«No fundo, não é difícil pedir perdão. Sobretudo para alguém que é cristão, ou vem duma cultura cristã. É só reconhecer o mal cometido porque a vítima, essa, não tem outra opção senão aceitar o pedido de desculpas. Entre adultos, e sobretudo, entre estadistas que precisam da ficção de partilharem os mesmos valores, ficaria muito mal um pedir desculpas e outro rejeitá-las. O mundo diplomático que confere sentido ao que se diz – e ao que se não diz – encarrega-se sempre de produzir doses suficientes de compreensão que legitimam o pedido e aceitação de perdão.
Esteve muito bem o primeiro-ministro português ao pedir perdão pelo massacre de Wiriamu ao Presidente de Moçambique. Revelou-se bom cristão, ou bom cultor dos valores ocidentais. O único, contudo, que é estranho neste pedido é o tempo que levou para ser formulado. Tudo isto tendo em conta, claro, que não é difícil pedir perdão.
de
O massacre foi há 50 anos. Passaram 47 anos desde que Moçambique ficou independente de Portugal. Vários Presidentes e primeiros-ministros portugueses visitaram Moçambique durante esse período de tempo. Todos os Presidentes que Moçambique já teve passaram por Portugal. É estranho que em nenhuma destas ocasiões tenha passado pela cabeça de nenhum estadista ou chefe de Governo português fazer algo tão simples quanto isso.
Mas o primeiro-ministro português falou bem na ocasião. Ele disse que Wiriamu é um “acto indesculpável que desonra a nossa História”. Aliás, há algo que parece profundo nessa afirmação, ainda que não esteja bem claro para mim se “nossa” se refere a Portugal, ou a Portugal e Moçambique.
Se a referência for a Portugal, ele pode ter muita razão. Portugal não é só colonialismo. É também a proclamação constante de valores com profundo teor humanista, alguns dos quais motivaram o próprio colonialismo. Não há nenhuma ironia nesta constatação. Nem sempre a maldade é fruto de más intenções. Ela pode ser motivada por boas intenções. Há algo de nobre e altruísta na intenção de trazer alguém à civilização e ao progresso, mesmo que essa pessoa não tenha manifestado interesse por isso.
Mas se “nossa” se refere à História de Portugal, então não é a Moçambique que António Costa deveria pedir perdão. Os moçambicanos não têm nada a ver com o seu conflito com a própria História. No lugar de desculpas, ele deve simplesmente reflectir sobre o que falhou na cultura sobre a qual essa História assenta para que ela impelisse os seus membros a fazerem coisas que mais tarde iriam constituir razão de vergonha.
Como moçambicano, dar-me-ia por satisfeito ouvindo um estadista português a dizer, 50 anos depois, que nunca ninguém se tinha pronunciado porque o País ainda estava a reflectir sobre o que teria levado a cultura desonrada dessa forma a fazer esse tipo de coisas. Só isso.
Agora, se “nossa História” se refere a Portugal e Moçambique, isto é, ao que fez dos dois países companheiros num destino mais ou menos comum, bom, as coisas ficam mais complicadas ainda. Essa “nossa História” é que é o problema. Na medida em que ela assentou justamente na dominação dum pelo outro – e, tudo, claro, na base de boas intenções –, ceifar a vida a 400 pessoas é, teoricamente, mas também na prática, apenas documento da natureza dessa “História”.
Assim sendo, um acto ignóbil como este não desonra História nenhuma. Confirma-a. Aliás, um acto como esse não existe isolado da História que o tornou possível. A própria História é que seria indesculpável, julgo. Quero dizer, soaria estranho que um senhor de gente escravizada lá nas Américas pedisse perdão por ter mutilado uma dessas pessoas porque isso desonra a escravidão...
Sei que estou a procurar agulha em palheiro. A verdade é que o primeiro-ministro português fez aquilo que, aparentemente, ninguém mais, ao seu nível, fez. E isto sabendo todos nós que não custa nada pedir desculpas. Então, não procuro, a bem dizer, nenhuma agulha no palheiro. Procuro a varinha mágica que enobrece os europeus em tudo o que fazem.
Ainda que a decência me obrigue a reconhecer a nobreza do gesto português, sinto uma raiva interior quando constato que simples palavras que não custam nada para pronunciar têm o condão de colocar o europeu que as profere num patamar ético elevado.
É como se a “nossa História”, portanto, o percurso português e moçambicano, fosse uma narrativa que reserva ao sofrimento africano o papel perverso de oferecer ao europeu a oportunidade de confirmar a sua superioridade moral. Uma vez, a escritora norte-americana negra, Toni Morrison, indagou-se como se sentem os europeus quando olham para tudo o que os seus fizeram em nome da sua própria cultura. Orgulhosos? Com vergonha? Na altura, quando ela colocou essa pergunta, fiquei também a pensar, sem resposta. Hoje, ao ler sobre o pedido de desculpas de António Costa, sinto-me como se tivesse encontrado a resposta. Não custa nada pedir desculpas porque tudo o que é decente, por muito tempo que leve a acontecer, faz parte da cultura europeia.
Sem nenhum pingo de ironia, ocorre-me apenas dizer que o pedido de perdão do primeiro-ministro português é um acto profundamente europeu. Vai ser humano no dia em que a sua inteligibilidade moral não assentar num quadro ético que dê a aceitação desse pedido por adquirido. Por enquanto, nem consigo imaginar os contornos desse quadro.»
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