos limites: mais jogos, mais competições, mais horas de transmissões televisivas de jogos e debates sobre jogos, e jogadores pagos pornograficamente, com a contrapartida de jogarem até à exaustão. Todos os envolvidos no negócio — donos e administradores dos clubes, técnicos, jogadores, programadores de televisão, dirigentes das Federações, da UEFA e da FIFA — sabem que a corda está esticada até ao limite, mas apostam na infinitude de um filão que não se esgotará nunca, pois acreditam que não se esgotará nunca, passando de geração em geração a paixão do público por este jogo. E, por isso, não é possível abrandar nem conter a ambição — daí a recente tentativa, por enquanto frustrada, de 12 dos mais ricos clubes europeus quererem ainda enxertar uma outra competição, só para eles, às já existentes. E, quando se paga seis, dez, vinte milhões por ano a um jogador, e mais do que isso a um treinador, perder não é opção. Daí que todos os treinadores, sem excepção, cuidem hoje, primeiro que tudo, de preparar as suas equipas para não perder. Os das mais ricas preparam-nas também e depois, para tentar ganhar; os outros, apenas para defender. O resultado à vista é que todas as equipas acabam a jogar da mesma maneira, um futebol previsível, cauteloso, aborrecido, destinado a matar à nascença o improviso e o génio. Bom exemplo disso é a saída de bola dos guarda-redes, actualmente a jogada mais ensaiada pelos treinadores, a mais repetitiva e a mais desinteressante. Aliás, tenho para mim e desde há muito, que, com honrosas excepções — como um padre-treinador que tive aos 15 anos — os treinadores só servem para complicar o que é simples. E quando vieram acrescentar-lhes o VAR (hoje, o personagem principal e invisível do jogo) e toda uma teia de intrincadas interpretações técnico-jurídicas sobre as 13 leis do futebol — ainda por cima, mudando todos os anos — este jogo, outrora fascinante, vai-se tornando cada vez mais aborrecido.

Mas se o futebol é cada vez mais aborrecido, o espaço que ele ocupa nas nossas vidas — ou naquilo que nos propõem que sejam as nossas vidas — é cada vez maior. Isso não acontece por acaso, mas porque os biliões investidos neste negócio precisam de retorno: precisam de público, de atenção mediática, de espaço publicitário, e tudo isso está interligado. Convencer cada vez mais pessoas de que o futebol é parte essencial da vida delas é a chave do negócio. Atrair a atenção de novos públicos, sem distinção de género, de condição social, de origem geográfica. O futebol, repetem-nos, é a única coisa que une todos os povos do mundo, que estabelece tréguas entre as guerras, que esbate as diferenças, que combate o racismo e mais uma série de causas bonitas. Era bom que assim fosse e não a alienação de massas, sabiamente promovida pelo futebol — em cuja sombra um exército de privilegiados, das Federações nacio¬nais, dos clubes, da UEFA e da FIFA, acumulam fortunas e chantageiam governos.

Isso é conseguido, obviamente, graças ao empenho e conivência do jornalismo e, em particular, das televisões. Sem a comunicação social e sem as televisões, a alienação — ou as audiências, se assim lhes preferirem chamar — não atingiriam o patamar que hoje atingiram e o negócio afundar-se-ia. É um pouco assim em todos os países, mas evidentemente que é tanto pior quanto mais subdesenvolvido culturalmente é um país. E Portugal é disso um exemplo eloquente.

Em Portugal e até ao 25 de Abril, o futebol ocupou um papel tão importante quanto tudo o resto ou não tinha importância ou não era consentido — essa foi a missão que lhe atribuiu o Estado Novo. Com a democracia, outras coisas, mais importantes, mais urgentes e novas, passaram a ocupar-nos e o futebol passou para segundo plano. Até que (a sondagem do Expresso da semana passada confirma-o) os portugueses, que confundem democracia com bem-estar, começaram a suspirar por outro ditador ou autocrata, que restaurasse o “espírito pátrio” e nos devolvesse o orgulho nacional perdido. Encontraram-no no Euro de 2004 e na figura importada de Luis Filipe Scolari, um homem de extrema-direita, que chegou, mediu a cena e soube tirar todo o partido dela. Convenceu os portugueses que o Euro — no qual investimos milhões a perder de vista — era uma oportunidade única de restaurar a grandeza da pátria por via do futebol, afinal de contas a nossa melhor, se não única, valência. O resto é história: dez milhões menos um português (eu) passaram um mês a cantar o hino e vestidos com as horrendas cores da bandeira, a vitoriar os novos heróis do mar que acabaram derrotados por uma selecção medíocre, nas nossas barbas.


17.6.21

Cerco de Lisboa



 

Eu sou antiga, mas ainda não tinha vivido nenhum Cerco de Lisboa.
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18.06.1940 – De Gaulle

 



Vale a pena ouvir este apelo do general De Gaulle, lido na BBC, considerado como símbolo e início da Resistência francesa na II Guerra Mundial.
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No comboio descendente, vai tudo à gargalhada



 

«Já toda a gente reparou na recente e vertiginosa mudança nos modos de comunicação, através da banalização da boçalidade. Um chefe de um partido sugere levemente que o ministro devia ser decapitado, os liberais treinam os meninos a atirar setas à cara dos adversários (com a natural exceção da do chefe do partido que acha que o ministro deve ser decapitado), a candidata laranja à Amadora quer exterminar um partido e é aplaudida pela turba da sede, um cordato e elegante administrador da Gulbenkian solta o animal feroz que afinal morava dentro de si, junta-se uma fronda para assegurar que há um “fundo de verdade” em que os comunistas comem crianças, um ministro, outro que não o decapitável, convoca raios e coriscos por lhe terem lembrado a borla fiscal das barragens, o bastonário de uma ordem profissional indigna-se para assegurar que umas casas de uma urbanização aparentemente não licenciada são alugadas por cem mil euros por mês na emergência da covid em Odemira, e quantos mais exemplos são necessários para dizer desta mudança que é tribalização de espaços públicos?

Há duas formas de menorizar este rápido deslizar da linguagem. Uma é que já foi assim, talvez mais vezes do que as que ocorrem à nossa memória recente: no PREC foi à bomba e fogo posto, algumas vozes incendiavam a pradaria, houve mesmo um candidato presidencial da direita unida que exibia a distinção de ter dirigido um campo de concentração durante a ditadura, houve programas de televisão cortados, houve jornalistas a responder em tribunal por discutirem planeamento familiar em antena, houve governo que correu com Marcelo do seu comentário televisivo, houve ameaça de censura a Saramago, houve Pides condecorados. Já houve o mal e a caramunha. E, se é certo que qualquer período de instabilidade ou de grande disputa aquece os termómetros da palavra, também agora estamos em vésperas de eleições, autárquicas que sejam, mas vão definir o mapa da direita e revelar-lhe se tem alguma chance para os próximos anos, o pote está a ficar muito distante. A segunda forma de relativizar esta temperatura é lembrar que até somos de brandos costumes: em contrapartida, em Espanha não houve um único dia do seu mandato como ministro em que Pablo Iglesias não tivesse uma manifestação da extrema-direita instalada à porta da casa onde vive com os seus filhos.

Permita-me dizer-lhe que estes dois argumentos são mancos. Há pior e até já houve pior, mas nada disso explica este comboio descendente. Vale a pena compreendê-lo, porque isto vai durar mais do que o breve campeonato europeu de futebol: o que alicerça a degradação da linguagem, poluindo a política para esvaziar os espaços de conversação e de enunciado de posições e propostas, é uma combinação entre a concorrência feroz à direita (o que é novo e notável, desde há quarenta anos que não surgiam novos partidos eleitoralmente viáveis nesta ala e, pela primeira vez desde o 25 de Abril, podemos estar nas vésperas do desaparecimento de um dos partidos da Constituinte) e o predomínio de novos modos de comunicação que são impulsionadores da necropolítica.

A mudança que as redes sociais produzem não é a difusão dos memes ou o uso do sarcasmo, aliás desejável nos debates democráticos que, como lembrava um editorialista, não têm por que ser “amorfos”; o seu efeito é, antes, a intoxicação intensa. A linguagem é usada neste terreno para uma função predominante: a blindagem, ou seja, para deixar de comunicar, para se tornar opaca e intraduzível, para fechar os seus seguidores numa redoma inexpugnável, protegida por barreiras de ódio. Isso é possível precisamente porque vivemos em hipercomunicação, com o ecrã a colonizar muitas horas do nosso dia, e porque a sociabilidade passou a ser esta forma de encriptação que cria símbolos, ícones e liturgias na gritaria, forjando identidades fictícias e obediências sectárias. Quanto mais comunicante for a incomunicabilidade, maior o seu sucesso. É por isso que a figura típica deste mundo é o bufão. E o bufão é quem, para aplicar o poema de Fernando Pessoa, vai no comboio descendente à gargalhada, criando um espetáculo em que vão “uns por verem rir os outros/ E os outros sem ser por nada”, “uns calados para os outros/E os outros a dar-lhes trela/(…) Mas que grande reinação”.

Não é tudo novo? Não. Mas já se alcandorou ao esplendor de sugerir a decapitação de um adversário. Não é fala de Estado Islâmico, é mesmo a direita portuguesa.»

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16.6.21

Sintonias…



 António Costa, Público, 16.06.2021.
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David Mourão-Ferreira morreu há 25 anos

 


David Mourão-Ferreira morreu em 16 de Junho de 1996. Um dos nossos grandes poetas do século XX, ficcionista também, acidentalmente político como Secretário de Estado da Cultura, de 1976 a Janeiro de 1978 e em 1979, autor de alguns poemas imortalizados pelo fado na voz de Amália Rodrigues.

Dois poemas ditos pelo próprio, um cantado por Amália:








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Passaporte para o atalho

 


«Apesar dos sustos e das variantes, o mundo rico prepara-se para integrar a covid na normalidade das nossas vidas como integramos tantos outros riscos. Mesmo sem o levantamento de patentes, o processo de vacinação avança e a imunidade de grupo está a poucos meses. Como parte do regresso à normalidade, vem aí o Certificado Digital Europeu. Só que, ao criar o passaporte verde, a Comissão Europeia não o regulou. Cada país faz o que entender, com os critérios e medidas que quiser.

Para além de muitas aberrações e de uma total imprevisibilidade, a pandemia passou a ser usada como instrumento de competição económica e arma política. E em vez do regresso de fronteiras com regras conhecidas, vivemos ao gosto da arbitrariedade. Schengen sobrevive para os que vêm de fora. Morreu para a liberdade de movimentos internos, serve como muralha para manter a muralha externa. E os que estão para lá dessa muralha foram os principais prejudicados pela defesa do negócio das farmacêuticas, que tenderá a piorar.

O Parlamento Europeu aprovou uma recomendação para a Comissão Europeia fazer o que se recusa, por preferir defender os interesses de um país produtor de vacinas: a suspensão temporária de patentes, que a lei internacional permite e que foi recomendada pela OMS, ONU, Médicos Sem Fronteiras, dezenas de especialistas e prémios Nobel. Os países ricos safaram-se sem este passo, à custa do resto do mundo. Os EUA têm mais de metade da população com pelo menos uma vacina, a Europa mais de um terço. Mas África está pouco acima dos 2%, com vários países próximos de zero. Não tendo garantido o levantamento da patente e as condições para uma vacinação global, o confortável condomínio terá de fechar ainda mais os portões, instalar câmaras e contratar vigilantes, em vez de cuidar do bairro. Este passaporte acabará por servir para isso.

Nada contra a sua existência. Quando viajamos de e para vários países é obrigatório um certificado de vacinação para a febre amarela, por exemplo. Mas isso só é aceitável quando todos se podem vacinar. E só não está a ser toda a gente vacinada porque se escolheu privilegiar o negócio de meia dúzia de multinacionais fortemente subsidiadas pelos Estados. Uma coisa é estar disponível para limitar liberdades em nome da saúde pública, outra é fazê-lo para proteger os lucros estratosféricos de acionistas a quem saiu, sem qualquer risco, a sorte grande.

Ouvi Marques Mendes defender um passaporte nacional, como existe em alguns países. Ele permitiria aos vacinados entrar em estabelecimentos (ou partes deles) vedados aos que não o estão. Apesar de não me agradar, poderia aceitar esta ideia quando a vacinação estiver terminada, se houver muitas pessoas a recusar a vacina, o que não é provável. Quem escolhe não participar no esforço coletivo porque quer entregar os riscos aos outros que lide com as suas escolhas. Mas, até a vacina ser um direito acessível a todos, isto é impensável. Para o que é relevante, que não pode ser tudo, há os testes.

É assustador percebermos até que ponto estamos disponíveis para viver em sociedades de castas sanitárias. As distopias estão, por estes tempos, mais perto do comentário político do que da ficção científica. Todos temos pressa de ver a economia a andar. Mas é bom ter cuidado e saber para onde nos levam os atalhos.»

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15.6.21

Vergonha alheia



 


Vivo eu há tanto anos para ter um PR que diz isto sem ter vergonha na cara. Tenho eu: VERGONHA ALHEIA.

«"Hoje é dia de futebol, e aqui estamos todos unidos em torno do futebol e, portanto, eu não vou agora estar a falar de outros temas, porque é desconcentrar o fundamental. Temos de estar focados, e estamos todos focados: o senhor primeiro-ministro, o senhor presidente da Assembleia da República, eu próprio, o senhor presidente [da Federação Portuguesa de Futebol] Fernando Gomes, os portugueses todos", afirmou Marcelo Rebelo de Sousa.»
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Bola. Dia dela


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Há quem aproveite

 


... a falta de civismo dos outros.
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As pessoas que odeiam Abril



 

«Tem sido tema de debate as celebrações dos 50 anos do 25 de Abril, que agora conheceram o seu comissário. À direita, houve grande alarido pela escolha de Pedro Adão e Silva. Parece-me muito pouco interessante discutir os detalhes das comemorações, assim como a escolha que foi feita. Muito mais profundo é o debate acerca da reacção.

Na verdade, desde que a Iniciativa Liberal e o Chega ganharam representação parlamentar, as celebrações anuais do 25 de Abril têm sido objecto de ataque, seja à festa em si, seja à relevância da Revolução como evento benéfico para Portugal.

A Iniciativa Liberal expressa, essencialmente, o seu fascínio pelo 25 de Novembro, não aceitando dissociar a democracia que temos dessa data posterior. Já o Chega vai mais longe e diz que a República que emergiu do 25 de Abril (e do 25 de Novembro) é uma República podre e corrupta, e que temos que avançar para uma nova era.

No PSD e no CDS, que são partidos da fundação da democracia, as críticas tendem a não ser tão explícitas, embora existam há muito (só vocalizadas na autonomia madeirense, por Alberto João Jardim). Na prática, à medida que o tempo passa, fica cada vez mais fácil, para aqueles que nunca gostaram do 25 de Abril, criticá-lo.

É fundamental entender que o 25 de Abril não foi uma transição pacífica de um modelo político para outro. O 25 de Abril foi uma revolução, foi um golpe de Estado, um golpe militar praticado por jovens capitães (não por Marechais instalados) que, só depois, obteve alargadíssimo apoio popular. Isso significa que o 25 de Abril foi a vitória de muitos, mas a derrota de outros.

Acontece que esses que perderam ainda existem, têm descendentes e nem sequer são poucos. Se somarmos todos os que estavam bem instalados no regime ditatorial (seja em funções públicas – de PIDE a parlamentares, passando por magistrados – seja nas grandes empresas amigas do regime), os que tinham vastas propriedades em território nacional, ou nos territórios ultramarinos, e todas as pessoas que perderam as suas posses, e até o seu país, com a descolonização, vamos apanhar muitíssimos perdedores de Abril.

Há muitos portugueses que ficaram pior depois desse dia. É entre essas pessoas que mais encontramos aqueles que nunca gostaram da data, nunca a celebraram, mas foram mantendo o seu ressentimento mais escondido. À medida que o tempo passa, e o “ar do regime” vai mudando, esses ressabiamentos ficam mais livres para emergir.

De facto, é nestes últimos tempos que temos visto muita gente ligada aos perdedores de Abril a aproveitarem tudo para minimizar os ganhos da Revolução, argumentando que a Revolução conduziu a um regime democrático, mas corrupto e pobre, ou tentando suavizar o fascismo com narrativas de que, afinal, o fascismo nem era assim tão mau, que até alfabetizou as crianças e fez o PIB convergir com a Europa.

O 25 de Abril fez-se para acabar com a guerra colonial (a morte de muitos jovens e o sofrimento vão de muitas famílias) e implantar uma democracia liberal, e teve o apoio popular imediato porque o regime estava podre, pobre e era imbecil.

Aliás, comparando a evolução do desenvolvimento humano de Portugal, durante a ditadura e em democracia, torna-se cristalino o quanto a ditadura foi má para a esmagadora maioria dos portugueses, e a democracia benéfica para a maioria, nomeadamente para os mais pobres e para uma classe média que, entretanto, se formou.

Mas há aqueles que tinham beneficiado mais se o regime tivesse continuado ditatorial e tivesse havido uma transição gradual para um regime de democracia musculada (que muito agradaria aos que odeiam Abril).

Se é verdade que muitos donos de grandes empresas do Estado Novo recuperaram o seu poder a partir dos anos 80/90 (a tempo de perpetuarem a nossa fragilidade económica – veja-se o caso de Ricardo Salgado e da família Espírito Santo), outros há que não conseguiram tal recuperação, pelo que estariam melhor se nunca tivesse existido o 25 de Abril.

Quando se pretende celebrar os 50 anos do 25 de Abril, obviamente, está-se a celebrar o regime que existe, o Portugal que existe, a democracia que existe e, sim, os que venceram com Abril (que são a grande maioria dos portugueses). Não é, portanto, de espantar que os que perderam não sejam grandes fãs da festa.»

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14.6.21

14.06.1940 – Paris

 



Há 81 anos, o exército alemão entrou em Paris, de onde já tinham fugido dois terços da população. Como primeiro acto da ocupação foi retirada a bandeira tricolor do Ministério da Marinha e colocada uma com a cruz gamada no cimo do Arco do Triunfo.
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AVISO IMPORTANTE

 

Fui alertada por um leitor que recebe habitualmente notificações dos novos posts deste blogue POR MAIL que há três dias que isso deixou de acontecer. Trata-se de uma facilidade gerida pela plataforma Blogger, na qual não tenho qualquer interferência e espero que regresse ao funcionamento normal. Até lá, a única solução é entrar directamente por https://entreasbrumasdamemoria.blogspot.com/ e ver o que há de novo…

Estou a tentar antecipar uma outra facilidade prevista para fim de Julho, mas levará algum tempo a verificar se funciona, quando e como.
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Diálogos entre políticos – o estado da arte

 

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E Carlucci a bater palmas lá nos eternos céus a que subiu

 




Se não tivesse ouvido as primeiras declarações de Costa sobre o caso CML, garanto que duvidava destas. (E Carlucci a bater palmas lá nos eternos céus a que subiu.)

«Bom, ninguém me vai pedir seguramente explicações sobre processos administrativos, porque ninguém tem dúvidas sobre qual é o papel de Portugal relativamente à Rússia. Já ninguém teve dúvidas quando, durante o PREC, qual foi a posição que Portugal e a maioria dos portugueses tomaram, quando em plena ‘guerra fria’ estava em causa saber de que lado nos colocávamos. Essa é uma dúvida que felizmente não existe.»
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Ó tio, o arraial foi giríssimo

 


«A Iniciativa Liberal (IL) foi uma lufada de ar fresco, um partido liberal que chegou com vinte anos de atraso ao Parlamento e finalmente institucionalizou um espaço para uma ideologia subrepresentada. Fez uma boa campanha nas legislativas, tomou posições relevantes na Assembleia, apoiou o candidato surpresa nas presidenciais e trilha um caminho de relevância, se ganhar estrutura partidária e maturidade política. É compreensível que ainda não as tenha, mas é incompreensível que não perceba que precisa delas. Que não perceba que a sua consistência ideológica é ainda limitada, quase exclusivamente à economia e ao deslumbre com os anos 80 de Thatcher e Reagan. Que não perceba que a irreverência da comunicação é eficaz ante o cinzentismo dominante, mas que há coisas que não são irreverentes, são infantis. Disparar setas a retratos de adversários políticos é pior que mau gosto, é metáfora de associação de estudantes. O “decapitar” de André Ventura e o “extermínio” de Susana Garcia também são metáforas.

O arraial de Santo António do IL foi uma tolice pegada, em que o partido não inspirou nem se abriu, confinou-se numa ilha de doçuras e travessuras, e fez pouco dos lisboetas, da DGS, dos adversários políticos e de si próprio. Há vários argumentos para criticar a festança, mas deixo para o fim um menos evidente. Os mais evidentes foram o recurso ao privilégio legal concedido a manifestações políticas para fazer uma sardinhada; foi não garantir regras de segurança sanitária, deixando amontoar desmascarados junto ao palco num “e quem não salta!” que, sei lá, deve ter sido o máximo; foi gozar com a cara dos lisboetas dos bairros que viram vedada a festa popular mais importante da cidade e com a função das forças de segurança que à mesma hora mandavam destroçar jovens e turistas no Bairro Alto; foi entrar em contradição com o que disseram da festa do Avante!, que ao pé desta pândega foi de uma disciplina militar; foi arriscar surtos num concelho que travou no desconfinamento e corre o risco de recuar.

Tudo alta política, portanto. É aqui que quero chegar. O arraial nem uma paródia irónica sobre a política vigente foi. A IL agiu como partido antissistema, ignorando a DGS e rebelando-se com setas de borracha e balõezinhos contra o mesmo sistema institucional que, aliás, a respeitou institucionalmente, deixando-a fazer comédia de um direito democrático. A IL tem debatido com argumentos válidos a suspensão de direitos constitucionais, criticou a banalidade do Estado de Emergência e tem canalizado a zanga de muitos contestatários aos confinamentos rápidos e aos desconfinamentos lentos. Os que não são negacionistas têm argumentos que vale a pena analisar e rebater, até porque o equilíbrio entre controlo sanitário e os impactos económicos e na saúde mental implica decisões controversas. Mas a IL não falou disso nem desses nem para esses, fez uma patuscada para gozar com o país contagiando-se de “vão à fava!”.

Foi um arraial giríssimo. Agora dá para a IL voltar a ser um partido sério? Sei lá, comece por crescer um bocadinho, ‘tá a ver?»

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13.6.21

Descubra as diferenças

 


Em Portugal, a IL, num arraial, «divertiu-se» a fazer tiro ao alvo a políticos, com especial relevo para um manequim vestido de Pedro Nuno Santos. E nós, sentados em sofás, escandalizamo-nos e pomos fotografias.

Em França, dezenas de milhares manifestaram-se nas ruas contra a extrema-direita.
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Tarrafal: já não é sem tempo!

 



«Situado na localidade de Chão Bom, o antigo Campo de Concentração do Tarrafal foi construído no ano de 1936 e recebeu os primeiros 152 presos políticos em 29 de outubro do mesmo ano, tendo funcionado até 1956.

Reabriu em 1962, com o nome de "Campo de Trabalho de Chão Bom", destinado a encarcerar os anticolonialistas de Angola, Guiné-Bissau e Cabo Verde.

Ao todo, foram presas neste "campo da morte lenta" mais de 500 pessoas: 340 antifascistas e 230 anticolonialistas.»
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Nem Hollywood, nem Bollywood. Pollywood



 

«Sem ironia, podemos dizer que Portugal caminha da mesma forma que uma galinha voa: um salto, uma queda, outro salto, outro trambolhão e volta sempre tudo ao princípio. As crises transformam-se em momentos de euforia e estes em crises mais ou menos profundas. As últimas centenas de anos mostram como esta galinha levanta voo, sempre baixinho e, depois, espalha-se no chão. Sem nada de fundamental mudar. Portugal é uma galinha cacarejante com asas pequenas. Um país de pequenos interesses, de pequenos clubes, de pequena economia, de pequena política, de pequenas ideias. As crises sucedem-se e continuamos sem um projecto de país. Cada tempo tem o seu Dom Sebastião: a pimenta, o ouro do Brasil, os fundos europeus, a bazuca, o turismo. E, claro, os empréstimos externos e a austeridade. E homens ditos providenciais.

Portugal vive numa ficção permanente. Mas não é Hollywood. Nem Bollywood. É Pollywood. Não temos grandes produções. Nem dramas comoventes. Em vez de termos o mundo a nossos pés, pedimos aos outros para nos darem pontapés. Por alguma razão os portugueses depositam todas as suas esperanças no futebol. Ou na raspadinha. A classe política, e muita da empresarial, governa-nos com um tipo de mentalidade adolescente cujo padrão de conduta se inspira em personagens do Netflix, assessorados por guionistas que tratam os cidadãos como espectadores de séries. Para eles, a política e a vida diária é uma mistura de um jogo de computador e de uma app. Não desesperemos. É o sinal dos tempos. Há dias, Elon Musk passou a ocupar o cargo de Technoking da Tesla e o chefe financeiro da empresa passou a ser designado como Mestre da Moeda. Não é uma piada de 628 mil milhões de dólares, que é o valor da Tesla na Bolsa. Um pouquinho mais do que o PIB de Portugal.

Esta infantilidade contamina. Vai-se vendo na forma como os responsáveis gerem interesses em vez de governarem o país. A partidarização do sítio tornou Portugal asfixiante. Como o poder é retirado a especialistas para ser dado a assessores reclináveis, Pollywood continua a rodar uma nova versão de um filme dos irmãos Marx. Mas com actores secundários e estagiários. Siga-se o enredo: o Novo Banco é uma Matrioshka de enganos; descobrem-se as virtudes do SNS num momento de crise profunda, mas durante anos PSD e PS tudo fizeram para o asfixiar; há um escândalo nacional por causa dos trabalhadores migrantes de Odemira, mas o ministro do Ambiente nunca reparou nas planícies de plástico que cobrem zonas do país, nem nunca reparou que não haverá água para alimentar o desvario pouco ambiental das explorações intensivas; a gestão das áreas protegidas são entregues aos interesses municipais e partidários; os painéis de Nuno Gonçalves são alvo de operação de restauro, mas não se sabe se há dinheiro para ter ar condicionado nas salas onde estão obras de arte como essas; promete-se uma “bolha de segurança” na final da Liga dos Campeões, mas ela rebenta nas mãos da ministra da Presidência e da Reforma Administrativa, ficando-se sem se saber quem negociou, e como, com a UEFA (deve ter sido o ciclista da Glovo que trouxe os hambúrgueres); o PSD de Rui Rio afunda-se a discutir se Pedro Adão e Silva deve estar cinco dias ou cinco anos como responsável pelas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril; o MEL discute apenas economia, mas esquece-se de debater cultura, questões sociais ou saúde, porque o liberalismo indígena acha que os números explicam tudo; o CDS torna-se o partido de Lilliput. Mas Pollywood começou a rodar a série mais pindérica que possa ser imaginada: “O Regresso da Brigada do Reumático”. Ela sintetiza o que PS e PSD actuais desejam para o país: a partidarização de tudo, incluindo as Forças Armadas. Esse é o legado transparente deste regime que se vai desmoronando. Porque só tem duas tácticas: partidarização e turismo. Tudo o resto é um filme de zombies. Ou seja, o Governo finge que governa (enquanto apenas gere interesses de uma casta), a oposição finge que se opõe e todos esperam que chova dinheiro de Bruxelas para acabar com a seca. Porque já resta pouco para vender.

Somos um país endividado, e sem estratégia de médio ou longo prazo, servimos tremoços em bandejas a turistas. Somos o Pollywood da precariedade, um documentário turístico de baixo custo, e nem com salários baixos saímos deste pântano. Gastamos o dinheiro que não temos a fazer marquises como a que destruiu esteticamente o Palácio da Ajuda. Não temos dinheiro e vendemos aquilo que poderia trazer riqueza ao país. Aqui não se fazem investimentos. Combinam-se negócios. Sobretudo com o dinheiro dos outros.

Mas o nosso maior défice é o das ideias. Na nossa elite política ninguém acredita que a cultura e o conhecimento continuam a ser importantes para a sociedade em geral e para se perceber a política global. Afinal, se tudo está na internet, como diz um antigo especialista em economia e jovem historiador da moda, para quê gastar dinheiro com o pensamento, com a reflexão, com a estratégia? Basta contratar “boys” e “girls” para as direcções-gerais, para os institutos e para qualquer outro serviço bem remunerado. Lembre-se só que, após a Grande Depressão, o Presidente Roosevelt, no meio dos seus planos económicos, colocou um em marcha: o Projecto Público de Obras de Arte. Contrataram-se milhares de artistas que produziram obras e arte, esculturas para edifícios públicos, livros, peças de teatro ou música. O nosso Plano de Recuperação e Resiliência, elaborado à volta da economia macro, esquece esse mundo. A cultura é fundamental para a sociedade se conhecer a si mesma. Mas como a classe política não vê, não vê e só come telefones como o irmão Marx porque julgava que sabiam a chocolate, nada se pode esperar.

Se Os Lusíadas de Camões era o poema sobre “a partida”, Pátria, de Guerra Junqueiro, era-o sobre o “regresso”. Entre esses dois destinos nunca conseguimos descobrir o que queríamos fazer de Portugal, sempre perdidos entre o esbanjamento, a incapacidade de acumular capital que pudesse ser produtivo, entre a eterna dívida e défice. Nada mudou. Não há neste Governo, nem na oposição, um modelo para o futuro de Portugal. Não há estratégia: há tácticas sucessivas. Os sinais de degradação do regime são gritantes, porque os principais partidos políticos não percebem que a crescente pobreza do país vai radicalizar cada vez mais os portugueses. Antero de Quental já temia isso quando escreveu há mais de um século: “Portugal ou se reformará, política, intelectual e moralmente, ou deixará de existir.” Portugal resistirá. Este regime, não sabemos.»

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Bom dia!

 

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