6.1.24

Dia de Reis, por supuesto

 

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Carta à República

 



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Bloco de Esquerda

 


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Dia de Reis?

 


Comam Bolo-Rei, republicanos e monárquicos (também há, também há) comam Bolo-Rei!
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A destruição da razão

 


«Há muitos anos que escrevo sobre um dos factores que penso estar na origem da crise das democracias, o domínio da política democrática pela sua transformação num contínuo político-mediático, que diminui a autonomia da decisão política e a torna cada vez mais dependente dos mecanismos da comunicação social e da sua evolução. Seguindo as tendências actuais, da ignorância agressiva, à culpabilidade afectiva, à colocação da racionalidade como uma coisa do passado e de velhos, sem capacidade de competir com o glamour da superficialidade, tudo puxando para baixo, a política foi pelo mesmo caminho de vulgaridade e comodismo.

Isso afecta a qualidade da democracia, e o contínuo político-mediático muda o carácter daquilo a que chamávamos jornalismo. Não adianta virem-me dizer que essa relação existiu desde sempre em democracia, porque a resposta é não.

Na forma actual, é um fenómeno recente porque não temos, de um lado a política, os partidos, os políticos e, do outro, os jornais, a rádio e a televisão, influenciando-se mutuamente pela mediação da chamada “opinião pública”, mas apenas um lado, o sistema político-mediático, em que cada vez mais os factos, as opiniões, as interpretações são moldados por mecanismos mediáticos em que participam políticos e jornalistas, cada vez mais com uma cultura de acção semelhante e dependente de efeitos comunicacionais tais como a novidade, o timing, o tipo de resposta, a rapidez, a frase assassina, a falta de estudo e de rigor. As redes sociais e novas formas de acesso àquilo que passa por ser informação, mas que é pouco mais do que entretenimento afectivo, apagaram o ethos e o logos, a favor do pathos.

Mergulhadas numa pasta emotiva e lúdica, as pessoas são mais pobres na cabeça e remediadas no corpo. E como há quem saiba aproveitar-se disto, são usadas e perdem a liberdade de decidir. Isso aproxima o contínuo político-mediático de formas modernas de propaganda, chamada agora marketing político, em que, de novo, mais uma vez, a principal perda é a da autonomia da política, mas também do jornalismo. E facilita a manipulação por interesses sociais, económicos e culturais, nacionais e geopolíticos. A interferência russa nas eleições americanas de 2016 e no “Brexit”, o papel de empresas como a Cambridge Analitics, fornecendo estudos que permitem manipulações de grupos seleccionados, são mais a regra do que a excepção, e esse mundo só se combate pela cultura, pelo saber, e pela firmeza na acção.

O que se passa em Portugal, um pouco como na Europa, tem relação directa com o alimentar do populismo. Sim, os governos fazem asneiras, há políticos corruptos e apanhados em mentiras, tudo isto é verdade. Têm uma enorme responsabilidade. Mas nada disso seria tão eficaz a alimentar o populismo sem a existência deste contínuo político-mediático que produz a chuva de migalhas que alimenta a extrema-direita.

A informação torna-se muito pobre, a manipulação muita. Isto permite a quem tenha meios e recursos recorrer a profissionais da desinformação ou, no caso dos Estados, a serviços secretos, para obter resultados usando todas as técnicas, das fake news à inteligência artificial, para moldar segundo os seus interesses a opinião pública, logo, o voto.

No caso português, a dominação da vida mediática pela direita política não é de agora. Embora se continue a dizer que a maioria dos jornalistas são de esquerda, isso tem um pequeno papel face àquilo a que antes se chamava as ideias dominantes. Uma parte da nossa esquerda abandonou a luta social em nome das modas “fracturantes”, falando assim para pequenas minorias intelectuais urbanas, fazendo um enorme serviço à direita canalizando para as “guerras culturais” de elite a sua energia e deixando os milhões de portugueses, que são pobres, excluídos e explorados, fora de moda, o que também significa apagá-los da sua condição existencial num limbo comunicacional como “pobres, sujos e maus”. Esses portugueses não brilham no escuro como as novas vedetas do neocapitalismo triunfante, como as start-ups, os “unicórnios”, os empreendedores, os nerds das novas tecnologias, as influencers, heróis do jetset e das redes sociais. O resultado é que muitas ideias da direita política ficaram na moda, dominaram jornais e televisões, num terrível mecanismo de não-pensamento e de ignorância.

Veja-se um exemplo dos anos da troika, em que a chamada TINA, a ideia de que não havia alternativa a uma política de austeridade tendo como alvos os “de baixo”, se tornou na vulgata ideológica que políticos, jornalistas, lobistas repetiram da direita à esquerda. Quando alguém apresentava uma proposta, a primeira pergunta era “quanto custa?”, em vez de ser “qual o mérito da proposta?”, mesmo que custasse algum dinheiro. E poderia também ser “quem é que a vai pagar?”. “Quanto custa?” é uma pergunta que tem sentido, principalmente em tempos de escassez, mas teria de ser sempre a segunda pergunta, e não a primeira. A partir daqui estamos num terreno de legitimação da TINA, que depois se somava à apresentação selectiva de alvos nas despesas de segurança social, nos pensionistas e nos idosos, a “peste grisalha” que ameaçava o futuro dos jovens.

Nos dias de hoje, o contínuo político-mediático é um excelente instrumento para a manipulação do justicialismo, que sabe para quem orientar as suas fugas de informação – jornalistas e órgãos de comunicação –, escolhendo o tempo dessas fugas para obter ou efeitos políticos ou efeitos de autojustificação dos seus actos quando fez asneiras, mas acima de tudo escolhendo os interlocutores das fugas que sabe que lhes darão de imediato a máxima publicidade e as apontarão aos alvos escolhidos. Antes de alguém parar para pensar e ver o que há de substancial, já títulos e frases estão por todo o lado e a sua impressão não é apagável.

É que, no passado, a política em democracia era suposto servir o bem-estar das pessoas, e o jornalismo a informação e o escrutínio do poder. Hoje, o sistema político-mediático serve interesses e intenções dos poderosos, mas deixa as pessoas comuns com menos liberdade e menos poder. É, para alguns, trabalho bem feito. Para a democracia, é péssimo.»

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5.1.24

Chegou hoje?

 


Alguns pensam que sim e que está já num Congresso.
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Luiz Pacheco

 


Teria hoje 93 anos, mas deixou-nos em 05.01.2008. Se ainda por cá andasse, seria certamente tão irreverente como sempre foi. Alguma dúvida?

Para compreender melhor a sua pessoa e a sua obra, a leitura de Puta que os pariu! – A biografia de Luiz Pacheco, de João Pedro George, é absolutamente obrigatória.



Texto de uma intervenção pública de Luiz Pacheco:

O QUE É O NEO-ABJECCIONISMO

Chamo-me Luiz José Machado Gomes Guerreiro Pacheco, ou só Luiz Pacheco, se preferem. Tenho trinta e sete anos, casado, lisboeta, português. Estou na cama de uma camarata, a seis paus a dormida. É asseado, mas não recebo visitas. Também não me apetece fazer visitas. A Ninguém. Estou bastante só. Perdi muito. Perdi quase tudo.

Perdi mãe e perdi pai, que estão no cemitério de Bucelas. Perdi três filhos – a Maria Luísa, o João Miguel, o Fernando António –, que estão vivos, mas me desprezam (e eu dou-lhes razão). Perdi amigos. Perdi o Lisboa; a mulher, a Amada, nunca mais a vi. Perdi os meus livros todos! Perdi muito tempo, já. Se querem saber mais, perdi o gosto da virilidade; se querem saber tudo, perdi a honra. Roubei. Sou o que se chama, na mais profunda baixeza da palavra, um desgraçado. Sou, e sei que sou.

Mas, alto lá! sou um tipo livre, intensamente livre, livre até ser libertino (que é uma forma real e corporal de liberdade), livre até à abjecção, que é o resultado de querer ser livre em português.

Até aos trinta e sete anos, até há bem pouco tempo ainda, portanto, julguei que podia, era possível, ser livre e salvar-me sozinho, no meio de gente que perdeu a força de ser (livre e sozinha), e já não quer (ou mui pouca quer) salvar-se de maneira nenhuma. Julgava isto, creiam, e joguei-me todo e joguei tudo nisto. Enganava-me. Estou arrependido. Fui duro, fui cruel, fui audaz, fui desumano. Fui pior, porque fui (muitas vezes) injusto e nem sei bem ao certo quando o fui. Fui, o que vulgarmente se chama, um tipo bera, um sacana. Não peço que me perdoem. Não quero que me perdoem nada. Aconteceu assim.

Eu para mim já não quero nada, não desejo nada. Tenho tido quase tudo que tenho querido, lutei por isso (talvez o merecesse). Agora, já não quero nada, nada. Já tudo, tanto me faz; tanto faz.

Agora, oiçam: tenho dois filhos pequenos, o Luis José, que é o meu nome, e a Adelina Maria, que era o nome de minha Mãe. O mais velho tem 4, a pequenita dois, feitos em Fevereiro, a 8. Durmo com uma rapariga de 15 anos, grávida de sete meses, e sei que ela passa fome. É natural que alguns de vocês tenham filhos. Que haja, talvez, talvez por certo, mães e pais nesta sala. Não sei se já ouviram os vossos filhos dizerem, a sério, que estão com fome. É natural que não. Mas eu digo-lhes: é essa uma música horrível, uma música que nos entra pelos ouvidos e me endoidece. Crianças que pedem pão (pão sem literatura, ó senhores!) pão, pãozinho, pão seco ou duro, mas pão, senhores do surrealismo, e do abjeccionismo, e do neo-realismo e mesmo do abstraccionismo! Este mês de Março que vai acabar ou já acabou, pela primeira vez, eu ouvi os meus filhos com fome. E pela primeira vez, não tive que lhes dar. Perdi a cabeça, para lhes dar pão (ainda esta semana). Já não tenho que vender, empenhei dois cobertores, e um nem era meu. Tenho uma máquina de escrever, que é a minha charrua, e não a posso empenhar porque não a paguei; e tenho uma samarra, que no prego não aceitam porque agora vai haver calor e a traça também vai ao prego… Já não tenho mais nada. Tenho pedido trabalho a amigos e a inimigos. Humilhei-me, fiz sorrisos. Senti na face, expelido com boas palavras e sorrisos, o bafo da esperança, da venenosa esperança; promessas; risinhos pelas costas. Pedi trabalho aos meus amigos: Luís Amaro, da Portugália Editora; Rogério Fernandes, de Livros do Brasil; Artur Ramos; Eduardo Salgueiro, da Inquérito; dr. Magalhães, da Ulisseia; e Bruno da Ponte, da Minotauro, aqui presente, decerto. Alguns têm-me ajudado; mas tão devagarinho! tão poucochinho!

Sim, porque eu não faço (já agora, na minha idade!) todos os trabalhos que vocês querem! Só faço, já agora, coisas que sei e gosto: escrever umas larachas; traduzir o melhor que posso; mexer em livros, a vendê-los ou a fazê-los.

Nem quero vê-los a vocês, todos os dias! Ah! Não! Era o que me faltava! Vocês têm uma caras! Meu Deus, que caras que nós temos! Conhecem a minha? Vão vê-la ali ao canto, na folha rasgada do meu passaporte (sim, porque viagens ao estrangeiro (uma…) também já por cá passaram…) Viram? É horrível!… A mim, mete-me medo! Mas é uma cara de gente. E isso não é fácil.

Dizia eu: eu quero trabalhar na minha máquina, sozinho, ou rodeado da minha Tribo: os miúdos, uma mulher-criança, grávida. E, às tardes, ir passear pela Avenida Luísa Todi ou na ribeira do Sado. Acho que nem era pedir muito. E para mim, é tudo.

Já pedi trabalho a tanta gente, que já não me custa (envergonha) pedir esmola. Confesso-lhes: até já o fiz, estendi a mão à caridade pública, recebi tostões de mãos desconhecidas, de gente talvez pobre. E tenho pedido emprestado, com a convicção feita que não o poderei pagar. É assim.

Eu para o Luiz Pacheco, repito, não quero nada, não desejo nada, não preciso de nada; mas para os bambinos! E para o bebé que vai nascer! Roupas; leite; pão; um brinquedo velho… Dêem-me trabalho! Ou: dêem-me mais trabalho.

E para findar esta Comunicação, remato já depressa:

Peço uma esmola.
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Malangatana

 


Morreu num 5 de Janeiro, deixou de estar por aí há treze anos.

Foi o grande pintor que Moçambique não esquecerá, para mim também o amigo com quem vivi momentos inesquecíveis, nuns tempos que passou em Lisboa já lá vão mais de 50 anos. Pintou e ofereceu-me este auto-retrato que tenho aqui à minha frente – uma relíquia.

Ler AQUI um texto que escrevi há alguns anos.
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A arqueologia do 25 de Abril e a esperança de uma nova oportunidade

 


«Na sua mensagem de fim de ano, Marcelo Rebelo de Sousa falou da importância do início do próximo ciclo de 50 anos desde o 25 de Abril de 1974.

Tem razão o Presidente da República!

Sobre o 25 de Abril é mais relevante o que falta fazer do que aquilo que já está feito.

Há uma certa tendência de alguns partidos políticos para falarem, sobretudo, das conquistas de Abril, esquecendo o que está por cumprir.

Nestes cinquenta anos que passaram sobre Abril de 1974 há conquistas que, em princípio, e sublinho, em principio, já ninguém nos tira.

A liberdade individual, pois claro, a liberdade de imprensa, a liberdade sindical, o fim da polícia política, a liberdade de associação e reunião, a construção de um edifício institucional que é hoje o pilar da nossa vida política, a sedimentação de uma realidade constitucional que nos protege a todos enquanto cidadãos e que garante os nossos direitos e deveres colectivos. É aquilo que, sendo decisivo, é de certo modo, a arqueologia do 25 de Abril.

Contudo, mais importante, é o que Abril de 1974 ainda não conseguiu. Era suposto que passados 50 anos sobre a icónica data não fossemos mais um país pobre, envelhecido e sem futuro à vista. Mas, hoje, um quinto dos portugueses vive fora de Portugal. Os jovens procuram emprego no exterior para terem um vencimento decente. Divergimos dos países da Europa Ocidental há vinte anos.

Deveríamos hoje, estar ao nível dos países mais avançados da União Europeia. Sim, deveríamos ter a pujança de uma Bélgica, a felicidade de uma Dinamarca, o desenvolvimento económico de uma Irlanda, ou, para sermos mais modestos, estarmos, pelo menos, ao nível da Espanha. Nada disso aconteceu. E tivemos todas as ferramentas para o conseguir.

A União Europeia “abriu os cordões à bolsa” com fundos europeus que, desde os anos 80, anualmente, corresponderam a cerca 3% do PIB nacional.

Portugal recebeu cerca de 130 mil milhões de euros de ajudas comunitárias desde que aderiu à União Europeia até ao início de 2023.

Até 2030, o valor da “bazuca”, lembram-se do termo, será de cerca de 57 mil milhões de euros. E, até 2026, nos cofres do Estado vão ainda entrar 22 mil milhões de euros. Não nos podemos queixar, então, de falta de dinheiro. O problema é saber se ele foi bem aplicado. E qual o resultado dos cerca de 380 euros por português, recebidos da União Europeia, desde 2014 até 2020?

Falta, assim, que Abril cumpra o que é mais vital para a vida das pessoas. Ou seja, o crescimento económico que nos possibilite estar ao nível dos países mais desenvolvidos da União Europeia, como os atrás mencionados.

Seguramente, que se recordam da famosa canção revolucionária de Abril de 1974/75 quando se gritava, a plenos pulmões: “Só há liberdade a sério, quando houver, a paz, o pão, habitação, saúde, educação."

Pois bem, acham os caros leitores, em consciência, que está garantido para a esmagadora maioria dos portugueses, aqueles cinco itens do desenvolvimento social e económico? Paz, felizmente, que temos. Portugal é, actualmente, um dos países mais seguros da Europa, senão do mundo. Mas que dizer do pão, com o aumento da pobreza! Ou o que pensar da habitação onde não garantimos, ao longo de décadas, as condições de mercado, cooperativas, públicas, para que houvesse no país uma oferta de habitação para todos e, sobretudo, para os mais jovens. Ou a saúde, que teve um importante incremento no pós 25 de Abril e que hoje vemos ir, “por água abaixo”, com uma degradação acentuada dos serviços prestados. Sobre a educação penso que, todos, estamos conscientes do estado em que esta área sectorial se encontra.

Teve, assim, razão o Presidente da República em chamar atenção para esta segunda oportunidade expressa nos próximos cinquenta anos que aí vêm, a partir de 2024.

É que se perdermos esta segunda oportunidade, no fim da linha, Portugal talvez não venha a ser muito mais do que uma espécie de Venezuela da Europa.»

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4.1.24

Street Art

 


Chinatown de Singapura.
Yip Yew Chong.

Daqui.

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A estranha morte do centro-direita

 

«Também o centrismo moderado de Macron sucumbiu às pressões crescentes da imigração. A nova lei, aprovada no final de dezembro, irá excluir imigrantes não europeus do acesso a subsídios nos primeiros 30 meses ou cinco anos de permanência no território, consoante estejam ou não empregados, permitindo a discriminação em função da nacio¬nalidade. O ministro do Interior francês argumentou que o endurecimento das políticas migratórias era uma condição essencial para travar o crescimento do Rassemblement National, de Marine Le Pen, que se encontra em primeiro lugar nas sondagens. Isso não impediu Le Pen de reclamar a “vitória ideológica” pela aprovação destas medidas.

Na verdade, se travar a extrema-direita implica sucumbir às suas políticas e à sua cartilha ideológica, então a morte do centro-direita e do conservadorismo moderado é não só estranha, mas, sobretudo, autoinfligida.»

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Mudança?

 

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O Portugal feliz por ser remediado

 


«No seu discurso de encerramento do 41.º Congresso do PSD, Luís Montenegro teve um daqueles momentos de humildade que os eleitores veneram: “As pessoas esperam mais de mim do que eu fui capaz de mostrar até agora”, disse. Passou um mês, mudou o ano e as últimas sondagens provam que o líder do PSD continua a não mostrar nada de jeito. Pode ser por falta de carisma. Pode ser por causa da casa de Espinho sobre a qual ainda faltam explicações. Pode ser pela ausência de ideias mobilizadoras, pela solidão que mostra, pela memória do “passismo” ou pela sua dificuldade em despir-se daquele sorriso ambíguo com que ilustra as suas intervenções. Pode ser por tudo isso, mas Montenegro pode também ser vítima do conformismo.

No mundo assustador em que vivemos, Portugal parece estar feliz com a sua condição periférica de país remediado. A incerteza reclama prudência e mudar implica riscos. O Portugal “do mal, o menos”, do “vamos andando”, do “nunca pior”, do “antes assim” tornou-se uma ferramenta do conservadorismo pátrio. E não, a culpa não é dos eleitores ou apenas dos eleitores. O PS alimenta essa visão com pragmatismo e eficácia e, depois de Rui Rio ter ensaiado uma aproximação a esse conservadorismo, Luís Montenegro institucionalizou-o. Se o adversário ganha pelo apoio dos pensionistas e funcionários públicos, é aqui que ele acredita que tem de apostar. Mais do que política, move-o a contabilidade.

O reformismo do velho PSD ou o liberalismo quase radical de Pedro Passos Coelho foram, assim, para a gaveta. O PSD decidiu disputar o programa do PS, não por convicção doutrinária, mas por constatar que funciona. O partido entrou no leilão das promessas para o vasto eleitorado do partido-Estado não por causa das ideias, mas por oportunismo. Ana Sá Lopes percebeu o que estava em causa logo no congresso, escrevendo que Montenegro “cumpriu um objectivo essencial para quem quer ganhar as eleições, que foi a de começar a reverter a dinâmica de um PSD contra os pensionistas”. Como o conseguiu? Tornando o PSD um apêndice do PS.

A opção levanta à partida duas questões: primeira, a de criar uma mensagem ambígua nem seduz o seu eleitorado, nem o eleitorado tradicional do PS; segunda, a estratégia de combater o PS no seu terreno e com as suas armas parte da ideia falsa de que os funcionários públicos ou os pensionistas são uma massa informe que vive à espera da distribuição de migalhas. Haverá muitos que decidem lógica e naturalmente em função da melhoria das suas pensões ou salários. Mas haverá muitos mais que se preocupam com o país ou com os custos da letargia para os seus filhos e netos. Podem estar preocupados com aumentos ou com a recuperação integral do tempo de serviço, mas, como cidadãos, querem acima de tudo um país dinâmico, próspero e justo.

Por estes dias, esses cidadãos hão-se sentir-se órfãos. Os que se habituaram a ver no PSD um partido corajoso, capaz de arriscar, de ousar reformas, de se aliar aos sectores mais dinâmicos da sociedade e apresentar uma visão de conjunto para o país em vez de o fatiar na falsa dicotomia público/privado só podem estar desconfortáveis. “Eles”, os partidos de poder, são cada vez mais iguais, até na forma como pretendem ser diferentes. Pedro Nuno Santos quer a quadratura do círculo, propondo-se ser herdeiro de António Costa e a antítese de António Costa embalada no voluntarismo; Luís Montenegro ensaia uma pirueta na mesma improvável ao querer um PSD reformista que, ao mesmo tempo, dá máxima prioridade às contas das pensões, dos subsídios e dos salários públicos. Entre um Portugal medroso e calculista e um país ambicioso, Montenegro escolheu. Entrou no campo onde o PS demonstra ser imbatível.

O que pode por isso explicar as dificuldades de Luís Montenegro e do PSD nas sondagens é a sua crença em que o país vota apenas por desejo e vontade de “viver habitualmente”, como outrora. Os jovens ouvem-no e ficam a pensar que é apenas mais um defensor dos interesses dos incumbentes, não dos que lutam por um lugar decente no país. Os empresários ouvem-no e, na dúvida, hão-de valorizar as contas certas. Os outros terão dificuldades em ver o que muda e deixam-se estar. Montenegro bem pode dizer que Pedro Nuno Santos é “comunista e bloquista” e que os eleitores podem optar “por um caminho ou outro”, como se em causa estivesse a escolha entre a moderação e o risco de uma deriva esquerdista. O dilema não é credível: os dois maiores partidos não se distinguem pelo programa, nem pela prática. Ambos se mancomunaram num conservadorismo entorpecente.

Montenegro espera que a memória dos casos e casinhos do Governo que caiu, que o desperdício da maioria absoluta, que o crescimento abaixo dos pares comparáveis da União Europeia ou que a crise profunda da educação e do SNS bastem para concretizar a mudança. O balanço negativo do passado e umas promessas para o futuro bastam para ganhar. Está completamente errado. O PS de Pedro Nuno Santos já percebeu que o seu grande trunfo é a previsibilidade, a rotina e a segurança da navegação à vista legados por António Costa. O plano é mudar alguma coisa para que tudo fique na mesma. E o PSD?

Depois do trauma do ajustamento da troika, os anos da "geringonça" transformaram o PS no partido do mal menor. O último reduto contra as ousadias neoliberais, as ameaças da extrema-direita e os perigos estatizantes da esquerda radical. Não acelera, mas vai andando. Se os pensionistas, os funcionários públicos e todos os que integram o “grupo dependente” do Estado (na definição do economista Vítor Bento num ensaio publicado no Observador) estiverem seguros e razoavelmente contentes, o PS continuará no poder – afinal, representam dois terços do eleitorado e em democracia o que conta é a vontade soberana do povo. A sondagem da Católica para o PÚBLICO/RTP/Antena 1 de Janeiro de 2022 mostrava que o PS era o partido preferido pelos portugueses com mais de 65 anos e com menores qualificações académicas. Para ganhar, o PS tem de ser PS.

Entre a coragem da alternativa e o calculismo de imitar o PS, Luís Montenegro escolheu. O Bloco Central de um programa conservador de esquerda está instituído. O país mais jovem, dinâmico, qualificado, competitivo e europeu continua sub-representado. Entre a armadilha do rendimento médio na qual Portugal caiu este século e a necessidade de proteger os mais pobres, não parece haver uma visão global e integrada. Resta o fatalismo de um país que, sem saber como criar riqueza, se dedica a discutir como a redistribuir. Com o PSD tão alinhado ao discurso do PS, o que pode Montenegro mostrar de novo?»

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3.1.24

Hoje, RTP 2, 22:53

 

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Peniche, 03.01.1960 – A Fuga

 


Há 64 anos, numa iniciativa absolutamente espectacular, Álvaro Cunhal, Carlos Costa, Francisco Martins Rodrigues, Francisco Miguel, Guilherme da Costa Carvalho, Jaime Serra, Joaquim Gomes, José Carlos, Pedro Soares e Rogério de Carvalho fugiram da Fortaleza de Peniche.

Se sou de um modo geral extremamente sensível a estes temas da preservação da memória relacionados com o fascismo, Peniche é-me especialmente próximo. Não é meu hábito referir factos familiares relacionados com efemérides. Mas o meu marido participou, com Rogério Paulo e outros, na preparação da fuga e foi o condutor do carro que transportou Cunhal, e mais alguns que se evadiram, na primeira parte do percurso para Sul. Alguns meses mais tarde foi detido pela PIDE e passou em Peniche a maior parte dos seis anos em que o mantiveram preso.

Mais informação e um vídeo com um curto resumo dos acontecimentos
AQUI.
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2023 / 2024

 


Exactamente há um ano escrevi isto: «Estamos nas mãos de duas pessoas: Marcelo e Costa. Um não pára, outro não anda».

E não é que (quase) acertei? O primeiro está a parar um pouco mais, o segundo andou de menos e teve de desandar.
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You did it again, MP

 


«Depois da notícia aparecer nos jornais, a Procuradoria-Geral da República confirmou estar a fazer uma investigação relacionada com a construção da casa de Luís Montenegro em Espinho. O mistério é, pelo menos quanto à parte que foi conhecida, o que raio é preciso investigar. Em menos de um dia Tiago Mota Saraiva, insuspeito de simpatia pelo PSD, esclareceu que casas construídas em Área de Reabilitação Urbana (ARU) têm direito ao benefício no IVA. Bastava confirmar a data da aprovação do ARU do litoral de Espinho e fazer as contas. Nem uma tarde de trabalho.

Apesar da evidente a diferença de tratamento mediático e judicial em relação às várias suspeitas que surgiram contra Passos Coelho, nunca comprei teorias de conspirações e cabalas contra o PS. O PS tem sido o alvo porque está há mais tempo no poder e tê-lo sob suspeita permanente constrange qualquer mudança que volte a dar aos procuradores do Ministério Público o poder que o espírito da nossa lei realmente lhes atribui. A isto juntam-se doses inacreditáveis de incompetência, a leviandade que resulta da falta de “mundo” (evidente na leitura que fazem de alguns comportamentos de quem tem funções executivas) e uma cultura justicialista que atravessa de forma crescente toda a sociedade, dos agentes da justiça à comunicação social.

Da mesma forma que a PSP acha que tem direito a punir, com violência física, os que considera terem comportamentos criminosos, o MP acha que pode julgar e condenar políticos na praça pública. Há, nas sociedades democráticas (nas outras isto nem é debate), um abandalhamento institucional que é causa e consequência da degradação da democracia. O mesmo abandalhamento que leva uma juíza a insultar um possível futuro primeiro-ministro no seu Facebook e as pessoas, desconhecedoras do dever de recato (e até proibição de atividade partidária) dos juízes a achar isso absolutamente normal.

Não digo que Luís Montenegro não tenha de vir a dar explicações sobre a sua casa ou outros sinais exteriores de riqueza que possa ter dificuldade em justificar, e onde entram os ajustes diretos que fez com a Câmara Municipal de Espinho, autarquia onde foi vereador e presidente da Assembleia Municipal e que era dirigida pela estrutura local do PSD de que sempre fez parte. Mas parece haver uma confusão entre o escrutínio prévio de candidatos a cargos relevantes. Mas o “vetting”, comum nos Estados Unidos e na União Europeia, é um processo político. Feito pelos pares ou pela comunicação social. Não é essa a função do Ministério Público. Essa investiga suspeitas plausíveis de crimes sem destruir, de preferência, a reputação dos que investiga antes de alguma evidência sólida existir.

A principal questão aqui está, antes de tudo, no timing. A enorme e luxuosa casa de Montenegro em Espinho é tema na comunicação social desde maio. Se o MP achava que havia material, fazia-o na altura. Fazê-lo em vésperas de eleições, na provável expectativa de não chegar a qualquer conclusão antes das eleições, é mais uma acha para a fogueira que acendeu a 7 de novembro.

Já se percebeu qual é a tática política que se tem vindo a vulgarizar: uma denúncia anónima (não aceitáveis pela lei tributária), quase sempre com origem política, “obriga” o MP a investigar e “obriga” a comunicação social a noticiá-lo. E assim, sem fonte conhecida, mas com o reforço da credibilidade de uma investigação, se espalha a suspeita. Para quê escrever numa rede social, correndo o risco de ser judicialmente punido, se o MP pode ser usado para o mesmo efeito e sem risco?

A demissão de António Costa foi um repto ao Ministério Público: tem de se tornar mais exigente consigo mesmo e com os efeitos da leviandade com que dirige as investigações que tem de fazer. A resposta não pode ser desatar a investigar todos os líderes para distribuir o descrédito da política de forma mais equilibrada. Tem de ser a de se exigir mínimos de responsabilidade. Pela primeira vez – pela desproporção entre meios de investigação, dano causado à sociedade e suspeitas que estão em causa – o bullying de alguns setores mais engajados sobre o poder político teve um efeito boomerang. Seria bom alguém aprender alguma coisa com isso no Ministério Público.

Dirão que estou a tentar desacreditar o Ministério Público. Quem está a desacreditar o Ministério Público é quem, dentro dele, acha que a sua função é "moralizar" o sistema e não, apenas e só, investigar crimes concretos. É quem criou as condições para ser instrumental para campanha políticas que visam, essas sim, desacreditar a democracia. Nesse sentido, estou empenhado em combater a deriva justicialista de uma parte dos agentes de justiça. Não é em defesa deste ou daquele partido que estou empenhado nisto. É em defesa da democracia.

Não é por ser eticamente mais irrepreensível que a extrema-direita ganha com tudo isto. Pelo contrário, ela sempre foi o esgoto moral da política. É por ser, também ela, inimiga da democracia e do Estado de Direito. O justicialismo rende votos nas urnas e leitores a comentadores menos exigentes consigo mesmos. Mas nunca reduziu a corrupção. E sempre foi eficaz no enfraquecimento das liberdades cívicas e da democracia.

Depois do que aconteceu a 7 de novembro, todos os democratas têm o dever dar um murro na mesa, exigindo que o MP seja, como a lei determina, um órgão autónomo (é dos mais autónomos da Europa), mas com organização hierárquica, pondo fim ao equívoco que faz alguns procuradores julgarem-se equiparados a juízes e travando a infiltração antidemocrática no Ministério Público. Ou o fazemos, ou acabaremos por nos transformar no Brasil, onde a justiça não passa de um instrumento de luta política, desacreditada, à vez, por uns e por outros.»

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2.1.24

Mais feia e menos elaborada

 

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Campos Elíseos – 2023/2024

 




Festejar o Ano Novo no Novo Mundo é assim. Foram-se os abraços e os beijos, é o reino do telemóvel!
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Mia Couto

 

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Pobres cada vez mais pobres

 


«Num novo ano que começa, os países em desenvolvimento continuam a sua preocupante escalada de pobres cada vez mais pobres. Recentemente, o relatório anual do Banco Mundial salienta que, pela primeira vez neste século, estes países reembolsaram mais empréstimos do que contraíram, o que vem confirmar a preocupante tendência para a redução do financiamento internacional para os países mais pobres.

É que os novos empréstimos têm sido sujeitos a uma taxa de juro mais elevada, seguindo assim a trajetória de aumentos levados a cabo pelos principais bancos centrais mundiais, no qual se inclui o “nosso” Banco Central Europeu. Esta é uma circunstância que aumenta a pressão sobre países que, como Angola, já tinham sido fortemente afetados pela crise dos preços do gás, do petróleo e dos alimentos em consequência da invasão da Ucrânia. Boa parte dos escassos recursos acumulados, sobretudo dos mais empobrecidos, escapam-lhes entre pagamentos financeiros, alimentares e energéticos. Não é por acaso que Moçambique dedica 37% da sua riqueza para pagar a dívida externa.

Uma combinação explosiva entre os aumentos das taxas, da valorização do dólar e do declínio dos novos financiamentos resulta num aumento notável do serviço da dívida, sem que para isso façam alguma coisa. É como o aumento da prestação da casa no orçamento familiar: aumentou porque aumentou. Essa subida atingiu máximos históricos, cerca de 443 mil milhões de dólares anuais, e com a perspetiva de continuar a crescer nos próximos anos. Se estes países começarem a ter dificuldades em pagar os empréstimos, pode afetar todo o sistema financeiro.

Com a dívida a crescer por via do aumento das taxas de juro, o dinheiro que deveria ser alocado à educação, à saúde ou às infraestruturas diminui, comprometendo gravemente o progresso de muitos países. Além disso, as guerras na Ucrânia e em Gaza puseram em causa os princípios básicos em que se baseia a ordem internacional. Dito de outra forma, os países com menos recursos estão a pagar um preço elevado pelos efeitos económicos de ambos os conflitos e é pouco provável que mantenham o seu apoio aos mais ricos.»

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1.1.24

E por vezes





E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites, não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos.

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos

David Mourão-Ferreira



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Optimismo

 

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Bissextos?

 


Ou seja:
No calendário gregoriano, são bissextos os anos múltiplos de 4, mas os terminados em 00 só serão bissextos se forem múltiplos de 400. (Por exemplo, 1700 não foi bissexto.)
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Sempre nesta data

 


No primeiro dia do ano, era por volta do meio dia que abríamos o rádio para não perdermos a pérola do ano que Américo Tomás nos oferecia.

Aqui fica a da imagem e mais duas:

«Eis-nos chegados ao primeiro dia da oitava década do século XX, pelo que precisamente de hoje a trinta anos surgirá, para os que então viverem, o primeiro dia do século XXI.» (01.01.1971)

«Decorreu célere, como os que o precederam, o ano que acabou de sumir-se na voragem do tempo. Outro o substituiu, para uma vida igualmente efémera. Nesta mutação constante, afigura-se haver agora um fenómeno de visível incongruência, pois, quando tudo se processa a ritmo que se acelera constantemente, pareceria lógico que de tal circunstância resultasse um aparente alongamento no tempo e não precisamente o inverso. Se sempre o presente, mal o é, se torna logo em passado, nunca, como nos nossos dias, tão evidente verdade pareceu mais evidente.» (01.01.1966)
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31.12.23

Com esperança e paciência, isto há-de ir!

 

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31.12.1968 – Uma vigília contra a Guerra Colonial

 

(Cabeçalho da convocatória para a Vigília)


Em 31 de Dezembro de 1968, cerca de cento e cinquenta católicos entraram na igreja de S. Domingos, em Lisboa, e nela permaneceram toda a noite, naquela que terá sido a primeira afirmação colectiva de católicos contra a Guerra Colonial, numa actividade formalmente «disciplinada». Com efeito, o papa Paulo VI decretara, em 8 de Dezembro, que o primeiro dia de cada ano civil passasse a ser comemorado pela Igreja como Dia Mundial pela Paz e, alguns dias depois, os bispos portugueses tinham seguido o apelo do papa em nota pastoral colectiva. 

Assim sendo, nada melhor do que tirar partido de uma oportunidade única: depois da missa presidida pelo cardeal Cerejeira, quatro delegados do numeroso grupo de participantes comunicaram-lhe que ficariam na igreja, explicando-lhe, resumidamente, o que pretendiam com a vigília: 

«1º – Tomar consciência de que a comunidade cristã portuguesa não pode celebrar um “dia da paz” desconhecendo, camuflando ou silenciando a guerra em que estamos envolvidos nos territórios de África. 
2º – Exprimir a nossa angústia e preocupação de cristãos frente a um tabu que se criou na sociedade portuguesa, que inibe as pessoas de se pronunciarem livremente sobre a guerra nos territórios de África.
3º – Assumir publicamente, como cristãos, um compromisso de procura efectiva da Paz frente à guerra de África.» 

Entregaram-lhe também um longo comunicado que tinha sido distribuído aos participantes, no qual, entre muitos outros aspectos, era sublinhado o facto de a nota pastoral dos bispos portugueses, acima referida, tomar expressamente partido pelas posições do governo que estavam na origem da própria guerra, ao falar de «povos ultramarinos que integram a Nação Portuguesa». 

Apesar de algumas objecções, o cardeal não se opôs a que permanecessem na igreja, ressalvando «a necessidade de uma atitude de aceitação da pluralidade de posições». Pluralidade não houve nenhuma: até às 5:30, foram discutidos todos os temas previstos e conhecidos vários testemunhos, orais ou escritos, sobre situações de guerra na Guiné, Angola e Moçambique. 

Hoje tudo isto parece trivial, mas estava então bem longe de o ser. Aliás, seguiu-se uma guerra de comunicados entre Cerejeira e os participantes na vigília, que seria fastidioso analisar aqui. Mas vale a pena referir que, com data de 8 de Janeiro, uma nota do Patriarcado denunciou «o carácter tendencioso da reunião», terminando com um parágrafo suficientemente esclarecedor para dispensar comentários: 

«Manifestações como esta que acabam por causar grave prejuízo à causa da Igreja e da verdadeira Paz, pelo clima de confusão, indisciplina e revolta que alimentam, são condenáveis; e é de lamentar que apareçam comprometidos com elas alguns membros do clero que, por vocação e missão deveriam ser, não os contestadores da palavra dos seus Bispos, mas os seus leais transmissores». 

A PIDE esteve presente (há disso notícia em processo na Torre do Tombo), mas não houve qualquer intervenção policial. Alguns jornais (Capital e Diário Popular) noticiaram o evento, mas sem se referirem ao tema da Guerra Colonial – terão provavelmente tentado sem que a censura deixasse passar… A imprensa estrangeira, nomeadamente algumas revistas e jornais franceses, deram grande relevo ao acontecimento. E foi forte a repercussão nos meios católicos. 

Para quem esteve presente em S. Domingos, como foi o meu caso, essa noite ficará para sempre ligada à Cantata da Paz, hoje tão conhecida, mas que poucos identificam com a sua origem. Com versos propositadamente escritos para essa noite por Sophia de Mello Breyner, e com música de Francisco Fernandes, foi então estreada por Francisco Fanhais. (Quantas vezes a terá cantado depois disso, nem ele certamente o saberá…) 



P.S. – Quatro anos mais tarde realizou-se uma outra vigília pela paz na Capela do Rato, com consequências bem mais gravosas porque envolveu uma greve de fome, prisões e despedimentos da função pública.
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Boas Festas!

 

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A direitização da direita europeia

 


«O populismo da e na Europa. Desde o final da Segunda Grande Mundial que direitas e esquerdas relativamente moderadas foram um dos principais esteios da integração europeia. Contudo, com o acentuar da retórica da crise – financeira, migratória, cultural, pandémica, securitária – ao longo de décadas, a dicotomia nós e outros foi elevada para um nível emergencial (veja-se o acordo recente sobre o Pacto de Migração e Asilo na UE). Como consequência, certos partidos, quer lhe chamemos populistas de direita ou de extrema-direita, tornaram-se parte do mosaico político europeu. Por exemplo, a ascensão do FPÖ ao poder, na Áustria, na década de 2000, e o sucesso de partidos similares em França, Finlândia, Países Baixos e Suécia nos inícios dos anos 2010. Num relatório do Institute for Global Change sobre os populistas no poder no mundo, na secção sobre a Europa, conclui-se que o populismo cultural – o que fala das e para as verdadeiras pessoas, aquelas, provavelmente, de bem – é o mais recorrente e bem-sucedido no continente.

Tendências de direitização. O que é que preocupa os europeus? A situação económica e a imigração, a transição verde e digital e a exclusão que daí advém e o desgaste provocado pela(s) guerra(s). Quem tem liderado essas “agendas”? Pelo menos, ao nível retórico, a direita, mas não a moderada. Na Polónia, o Lei e Justiça esteve no poder desde 2015 e ganhou eleições recentemente, embora sem maioria para permanecer no Governo. Na Hungria, Orbán conquistou o poder há quase década e meia, tendo vencido de novo as eleições em 2022. Em setembro desse ano, Meloni venceu as eleições com os seus Irmãos de Itália e na Suécia a extrema-direita dos Democratas Suecos ficou em segundo lugar, oferecendo apoio parlamentar ao novo Governo. O mesmo sucedeu na Finlândia, em abril de 2023, com o Partido dos Finlandeses a integrar o Governo dos conservadores. Na Alemanha, os nacionalistas da AfD assumiram-se como a segunda força política nas eleições regionais de outubro passado. Nos Países Baixos, o VVD de Geert Wilders, saiu vencedor nas eleições gerais de novembro passado.

Ao nível das tendências, verifica-se que, em grande parte da Europa, a maioria dos partidos deste espectro ideológico se situa atualmente bem acima dos 10%. Lideram as sondagens na Áustria, FPÖ (30%), e Bélgica, Vlaams Belang (23%). Estão em segundo em França, Rassemblement National (24%); Roménia, Aliança para a União dos Romenos (19%); e República Checa, Partido Democrático Cívico (13%); e em terceiro em Portugal, Chega! (16%), e Letónia, Aliança Nacional (13%).

O fim do centro político na UE. Bem sei que são consideradas eleições de segunda linha e que, antes, temos eleições legislativas em Portugal. Contudo, estamos a menos de meio ano das eleições europeias de 2024 e isso inquieta-me. Inquieta-me, porque a maioria dos partidos supramencionados faz parte de dois grupos no Parlamento Europeu – ID e ECR – que partilham entre si populismo de direita, nacionalismo e euroceticismo. Inquieta-me, porque esta direitização é uma tendência crescente que deve prosseguir – recordo que metade dos europeus inquiridos disse, recentemente, estar insatisfeita com o funcionamento das suas democracias e com o estado da União e que apenas uma minoria disse sentir alguma influência nas suas decisões. Inquieta-me, porque isto significará uma profunda reconfiguração das maiorias no Parlamento Europeu, pondo em questão o bloco central PPE e S&D e, consequentemente, o próprio processo de integração europeu. Por fim, inquieta-me que tudo isto pareça irrelevante, quando, a bem ou a mal, 70% a 80% da legislação vem de Bruxelas.

Para países como Portugal, estas dinâmicas têm consequências. É extraordinário ver partidos portugueses a apoiar estas perspetivas quando, no geral, estes outros partidos europeus olham para nós – beneficiários líquidos da UE – como meros sorvedouros de fundos comunitários. Como diria um antigo presidente do Eurogrupo: os países do Sul da Europa não podem gastar em mulheres e álcool e, depois, pedir ajuda. Com a direitização da direita europeia e o potencial fim do centro político na Europa, países como Portugal serão, porém, a menor das preocupações da Comunidade. Nas próximas eleições, o que está em jogo, verdadeiramente, é a (des)integração europeia como um todo.»

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