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14.3.20
Não vimos este filme; já vimos este filme
«Há elementos de novidade radical na pandemia que enfrentamos. É óbvio que se as nossas sociedades não estão preparadas para gerir os riscos que conhecemos, ainda mais impreparadas estão para lidar com riscos novos. Como tem sido referido, o coronavírus é singular: tem um número de reprodução muito elevado e é seletivo.
Em parte, devíamos estar avisados: num mundo com mais trocas comerciais, maior densidade populacional e mais interligado, era inevitável que surgissem novas pandemias. Com a desflorestação e as alterações climáticas, os vírus encontraram terreno ainda mais fértil.
Mas os elementos de novidade do coronavírus não estão apenas na sua viralidade. É um vírus que se propaga num contexto social e político também ele novo, que acrescenta elementos contagiosos ao próprio Covid-19.
O natural alarme social é potenciado por redes sociais que não existiam e que são propícias a trazer à tona uma cultura de ressentimento que está muito disseminada desde a crise financeira. Por isso mesmo, na publicitação do coronavírus coexistem duas narrativas: a dos media tradicionais que vão reportando factos e a das redes sociais em que germinam notícias falsas e a ideia de que as elites estão a ocultar a extensão do fenómeno, enquanto se revelam incompetentes. Sintomaticamente, surge sempre um áudio, uma mensagem ou uma foto de alguém de “dentro” que revela a suposta verdade. Se os governos se limitarem a respostas racionais, fundadas nos conselhos dos técnicos, e não gerirem a dimensão cultural e social do fenómeno, vão falhar-nos.
Com maior fragmentação política, com redobrado ressentimento social e com serviços públicos depauperados, a crise financeira global deixou-nos à mercê de qualquer pandemia. Mas a impreparação de cada país e da Europa levará à repetição de um filme conhecido.
Os impactos do coronavírus serão por definição assimétricos. Os mais frágeis sofrerão mais: os países mais frágeis e as pessoas mais frágeis. Num primeiro momento, a reação será de comoção e de compromisso político. Mas logo evoluiremos para a responsabilização dos “incompetentes” que não foram capazes de gerir uma pandemia para a qual ninguém estaria preparado. Não demorará muito até que expiemos a culpa nos chineses que têm hábitos inaceitáveis ou nos italianos que insistem em se portar mal. Quando chegar a recessão, e com ela a crise social, os governos serão responsabilizados pela queda das economias e pelo aumento da dívida. A Europa recuará nas respostas e os partidos serão penalizados nas urnas.
No fim, sobra o paradoxo da prudência: se agirmos por excesso agora e se se revelar desnecessário, é porque enfrentámos a situação com sucesso. Se, pelo contrário, o cenário se agravar é porque devíamos ter sido mais exigentes. É um daqueles momentos em que se espera dos governos capacidade de decisão e liderança.»
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13.3.20
Somos assim
Até ontem, as redes sociais estavam cheios de especialistas em Coronavirus.
Hoje, transformaram-se em conselheiros de saúde pública – só falta decretarem qual a marca de sabão que deve ser usada para lavar as mãos e a que hora se deve ir passear o cão.
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Isto é bom para italianos
Por cá, não se se atinava nem se se cantasse o Hino Nacional ou o Grândola.
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E quando se lê isto logo pela manhã?
«No nosso país (ainda) ninguém morreu da nova gripe mas o nosso governo julga que devido ao contágio as nossas vidas correm um perigo tal que tomou a medida de fechar as escolas. Fechar as escolas, como o leitor se lembra, foi o momento decisivo da Revolução Cultural do Presidente Mao, imitada pela revolta de Maio de 1968 em Paris.»
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Medidas para levar a sério
«Que o encerramento das escolas e das discotecas e a redução da lotação máxima dos restaurantes e dos centros comerciais seja o que faltava para todos perceberem que não estamos num circo nem a brincar quando falamos das vidas de todos nós.
Que as corajosas palavras e as medidas difíceis anunciadas por António Costa sirvam de uma vez por todas para dar validade às recomendações das autoridades de saúde que nos últimos dias temos recebido, mas para as quais muitos portugueses olham com desdém e com escárnio.
Elogie-se o momento em que o país político encontrou equilíbrio num dos momentos mais difíceis da história e que, agora, "a luta pela nossa própria sobrevivência", como, e bem, a classificou o primeiro-ministro, se possa travar com menos pânico e mais racionalidade. Sem idas à praia, sem festas temáticas e sem açambarcamento irracional de bens essenciais. E chegamos também ao ponto em que combater o Covid-19 é também combater o vírus que prolifera na Internet como um tsunami. Que as redes sociais sejam um local de entreajuda e onde a responsabilidade de cada um possa fazer a diferença, e não o habitual desaguar de frustrações e sapiência oca. Porque "há duas coisas que são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas, em relação ao universo, ainda não tenho certeza absoluta". A frase é do físico Albert Einstein. E lembrei-me dela por um simples motivo: é daquelas expressões que "bombam" nas redes e confere ao autor do post uma espécie de grandeza intelectual e filosófica. Mas nunca pensei que, com mais de 30 anos de jornalismo, a máxima do físico alemão servisse como argumento para entender o comportamento das pessoas neste tempo difícil que vivemos.
Que o fecho das escolas e as quarentenas e, por arrasto, o tempo que todos irão ter mais disponível para passar na Internet não sirva, portanto, para aumentar a parvoíce.»
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Roma, cidade fechada
Sim, não estamos em tempos de «Roma, cidade aberta», caro Rossellini.
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12.3.20
Solidariedade da China
«Já chegaram a Itália nove médicos chineses, que a força das circunstâncias fizeram especialistas em coronavírus, mais 31 toneladas de suprimentos médicos. Após contactos de alto nível entre os governos dos dois países a rapidez de resposta prática da China e da Cruz Vermelha chinesa é impressionante. Eles sabem melhor que ninguém o que a Itália está a passar.»
Via Isabel Sousa Lobo no Facebook.
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Bispo do Porto, um verdadeiro criminoso
É perante factos como este que se chega a ter inveja de ditaduras. Esta criatura devia poder ser detida imediatamente, ao manter a convocatória para um acontecimento inútil num recinto fechado.
«O bispo do Porto, D. Manuel Linda, fez um apelo público na sua página de Twitter para que “todos” os fiéis participassem numa celebração para assinalar os sete anos da eleição do Papa Francisco na catedral daquela cidade, apesar de o principal foco de coronavírus ser precisamente no distrito do Porto.»
P.S. - O bispo cancelou hoje o evento:
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Covid-19 – Estado da arte
O Conselho Nacional de Saúde Pública esteve ontem reunido uma montanha de horas, pariu um rato, lavou as mãos como Pilatos, atirou a decisão de fechar as escolas para as autoridades de Saúde e estas fizeram naturalmente o mesmo em relação ao Governo.
E nós? Para já, continuam a pedir-nos que lavemos muito bem as mãos – como Pilatos.
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Coranavírus: chegou o momento de ir mais longe
«Quem hoje ao final da tarde fosse a um supermercado perceberia que os portugueses, limpando as prateleiras de alimentos, já interiorizaram a gravidade da crise provocada pela covid-19. No entanto, quem na mesma tarde tivesse passado pela linha de Cascais, e olhado para as praias cheias de banhistas em Março, também entenderia que há muitos outros a não querer entender a natureza do problema que vive o país e o mundo. É preciso ser claro: o açambarcamento é errado, mas o instinto dos primeiros é muito mais correcto do que a displicência dos segundos.
Ao longo das últimas semanas, temos visto a mancha do vírus a alastrar-se pelo mundo, o número de contágios e de mortos a aumentar imparável, até ultrapassar os cem mil infectados. A resposta da maioria dos países foi tentar o difícil exercício de equilíbrio entre os custos que podem representar medidas que paralisem a actividade económica e cívica e a necessidade de tentar suster ao máximo as probabilidades de contágio.
Portugal não foi diferente. Seguimos os passos dos conselhos, dos avisos às populações, de procurar isolar as cadeias de contágio, de preparar meios clínicos, de fechar instituições, até de tentar isolar localidades onde irromperam surtos mais significativos. Pelo caminho houve hesitações, declarações contraditórias, quem se adiantasse às medidas das autoridades nacionais, o que não estando isento de críticas não deixa de ser natural, porque ninguém tem um manual escrito para uma situação desta dimensão.
É chegado o momento de ir mais longe, muito mais longe. O exemplo de descontrolo de Itália, onde foram tentadas medidas mitigadoras antes de chegar à quarenta de toda a população, em contraste com o que aconteceu em Macau, onde medidas de isolamento total redundaram em fraquíssimas taxas de infecção, tem de servir de ensinamento.
Paralisar um país nunca será uma medida fácil, mas permitir que o SNS entre em total ruptura, perante o aumento previsível de casos, conduzirá a prejuízos muito semelhantes e, mais importante do que isso, a uma perda de vidas que poderia ser evitada.
Há um inimigo declarado que é preciso eliminar. E é assim que temos de encarar os próximos dias, como um conflito em larga escala contra o vírus, com todas as medidas excepcionais que são justificadas pela situação extraordinária que vivemos, adoptando medidas mais alargadas. Possa cada um dos portugueses, o seu Governo e as autoridades sanitárias estar à altura dos tempos difíceis que são já a realidade de hoje.»
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11.3.20
O'Neill é que sabia
«ó Portugal, se fosses só três sílabas / de plástico, que era mais barato!»
Há um plano de emergência para o vírus da crise económica?
«Com milhões de pessoas fechadas em casa um pouco por toda a China e a atividade económica reduzida ao mínimo, a fábrica do mundo está fechada. Só como exemplo, Shandong, cidade que acolhe refinarias responsáveis por um quinto das importações de crude chinesas, está praticamente parada. Monstros comerciais e industriais estão paralisados. Os efeitos económicos vão ser colossais. O Japão (os Jogos Olímpicos estão em risco), a Coreia do Sul e grande parte da Ásia estão a ser fortemente afetados. Pensem noutras crises, como a causada pela implosão do mercado imobiliário nos EUA, e facilmente perceberão que é pouco ao pé do que se pode avizinhar. Uns idiotas, na Europa, nos EUA e em Portugal, chegaram a especular sobre as vantagens económicas da crise na China. Não lhes ocorreu que antes de cá chegarem os clientes perdidos pela China viria o próprio vírus.
Esqueçam a Ásia. Pensem na Europa. Em Itália, em estado de sítio e fechada. Na Alemanha lenta, em Espanha em pânico. Imaginem o efeito de milhares e milhares de pessoas em quarentena, de empresas a meio gás, das escolas e universidades fechadas, da redução do consumo. Toda a economia europeia disfuncional. Prolonguem isto por meses. Imaginem que impacto terá na economia.
Esqueçam a Europa. Fiquem só em Portugal. Nem precisam de pensar em tudo o que vai funcionar pior ou na despesa pública que será necessária para travar o vírus. Ainda pouco aconteceu e a pressão política (ou aproveitamento político, depende do ponto de vista) já começou. E é quando isso acontece que se tomam decisões absurdas e irracionais para acalmar jornalistas e opiniões públicas mais impressionáveis.
Mas esqueçam a economia em geral. Pensem apenas no turismo, em que baseámos grande parte da nossa recuperação, apesar de tantos avisos sobre a enorme fragilidade dessa escolha. Bastaria um atentado para deitar tudo por terra, disse-se. Não nos lembrámos de um vírus. Não precisam de grande esforço para imaginar nada. A Bolsa de Turismo de Lisboa foi adiada para maio. Querem maior sinal do que vai acontecer do que o que é dado pelo próprio sector? Só nos resta rezar para que isto passe antes do verão.
Acho que já perceberam o meu ponto. Vem aí uma crise económica. Como anunciam as bolsas em queda a pique, vem aí uma brutal crise económica. Enquanto tentamos travar o vírus com os instrumentos que temos, sacrificando a economia em nome de vidas ou da segurança – escolha mais do que compreensível –, há quem tenha o dever de preparar a ressaca económica do coronavírus. A Europa já deu sinal de que será tolerante com derrapagens orçamentais que resultem do combate à epidemia. Não vos digo que é pouco. Digo-vos que é nada. Que é quase um insulto. A Europa tem de preparar uma resposta coletiva a isto, não deixando de novo, como fez com a crise de 2008, cada um sozinho a enfrentar, com instrumentos naturalmente diferentes, a crise que se avizinha. Para descobrir, no fim, que se tivesse agido a tempo teria evitado uma crise à escala continental.
A metáfora do esforço coletivo para conter o vírus é excelente para não repetir os erros de 2008. Não se deixa instalar o pânico, esperando que a maleita destrua os que têm menos defesas. Faz-se um esforço coletivo para conter a epidemia. A Europa tem de começar já a discutir um plano europeu de relançamento económico. Para estar preparada quando a crise chegar. Não há segundas oportunidades. Se cometerem os mesmos erros de 2008 podem esquecer o projeto europeu. Os fantasmas que nos atormentam há mais de uma década tomarão de vez o poder. Comecem já, antes que seja tarde.
Portugal começou, e é caso para dizer que a receita é a de sempre: reduzir obrigações fiscais das empresas, que virão depois a ser pagas pelos contribuintes em IRS, facilitar o lay-off, levando a perda de um terço do salário dos trabalhadores abrangidos e rigorosamente plano nenhum para animar a economia. Como de costume, quando o mar bate na rocha quem se lixa é o mexilhão. Talvez volte a falar desta sina.»
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10.3.20
Boris Vian - Seriam 100 (10.03.1920)
Boris Vian faria hoje 100 anos e morreu antes de chegar aos 40. Escritor, engenheiro mecânico, inventor, poeta, cantor e trompetista, também anarquista, teve uma vida acidentada e ficou sobretudo conhecido pelos livros de poemas e alguns dos seus onze romances, como L’écume des jours e L’automne à Pékin.
Especialmente célebre ficou também uma canção – Le déserteur – , que foi durante muitos anos uma espécie de hino para todos os que recusavam participar em guerras, incluindo muitos portugueses. Lançada durante a guerra da Indochina, foi grande o seu impacto e acabou mesmo por ser proibida por antipatriotismo, na rádio francesa, pouco depois do início do conflito na Argélia.
Nunca esquecerei quando Le déserteur cumpriu a função da mais improvável das marchas nupciais, no casamento de um amigo, em Bruxelas, no fim dos anos 60.
(Serge Reggiani : Dormeur du Val , de Arthur Rimbaud, e Le déserteur de Boris Vian.)
Mais:
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Aprender a viver com a incerteza radical
«O voo de um bando de estorninhos é um espectáculo fascinante. É-o por motivos estéticos, mas também científicos. Não existe um maestro que guie a acção daqueles milhares de pássaros. A coreografia única que produzem em conjunto baseia-se em regras simples de comportamento. Cada ave reage ao que fazem as outras que a rodeiam. O resultado é imprevisível: mesmo que tivesse a inteligência de um humano, nenhum estorninho saberia para onde iria o bando a seguir. Mas a imprevisibilidade - e a enorme complexidade que emerge a partir de regras tão simples - não conduz ao colapso do grupo. O bando mantém-se coeso e o resultado é impressionante.
As sociedades humanas têm muitas parecenças com um bando de estorninhos. Tentem regressar a Dezembro passado e lembrar o que se previa para 2020. Na lista não constava o assassinato do general iraniano Qassem Soleimani às mãos dos EUA, que pôs os mercados financeiros em transe logo no início de Janeiro. Nem a extensão do contágio internacional do novo coronavírus, cujos danos começam a ser evidentes. Nem o efeito do desentendimento entre a Arábia Saudita e a Rússia sobre o preço do petróleo. Ainda nem vamos a um quarto do ano e já estes e outros episódios nos obrigam a repensar muitas decisões.
Há diferenças importantes entre as sociedades humanas e um bando de estorninhos, é certo. Entre nós, há hierarquias bem definidas. Há leis e regras bem mais complicadas, umas escritas outras não. Há memórias estruturadas do passado, que influenciam as nossas escolhas. Há uma luta activa mais ou menos organizada pelas ideias, que ajuda a moldar regras e comportamentos. Em alguns aspectos, estas características tornam as sociedades humanas mais previsíveis do que um bando de pássaros. Noutros, pelo contrário, aumentam a complexidade e a imprevisibilidade.
Tal como no caso dos estorninhos, é possível reconstruir a sequência de casualidades que levou a cada um dos eventos referidos. Esse tipo de análise histórica e institucional ensina-nos muito sobre o funcionamento das sociedades humanas. No entanto, só por um improvável acaso alguém teria conseguido prever cada um deles, quanto mais tudo o que já se passou nos últimos dois meses.
Ainda há quem acredite que a previsão é o objectivo último da ciência. Nas escolas de Economia, por exemplo, os alunos são educados para acreditar na bondade de modelos formais que visam projectar as economias no futuro. Pelo contrário, têm pouco ou nenhum espaço para aprender sobre processos que se verificaram no passado em contextos específicos. Os modelos formais são úteis, sem dúvida. Mas estaríamos mal se as decisões fundamentais para a vida em sociedade se guiassem apenas - ou fundamentalmente - por eles.
Numa decisão pouco habitual, a OCDE anunciou que iria cancelar a publicação dos seus principais indicadores económicos avançados no início de Março, devido à incapacidade de prever neste momento os efeitos do novo coronavírus na economia mundial. Até lá, os governos terão de tomar decisões sem o conforto destas previsões oficiais.
Na verdade, as instituições internacionais também não têm capacidade para prever com o mínimo de precisão os impactos de uma descida abrupta do preço do petróleo, num contexto mundial marcado por níveis de endividamento público e privado sem precedentes históricos, por tensões políticas prolongadas em vários países produtores de petróleo, ou pela preocupação dos EUA face ao rápido desenvolvimento tecnológico da China. Isto não impede a OCDE de ir actualizando as suas previsões ao longo do ano - e ainda bem. O problema não está nas previsões, mas no uso que fazemos delas.
O conforto que muitos encontram nas previsões exactas dos modelos económicos é conveniente, mas é falso. Os responsáveis do futuro não podem ser ensinados apenas a construir modelos que assumem níveis de certeza que não existem. Igualmente importante é aprendermos todos a lidar a com a incerteza radical que caracteriza as sociedades humanas. Pelo menos tanto como os movimentos de um bando de estorninhos.»
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Max von Sydow
Ficará para sempre ligado a Ingmar Bergman no baú das nossas memórias.
9.3.20
A vida é cheia de surpresas
Quem nos diria que, no dia em que comemora o quarto aniversário da tomada de posse como presidente da República, Marcelo iria fazer um teste para saber se nele se alojou um bicharoco?
Hipocondríaco como se confessa, é bem capaz de nunca mais querer andar por aí aos beijinhos e de isso condicionar a decisão quanto a uma segunda candidatura!
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O PS tornou-se cavaquista?
«Quem diria que as “forças de bloqueio” tão caras à retórica ressentida de Cavaco Silva quando era primeiro-ministro – e que visavam especialmente o então Presidente Soares – estão de regresso pela boca do PS, desde a presidente do grupo parlamentar socialista, Ana Catarina Mendes, até ao presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina, tendo na mira os partidos da oposição ou entidades como o Tribunal de Contas? Que razões oblíquas levam o PS a adoptar uma expressão que, no seu primitivo tempo cavaquista, era entendida pelos socialistas como um mau exemplo de desconforto com a natureza diversa, plural e até conflitual da democracia? Como se explica esta eventual e tão estranha metamorfose do velho cavaquismo no actual socialismo?
As respostas a estas interrogações não são lineares até porque implicam situações, psicologias e comportamentos variados. Mas a explicação global para o regresso das “forças de bloqueio” talvez se resuma a um clássico infeliz da história das democracias: a arrogância e a displicência do poder – de um poder que se fecha sobre si mesmo, se julga infalível ou se torna avesso ao diálogo e à negociação com os opositores ou outras instâncias políticas e judiciais. Um poder que, para cúmulo, alimenta a auto-ilusão de ter negociado o que nunca verdadeiramente negociou.
Tudo isso é ilustrado através de três exemplos recentes: as polémicas sobre o aeroporto do Montijo, as PPP na Saúde e a escolha dos candidatos do PS ao Tribunal Constitucional – tendo as duas últimas tido como resultado inevitável a derrota parlamentar do Governo. No primeiro caso, houve uma inexplicável precipitação e uma insustentável ligeireza (que fez o Governo esquecer, por exemplo, a necessidade de negociar com as autarquias da área do aeroporto, devido a uma lei – porventura disparatada – do Governo Sócrates). No segundo caso, temos uma história de contornos opacos e muitíssimo duvidosos que os responsáveis políticos capricharam em ocultar (o que, obviamente, a tornou um objecto político inviável). E, no terceiro, deparamos com a escolha absurda de Vitalino Canas, uma personagem de perfil mais do que controverso, para um cargo da mais elevada responsabilidade político-judicial (escolha também rejeitada, aliás, por deputados do PS).
Estes são três casos de falta de bom senso político elementar e, por isso, indefensáveis, mesmo que o PS possa ter razão de queixa no que se refere ao oportunismo calculista das oposições (nomeadamente do PSD em relação ao aeroporto do Montijo, um projecto aprovado pelo Governo de Passos Coelho). Aliás, dada a forma como tratou os três dossiers, o PS só pode queixar-se de si próprio, estando obrigado a fazer um urgente exame de consciência ético-político para evitar cair em novas armadilhas em forma de “forças de bloqueio”.
Como salientou o Presidente da República, por ocasião dos 30 anos do PÚBLICO, “naquilo que o sistema político e social – e é bastante – está descolado da realidade, é preciso mudar de vida enquanto é tempo”, até porque não se pode começar uma legislatura com “um estado de espírito de fim de legislatura". É um recado para toda a gente, mas que compromete em primeiro lugar António Costa, mergulhado numa governação “caso a caso, em cima da hora, no último segundo”, uma governação aparentemente cansada de si mesma, talvez porque não se adaptou ao fim da “geringonça” e vive na ilusão – ou na frustração – de ter uma maioria absoluta que não conseguiu conquistar. Ou será por causa – diria Cavaco – das “forças de bloqueio"?»
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8.3.20
São Tomé e Princípe, a crónica da morte anunciada da Catarina
«São Tomé e Príncipe tem sido um país mergulhado na miséria crescente, sem futuro e com o crescimento descontrolado da natalidade, infelizmente pelas piores razões: a poligamia masculina e o abandono das crianças e das mães e pela ausência do planeamento familiar. A organização não-governamental que “mais” actua por lá, mais parece governamental que não-governamental.
O risco aumenta. O consumo de álcool aumenta. A pobreza é gritante. No meio disto, a criminalidade dispara. O desemprego também e a saúde é uma catástrofe. O que pensa desta tragédia um primeiro-ministro caído do céu, e o que faz pelo povo que diz ser seu, se não garante nada aos nacionais? A credibilidade morreu. E nem o petróleo que as petrolíferas querem explorar lhes garante segurança ou sustentabilidade financeira. A miséria é cada vez maior. O naufrágio do Anfrititi mostrou um Governo que abandona o seu povo. Foi a mim que o Governo regional do Príncipe pediu para confortar famílias dizimadas. Lavadas em lágrimas. Determinado jornal português assediava-me pelo sensacionalismo, para lhe “confirmar a morte de uma portuguesa”. Tinham morrido afogadas cerce de 60 pessoas, santomenses como eu. Não havia portugueses como eu sou também. Nada foi feito pelo Governo central. Cada um decide em causa própria. Não promovem a saúde nem garantem a segurança.
Turismo? Não me esqueço da turista alemã brutalmente violada no sul, por três santomenses. A morte da Anabela com 17 anos. Sem diagnóstico. Morreu nos braços da minha filha Francisca. Agora, a morte da Catarina. Não podemos continuar a ignorar a gravidade desta miserável situação!
O alarme instalou-se com um ensaio de pré-ditadura em 2016. Apelei à intervenção do primeiro-ministro de Portugal, pessoalmente e depois através de um artigo no PÚBLICO. Sou preta. Daquele tipo que nasceu imperfeita. E não tenho culpa. Mas visto com orgulho a pele que tenho, a raça e o sangue das minhas veias e da terra em que nasci. Mas não compreendo, 45 anos depois da independência, como se assassina cruelmente uma mulher, portuguesa, indefesa, à catanada, que não é preta como eu. Portugal nada diz. E São Tomé e Príncipe em silêncio de sepulcral. A morte da Catarina, indefesa, não pode ser silenciada. Exijo um ponto final no projecto da corrupção e das miseráveis condições de saúde, socioeconómicas e de criminalidade violenta, associada ao consumo de álcool, a disparar.
Durante as eleições, em 2018, defendi o regresso à democracia. Apoiei Bom Jesus, sem carisma. Acreditava que era um bom homem. Honesto. Carregado de sonhos para o país que me viu nascer. Coloquei-me à frente dos ninjas que se preparavam para abater jovens manifestantes. Hoje, olho para um povo desesperado que me envergonha e coloca nas redes sociais um corpo de uma mulher esquartejada no seu local de trabalho. E pergunto: o senhor primeiro-ministro não se envergonha da pasta que lidera? Acha que este é um país melhor do que aquele que herdou?
Caro António Costa, estive com o ministro Augusto Santos Silva. Elogiou o estudo que liderei em São Tomé e Príncipe quando da visita do Presidente da República de Portugal. Esses resultados acabaram com ameaças de morte e contra a minha integridade física. Acima da minha nacionalidade, sou mãe de três filhos. Gostava de morrer quando Deus quiser. Posso? A Catarina, da minha idade, foi brutalmente assassinada no seu local de trabalho. Liguei ao Tiziano e à Mari, seus patrões, italianos. E vocês, grande Governo de um democrático Portugal, o que fazem para defender a Catarina? E a Embaixada de Portugal? Além de estrangulada e invadida, Portugal não vai defender um conceito que a justiça de São Tomé engoliu? Tenho a morte prometida. Talvez seja um aviso à vossa navegação. Está tudo bem. Enquanto discutem a covid-19 com muita propaganda à mistura, convinha abrir os olhos. E ver.»
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