«O cálculo das tarifas de Trump não resulta das que são cobradas por outros países, mas da extensão do défice comercial dos EUA com esses parceiros comerciais. Por isso, Trump diz que a UE lhe cobra 39%, apesar de andar pelos 3%. O modelo faz tão pouco sentido que, diz Paul Krugman, parece tirado de uma resposta do ChatGPT. Um dos países mais protecionistas, o Brasil, fica com tarifas de 10%, e pequenos países produtores de café ou baunilha, que os EUA nunca irão produzir na quantidade que consomem, terão de pagar cerca de 50%. Esta discricionariedade, associada ao modo circense como foi apresentada, leva a que um debate complexo desça ao nível de Trump na sua simplificação moral e política.
As tarifas são um instrumento económico que pode estar certo ou errado, não são a antecâmara do fascismo. Biden teve políticas protecionistas. As tarifas europeias aos carros elétricos chineses só estão erradas porque estão associadas ao adiamento do fim do motor a combustão. É a diferença entre a proteção de uma indústria nascente, que precisa de tempo até ser exposta à concorrência global, e a proteção de uma indústria moribunda. E este debate nem é novo nos EUA. Esteve presente na sua fundação, em que venceram os defensores da indústria emergente com subsídios e tarifas. Só que passaram 250 anos. Agora, não se trata de promover a industria¬lização de uma economia em desenvolvimento, mas de proteger um dos países tecnologicamente mais desenvolvidos do mundo da concorrência emergente. Sim, os Estados Unidos têm um problema com o seu défice comercial crónico. Mas, além de ser um erro ignorar o investimento no exterior e a entrada de capital, isso é largamente compensando pelo “privilégio exorbitante” do dólar, como lhe chamou Giscard d’Estaing. Como já se adivinha, as tarifas de Trump terão péssimas repercussões imedia¬tas. A longo prazo, poderá haver (ou não) uma deslocalização da produção ou uma renegociação das relações comerciais. É uma incógnita. Mas o que tem falhado, alimentando o ressentimento do povo americano, são os mecanismos de redistribuição da riqueza criada pelo grande vencedor da globalização.
Quando atravessámos a pandemia e sempre que temos debates sobre a sustentabilidade do planeta chegámos à conclusão que era inevitável que as cadeias de produção e consumo viessem a ser encurtadas. Os efeitos da covid na economia global, com o mundo parado porque a sua fábrica tinha fechado, assim como as sucessivas crises financeiras, obrigaram-nos a concluir que é bom as economias estarem interligadas, mas indispensável haver espaço de recuo para que tudo não colapse com um sopro. Com a ameaça destas tarifas, mostrando como o mundo pode ficar refém de um homem, concluiremos o mesmo. Muitos a avisaram que haveria alguma desglobalização. Claro que a Europa e os EUA não regressarão aos seus tempos industriais, mas este era um caminho anunciado. Só que a inevitabilidade foi deixada a um palhaço. Assim, acontece de forma apalhaçada e provavelmente incompetente.
Apesar de tudo o que é disparatado em Trump, não estamos a assistir a um mero disparate, mas a uma mudança sistémica que não começou nem acabará com Trump. Yanis Varoufakis compara este momento ao choque provocado por Richard Nixon, em 1971, com o cancelamento unilateral da conversibilidade internacional direta do dólar em ouro, abolindo, na prática, o sistema de Bretton Woods. Um “choque” com efeitos disruptivos que contribui¬riam para a vitória do neoliberalismo. O que Trump está a fazer parece caótico, mas o “choque de Nixon” também não parecia racional. Só nacionalismo económico. O que vivemos é a continuação de uma luta pela hegemonia, que pode correr bem ou mal aos EUA, como podia a de Nixon. Depende de como o mundo reagir.
A era que chega ao fim, que correspondeu à financeirização do capitalismo, a um brutal aumento da desigualdade e a uma extraordinária concentração de riqueza, não será de boa memória para os trabalhadores da Europa e dos EUA. A vitória de homens como Donald Trump é, aliás, prova disso. A que agora começa tem tudo para ser pior. Por isso, talvez fosse bom, no meio de tantas lágrimas pelo passado, termos alguma coisa a dizer sobre o futuro. Não sei se foi a venda em massa de títulos dos EUA, a pressão do secretário do Tesouro ou a irritação dos bilionários que determinou a pausa nas tarifas. Sei que, segundo o “Financial Times”, a Europa aceitaria comprar mais gás americano, aumentando a sua dependência e abrandando a transição energética, se Trump recuasse. Não lhe está a correr assim tão mal. Temo que as crónicas sobre Trump sejam semelhantes às que escrevemos sobre Putin: de derrota em derrota até à vitória final.»
0 comments:
Enviar um comentário