«Cem dias depois de regressar à Casa Branca, Donald Trump cumpriu a promessa. As tarifas estão de volta. Mas não vieram sozinhas. Vieram com uma ideia. Um plano. Um ultimato fiscal mascarado de patriotismo económico. Não é uma guerra comercial. É outra coisa. Não é para proteger a indústria. É para reestrurturar a dívida. E os destinatários da fatura não são os adversários. São os aliados.
O arquiteto desta engenharia chama-se Stephen Miran. É o atual presidente do Conselho de Assessores Económicos de Trump. Mas, antes disso, desenhou um manual de instruções com um título inocente — A User’s Guide to Restructuring the Global Trading System — que, na prática, funciona como um roteiro de coerção económica em três tempos. Washington leu. E começou a aplicar.
A tese de Miran é simples, e brutal: os Estados Unidos já não conseguem sustentar o sistema que criaram. O défice é estrutural. A dívida roça os 123% do PIB. O dólar, sobrevalorizado, tornou-se um símbolo de estatuto — e de decadência. Desvalorizá-lo diretamente seria suicídio financeiro. Cortar despesa é tóxico. Subir impostos, impossível. Resta apenas uma saída: transferir o custo da hegemonia para os aliados.
A proposta não é subtil. Nem pretende ser.
Miran sugere que os EUA usem tarifas, câmbio e segurança militar como alavancas de coerção para forçar os seus parceiros a contribuir para a estabilidade do sistema. Não por caridade — por dever. Afinal, são eles os maiores beneficiários da ordem americana: segurança, moeda de reserva, acesso ao mercado. Está na hora, diz Miran, de começarem a pagar a conta.
E a conta já começou a chegar.
As tarifas que Trump impôs nos últimos cem dias não são medidas defensivas. São instrumentos de pressão. Aplicadas com precisão sobre quem mais dívida americana detém: Japão, União Europeia, China, Canadá. Rússia e Bielorrússia, quase irrelevantes no mercado de Treasuries, escapam incólumes. O critério não é quem ameaça os EUA. É quem os financia.
O segundo eixo do plano é mais ambicioso: emitir “perpetual bonds” — obrigações do Tesouro sem data de reembolso. Uma forma sofisticada de reestruturar a dívida sem provocar pânico nos mercados. A dívida não desaparece. Mas também nunca é paga. Fica suspensa, eterna. E os aliados que a seguram tornam-se parte estrutural da solvência americana. Mais do que proteger os EUA, o plano de Miran pretende consolidar um império por outros meios.
O mais inquietante, no entanto, não é a teoria. É a sua aplicação metódica — e a ausência de resistência.
Trump não está a castigar adversários. Está a disciplinar aliados. O guarda-chuva de segurança, que durante décadas cobriu a Europa e o Pacífico, agora vem com um preço. Ou aceitam as novas regras; ou veem-se à chuva.
A Europa hesita. Paris pede reciprocidade. Bruxelas ameaça com medidas proporcionais. Von der Leyen oferece esquemas de “zero-por-zero” em bens industriais — uma cenoura fácil, visto que as tarifas transatlânticas são, historicamente, baixas. O Parlamento Europeu, como sempre, acorda tarde.
Mas a armadilha está montada. Trump não quer renegociar o comércio. Quer redesenhar o mapa. Cada resposta simétrica só valida o jogo. O erro, desta vez, não será diplomático. Será estratégico.
Porque a resposta certa não é indignação, retração, retaliação. É abertura. Acelerar o acordo com o Mercosul. Discutir, sem complexos, a entrada na CPTPP (à qual o Reino Unido já aderiu). Reforçar laços com quem ainda acredita que comércio não é sinónimo de chantagem — Canadá, Japão, Coreia do Sul. Quem se fecha por instinto, cede por reflexo.
E Trump quer precisamente isso: reações automáticas, previsíveis, bilaterais. Onde cada grito europeu só serve para justificar a próxima tarifa. Trump quer transformar aliados em credores cativos. A Europa, se quiser ter margem, terá de transformar pressão em autonomia. E fazer algo que há muito adia: assumir que o multilateralismo não se salva com declarações. Salva-se com acordos. Sem ilusões. Sem moralismos.
E sem medo de reconhecer que o que está em causa não é o regresso do protecionismo — é a normalização da chantagem como arquitetura de poder.
A questão agora não é se a Europa responde. É se percebe que a nova linguagem do poder deixou de ser diplomática — e passou a ser contabilística. E que as faturas, desta vez, não se discutem. Pagam-se. Ou enfrentam-se.»