«O governo decidiu começar o seu trabalho com uma decisão estritamente simbólica. Devemos levar essa opção a sério, porque ela, como todas as guerras simbólicas, nos quer comunicar alguma coisa. Por isso, só faz sentido avaliar essa decisão pelo seu simbolismo político. O que há no debate sobre o logótipo do governo para lá do logótipo do governo? O que nos quis dizer Luís Montenegro?
Já aqui escrevi, ainda antes das eleições, que estamos perante uma polémica artificial, criada nas redes pela direita radical e alimentada pelos seus vizinhos próximos. Não lhe falta nada para o seu uso costumeiro: da aposta na ignorância sobre custos e competências técnicas necessários para um determinado trabalho à manipulação do nacionalismo superficial, passando pela simplificação simbólica do conflito político.
O novo símbolo do governo nasceu em junho do ano passado e foi amplamente utilizado nas mediáticas Jornadas Mundiais da Juventude sem qualquer revolta popular. Ninguém quis saber. Só depois de marcadas as eleições legislativas é que a polémica absurda – pela enésima vez, aquilo não é a bandeira, é um logótipo administrativo inspirado nos símbolos nacionais, como podemos encontrar em França, Bélgica, Reino Unido, Brasil, Estados Unidos e um pouco por todo o mundo – foi instalada e alimentada pela máquina de propaganda radical.
Assim sendo, a primeira conclusão que podemos tirar do facto de esta ter sido a primeira decisão que Luís Montenegro escolheu para dar o mote à sua governação é que ele será sensível à pressão das redes sociais e que as usará como manobra de diversão política para nos distrair dos temas mais substanciais – onde as suas opções sejam mais impopulares –, como é típico de governos populistas ou que estão em permanente campanha eleitoral.
Luís Montenegro disse aos jornalistas, no sábado, como resposta a perguntas sobre este tema: “aqueles que porventura possam pensar que nos incomodamos com as notícias que fazem sobre nós desenganem-se porque vão ter de perder muito tempo". O desprezo pela comunicação social – outra lição que recebeu de Cavaco – e a hipersensibilidade ao burburinho de campanhas plantadas nas redes sociais é uma forma de fazer política. Habituem-se.
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Assim, o primeiro sinal desta medida simbólica é que, sendo um governo ultraminoritário, liderado por uma coligação que teve a mais curta vitória da história da nossa democracia – a arrogância de Montenegro apenas tenta disfarçar a sua fragilidade –, ele será sensível de todos a campanhas virais vindas do seu campo político ou à sua direita. E não deixará de as usar.
Enquanto Montenegro diz “não é não” ao Chega, é permeável à sua agenda, porque é daí que sente o risco. Nesse terreno, teremos o primeiro governo a dar centralidade às guerras culturais. Ou por achar, como parte da esquerda, que é ela que divide hoje as águas, ou por perceber, com razão, que são uma excelente forma de distrair o povo das suas escolhas económicas e sociais. Elas são uma forma de polarização política e cultural com que se pretende ganhar simpatia dos setores mais radicais da direita, alimentando a divisão simbólica, muito mais fácil de manipular do que as velhas divisões ideológicas.
Nas redes sociais, já é possível ver muita gente a usar como imagens de perfil o novo e o anterior logótipo, separando o país entre “patriotas” e “modernos”, como aconteceu no Brasil e nos EUA, facilitando a identificação dos “nossos” e o dos “outros”.
Assim, o segundo sinal desta medida simbólica é que ela se afasta de qualquer vontade de construir pontes entre moderados para travar o radicalismo. Pelo contrário, ela pretende cavar a divisão cultural de que os radicais se alimentam.
Este logótipo, que correspondeu à corriqueira estilização de símbolos nacionais para uso administrativo em animações e novas plataformas, que exigem simplicidade, nasce de um aturado trabalho técnico, com um exaustivo manual para a sua utilização. A acusação de que é simples e de que qualquer criança de quatro anos o faria no “Paint” é a mais habitual confissão de ignorância sobre a arte e o design, que desconhece que a simplicidade exige mais saber e arte. Quantas vezes Picasso ouviu e leu a mesma altivez da boca e pena de ignorantes? Que autodidatas atrevidos o repitam nas redes, é natural. Preocupante é que um conjunto de 17 ministros, reunidos à volta de uma mesa, tenham sentido o mesmo à vontade para tomar uma decisão técnica, sem qualquer estudo ou trabalho especialista. Só porque movimentos nada espontâneos alimentados nas redes sociais em véspera de eleições para isso o pressionaram.
De uma penada, atiraram para o lixo o trabalho de um dos mais premiados designers portugueses (Eduardo Aires), experiente em “rebranding” institucional (o do “Porto.”, por exemplo, que provavelmente qualquer um conseguiria fazer no programa de texto), que teve custos e voltará a ter, por tudo ter de ser reimpresso.
Assim, o terceiro sinal desta medida simbólica é o desprezo pelo saber e pela competência técnicas. A comunicação é uma questão política, como todas as decisões que o governo toma, mas também é, apesar de parecer muito acessível aos leigos, técnica. Só não o é se a decisão está apenas ao serviço de uma campanha eleitoral.
Não deve ser desprezado o facto da primeira medida ser uma reversão simbólica contra um adversário claro. Contra um símbolo do legado. É legitimo, mas inconsequente com o discurso que, verdade seja dita, Montenegro nunca fez, mas é repetido pelos seus ajudantes mediáticos: que os socialistas têm o dever de suportar um governo de entendimento ao centro. Na realidade, Montenegro tem exposto, ele próprio, a contradição: queremos mudar o que o PS fez e, para isso, contamos com o apoio do PS. O PSD exige mais do que autoanulação do PS, exige um ato de contrição.
Assim, o quarto sinal desta medida simbólica é a política de tábua rasa em relação a todo o legado recebido, que tem sido evidente nas escolhas do elenco governativo e nos poucos discursos políticos de Montenegro.
A escolha de uma polémica simbólica para agitar o fervor nacionalista, a tentativa de dividir o país em torno de uma guerra cultural para afirmar o seu próprio poder e a relação ostensivamente hostil, até na simbologia, com o legado do governo anterior, levam à última evidência da escolha desta medida para marcar o regresso da direita ao poder: o adversário é o PS, o eleitorado a agradar é o do Chega. Enquanto se governa para os eleitores do Chega, para lhe tirar votos, exige-se o apoio do PS, para o neutralizar. É uma espécie de tenaz ao contrário.
Se o governo quis transformar isto na sua apresentação, está apresentado: os apelos à moderação e aos entendimentos ao centro e os supostos cordões sanitários não passam de táticas a pensar nas próximas eleições. Isso ficou claro quando PSD firmou um compromisso preferencial com o Chega para a eleição do Presidente da Assembleia da República e, depois de salvo da traição pelo PS, não só elegeu Pacheco de Amorim como usou a boa-vontade dos socialistas para dizer, pela boca de Hugo Soares, que isso os obrigaria a garantir uma legislatura. Voltou a ficar claro no discurso de chantagem e vitimização da tomada de posse de Luís Montenegro. Fica novamente claro com a escolha de uma pessoa com o perfil de Carlos Abreu Amorim para secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares. E volta a ser confirmado com a segunda medida anunciada: a abertura de um concurso de demagogia em torno da corrupção, abrindo o único processo negocial até agora anunciado ao Chega, num tipo de assunto que, por envolver o Estado de Direito Democrático, ele deveria estar de fora.
Montenegro diz-nos a cada momento ao que vem. Mas parece que ninguém o quer ouvir. Nem quando faz um desenho.»
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