10.9.22

Mais uma casa

 


Casa Lleo i Morera, Barcelona, 1906.
Vitrais: Antoni Rigalt i Blanc.
Arquitecto: Lluis Doménech i Montaner .


Daqui.
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A dura realidade dos factos

 

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A rainha imaginária

 


«Em todos os lamentos pela morte da rainha Isabel II que li — e nunca li lamentos tão sentidos por uma pessoa que viveu tantos anos — não vi nem uma vez referido o sentimento da pena.

Mas não faz pena uma mulher que perdeu uma vida inteira a agradar aos outros? Não faz pena uma mulher que nasceu com tantas maneiras de passar agradavelmente a vida — com amor, terras, família, tempo, dinheiro e sentido de humor — ter passado tanto tempo em cerimónias públicas, a aturar pessoas das quais qualquer pessoa fugiria se pudesse?

Não faz pena uma mulher tão independente e directa, tão isenta de vaidade ou pretensões, ter passado tantos anos a fingir que estava contente por se encontrar com uma série interminável de figurões, todos desejosos de conhecer a rainha?

Quantos sorrisos terá sido forçada a sorrir ao longo de sete décadas inteiras de serviço público?

Não faz pena pensar nos anos que perdeu uma pessoa que chegou aos 96 anos? Somando todas as horas em que foi livre para fazer aquilo que queria — nem que fosse nada — quantos anos viveu realmente a rainha? Dez? Quinze? Vinte que fosse?

É a facilidade com que se aceita este sacrifício dela que me choca, sobretudo agora que ela morreu. É a facilidade com que as pessoas se consolam: “ela, se calhar, gostava daquelas chachadas todas...”

Não, não gostava. Mas não mostrava. Mantinha brilhantemente a ilusão. Cultivava o afastamento e a distância. E assim conseguiu convencer cada súbdito que só ele ou ela é que a conheciam. Assim toda a gente, nova e velha, de esquerda ou direita, escocesa ou inglesa, podia projectar nela as fantasias de Estado que quisesse.

Nunca dizendo o que sentia ou pensava, permitiu que toda a gente adivinhasse. Essa magnífica contenção dela era uma forma profunda de generosidade e de entrega.

E é o contrário da atitude moderna, personificada pelo filho que agora é rei. Toda a gente sabe o que ele pensa. E assim ninguém fica com liberdade para imaginar.»

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Jorge Sampaio

 


Partiu há um ano. Nem sei se este passou depressa ou se me parece uma eternidade por tudo o que aconteceu entretanto. Talvez não seja mau que o Jorge tenha sido poupado a vivê-lo, mas fez falta por cá.
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Uma bela capa


9.9.22

Casas

 


Fachada e varandas da Casa Josefa Villanueva, Barcelona, 1904 – 1909.
Arquitecto: Juli M. Fossas.


Daqui.
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Fotos da (futura) rainha?

 


Esta: A Princesa Elizabeth a jogar à apanhada em 1947.

Daqui.

Procure as diferenças

 

«Quando se atribui uma ajuda deste tipo, única, é importante fazer uma pedagogia e explicar às pessoas que não podem ir gastar estas verbas todas de uma só vez até porque isso pode ter um efeito que é contrário ao nível da inflação.» (Isabel Jonet, 2022)

«Como social-democrata, atribuo uma importância extraordinária à solidariedade. Mas também deve haver obrigações: não se pode gastar todo o dinheiro em copos e mulheres e depois pedir ajuda.» (Jeroen Dijsselbloem, 2017)
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A diferença entre um pacote de medidas e medidas em pacote

 


«O primeiro aspecto que eu salientaria no pacote de medidas anti-inflação proposto pelo Governo é o facto de a palavra pacote ter um prestígio muito reduzido, seja por estar frequentemente associada a mousses de chocolate de qualidade inferior, seja por ser usada como gíria para rabo. Creio que se nota que não estudei economia. Mas quem estudou descobriu no pacote alguns aleijões que estão ao nível da reputação da palavra. Por exemplo, o Governo propõe baixar generosamente o IVA da energia dos 13% para os 6%. Acontece que a taxa de 13% incide sobre muito poucos consumos energéticos. A esmagadora maioria da energia é taxada a 23%, e assim continuará. Significa isto que prometer baixar o IVA da energia dos 13% para os 6% é como anunciar que os bifes de unicórnio passam a ser gratuitos no talho.

Outras críticas ao pacote de medidas, francamente, não me parecem ter razão de ser. Um caso flagrante é o das pensões. Os críticos acusam o Governo da seguinte habilidade: António Costa adianta aos reformados já em Outubro um aumento nas pensões que estava previsto apenas para o próximo ano. A contrapartida manhosa é que, assim, o Governo consegue fazer com que, na prática, nos próximos dois anos o valor das pensões acabe por diminuir face ao que estava previsto. Ou seja, apesar de receberem um aumento extraordinário no mês que vem, dentro de dois anos os reformados estarão a receber pensões menores do que teriam se não houvesse esta alteração. Para a oposição, isto é uma vigarice; para mim, é bem pensado pelo Governo. António Costa sabe que, no estado em que se encontra a saúde em Portugal, mais vale dar uma alegria já aos reformados do que confiar na hipótese remota de eles conseguirem durar mais dois anos. Os reformados que cometerem a proeza de ainda cá estar em 2024 terão demonstrado ser tão rijos que talvez não precisem de pensões mais elevadas. As ajudas do Estado destinam-se a quem precisa, e qualquer maior de 65 anos que seja capaz de resistir dois anos aqui revela não necessitar de auxílio. É como perguntar ao Rambo se precisa de ajuda para sobreviver duas horas na selva. Há super-heróis que não são tão poderosos. Havendo juízo nos estúdios da Marvel, o próximo filme seria sobre uma idosa que vive em Portugal com 509,6 euros por mês. Alzira, a Pensionista de Aço. Tenho o guião quase pronto. Contactem-me.»

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8.9.22

Lavatórios

 


Lavatórios Arte Nova, 1900.
Castelo de Grenouille, France.


Daqui.

Mais um Comunicado da APRe!

 


PENSÕES: ANTECIPAÇÃO DE PAGAMENTO NÃO É APOIO EXTRAORDINÁRIO

1. Logo após a comunicação do Senhor Primeiro-Ministro ao país sobre as medidas excepcionais destinadas a minimizar os efeitos da inflação, a Associação de Aposentados, Pensionistas e Reformados (APRe!), em múltiplas declarações públicas, acentuou que o que é apresentado para apoiar este sector da população não é mais do que uma operação de mera antecipação, por alguns meses, de rendimentos a que, ao abrigo da lei existente, em vigor desde 2006, teríamos direito a partir de Janeiro de 2023. Acentuamos: partindo do princípio de que os cálculos foram bem feitos, tal não significa que o Governo, como foi explicitado, esteja a atribuir-nos uma compensação adicional pela perda do poder de compra devida à inflação galopante que nos afeta desde há vários meses. Trata-se tão só da redistribuição de um mesmo valor, relativo ao ano de 2023, por mais um mês em 2022 (15 no total).

2. Aliás, esta medida governamental introduzirá no sistema um factor perturbador que nos penaliza: a base sobre a qual se aplicará, ao abrigo da mesma lei, o cálculo do aumento previsível para 2024 passará a ser inferior à prevista, caso estas medidas não existissem. Este assunto preocupa a APRe! porque, na realidade, significará uma perda de rendimentos para o futuro, relativamente ao que a lei prevê. Se, de acordo com a referida lei, tivemos, na última década, um ‘congelamento’ generalizado das pensões, porque os valores do crescimento médio do PIB (produto interno bruto) e do IPC (índice dos preços ao consumidor) nela referidos não foram atingidos, seríamos penalizados se os efeitos benéficos da mesma agora fossem revogados. Não o aceitaremos. Se nos é apresentado o argumento de que a aplicação da lei, no atual contexto, porá em causa o equilíbrio financeiro da Segurança Social, então, a APRe! entende que, como vimos dizendo há anos, se faça, nos próximos meses, uma reflexão – sistemática, ampla e profunda – acerca dos meios adicionais de financiamento da Segurança Social que assegurem a sua sustentabilidade, sobretudo relativamente às novas gerações.

3. Neste contexto, acresce que, no quadro das medidas destinadas a compensar os custos da inflação, as pessoas aposentadas, pensionistas e reformadas ficam de fora: são atribuídas verbas, individualmente, à generalidade da população com rendimentos abaixo de um determinado valor, incluindo jovens e crianças… mas quem é aposentado, pensionista ou reformado é discriminado. Todas estas pessoas são excluídas desta medida. A antecipação dos rendimentos acima referida é apresentada neste contexto como se de compensação se tratasse. E não é verdade! Uma clara demonstração desse facto é o critério diferente de tributação para efeitos de IRS: a antecipação do pagamento de meia pensão aos reformados é tributável, embora em separado, segundo é dito; as medidas de compensação serão totalmente livres de impostos.

4. Em conclusão, a APRe! não aceita:

a) que, em cima do acontecimento, para adaptar a lei à realidade duma opção política conjuntural, se proceda à revisão/alteração da Lei nº 56-B/2006. A constitucionalidade de tal iniciativa será por nós contestada, se ela vier a concretizar-se;

b) que as pessoas aposentadas, pensionistas e reformadas sejam discriminadas relativamente à generalidade da população, quando o Orçamento do Estado vem apoiá-la com uma prestação extraordinária, para minimizar os efeitos da inflação; c) que as nossas reivindicações, baseadas num princípio de justiça, sejam tomadas como colocando em causa a sustentabilidade da Segurança Social.

7 de setembro de 2022
A Direcção
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Quando Marcelo enfiou a República Portuguesa na campanha eleitoral de um quase septuagenário inseguro da sua virilidade

 


«Como toda a gente sabia, as celebrações do bicentenário da independência do Brasil não iam ser celebrações do bicentenário da independência do Brasil.

Na pior das hipóteses, iam ser um apelo velado no bas-fond bolsonarista à intervenção militar ou à subversão das instituições. Faixas pediram que o presidente demitisse ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) ou que acionasse as Forças Armadas para estabelecer a ordem.

Na melhor das hipóteses, seria um momento de campanha eleitoral. “Temos pela frente uma luta do bem contra o mal, o mal que perdurou por catorze anos em nosso país, que quase quebrou nossa pátria e que agora deseja voltar à cena do crime”, disse o candidato. Já há queixas na justiça eleitoral por Bolsonaro ter usado meios públicos para fazer campanha e um evento oficial para discursar como candidato – fê-lo logo depois do desfile, num carro de som, para o mesmíssimo público.

Depois de ter feito apelos ao voto num comício financiado pelo Estado e no que devia ser uma das celebrações mais relevantes dos últimos cem anos no Brasil, o extra foi o momento confrangedor em que Bolsonaro achou que era importante dar provas vocais da sua virilidade. E, acompanhando alguns manifestantes mais próximos e mais excitados com a masculinidade do seu líder, pôs milhares de apoiantes a gritar “Imbrochável! Imbrochável! Imbrochável!” Isto depois de ter falado da sua mulher e a ter beijado.

Para os portugueses menos familiarizados com o calão brasileiro, “brochada” é não criar as condições, do lado masculino, para o desempenho eficaz do coito (sinto que conquistei um record de eufemismo). Para entrar no registo, Bolsonaro parece precisar de ajuda dos seus apoiantes. Para Presidente, segundo as sondagens, já não vai dar. Para o resto, esperemos que tenha o apoio de muitos milhares, que cada um sabe dos métodos que usa.

Tendo isto acontecido numa celebração tão simbolicamente relevante para o Brasil como o bicentenário da independência, dá alguma saudade dos velhos conservadores institucionalistas.

Este texto acabaria aqui, sinalizando a decadência onde se roja a política brasileira, em que duzentos anos de independência de uma das maiores nações do mundo servem para celebrar – ou ajudar, ou certificar – as qualidades viris de um quase septuagenário inseguro. Fico triste, mas preferia não ter de misturar o tom revisteiro que esta crónica é forçada a adotar com o nome do Chefe de Estado português. E ele lá estava, no desfile militar em Brasília onde se gritaram insultos contra Lula, mesmo antes do comício, ao lado de um homem vestido de periquito – Luciano Hang, proprietário duma das maiores redes de lojas do Brasil e promovido, no protocolo inexistente, ao nível de dois chefes de Estado, por ser chefe da claque de Bolsonaro. Portugal foi envolvido num dos momentos mais confrangedores e imorais da campanha eleitoral do Brasil.

Poderia dizer-se que Marcelo Rebelo de Sousa não sabia ao que ia. Mas sabia perfeitamente. Todos o Brasil sabia e todos os que acompanham mesmo que vagamente a política brasileira sabiam. Marcelo foi, conscientemente, ao que sabia que seria um momento de campanha. Toda a mobilização foi explicitamente feita para fazer disto o ponto de viragem da campanha de Bolsonaro. Quem lá foi – e não foram os representantes dos restantes órgãos de soberania brasileiros –, foi apoiar o candidato incumbente.

Não há festa nem festança a que não vá a Dona Constança. Nunca os presidentes de Angola vieram aos funerais dos nossos anteriores chefes de Estado, mas Marcelo foi ao de José Eduardo dos Santos, num momento especialmente complicado da política angolana. Ninguém com responsabilidades que não esteja em campanha por Jair Bolsonaro foi àquela ação de campanha trasvestida de cerimónia oficial, mas Marcelo lá esteve, para enxovalho da dignidade do Estado português – que ao enxovalho do Estado brasileiro só os brasileiros, esperemos que muito brevemente, poderão pôr fim. E era tão importante lá ir, que quase nenhum brasileiro sabia da sua presença e Bolsonaro foi se embora sem sequer se despedir. Marcelo foi só figurante de um triste espetáculo.

A hiperatividade de Marcelo às vezes é um problema, outras vezes uma vantagem. Ontem, foi uma vergonha previsível e procurada. Uma irresponsabilidade absurda. Estar presente no bicentenário era institucionalmente importante. Nestas condições, era institucionalmente inaceitável.»

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Entretanto na AR

 


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7.9.22

Para não dizerem que não mostro gatinhos



 

Aqui fica este, magnífico, da autoria de Fernando Botero, e que eu fotografei no Museu Botero, em Bogotá.
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E ainda quando a reformas

 


«Prestação extraordinária no valor de meia pensão terá, a prazo, custos para os pensionistas. Perda acumulada até ao final da vida para um pensionista com 65 anos e que recebe uma reforma de 886,4 euros brutos mensais em 2022, ultrapassa os 13.400 euros, segundo as simulações do economista Jorge Bravo para o Expresso. E pode chegar aos 15 mil euros.»

(Expresso, 06.09.2022)
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Ouvido na tabacaria

 


- Ó sr. X, não se esqueça de encomendar o dobro de raspadinhas para Outubro ou vai ter problemas!

- Então porquê?

- Com 125 euros no bolso, a fila vai dar a volta ao quarteirão para ver se eles duram até ao Natal…
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Um milhão de Portugueses emigraram na última década

 


«O Relatório da Emigração 2020, elaborado em 2021 pela Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, é um importante documento que contém um extenso repositório de informação sobre a emigração portuguesa.

A grande conclusão estruturante é que Portugal continua a ser um dos principais países de emigração, sendo o número global (stock) (c. 2,6 milhões nacionais, em 2019) correspondente a 25,7% da sua população global, o valor mais alto dentre os países da UE.

Outro dado que impressiona é a constância de altos números de emigrantes anualmente. De acordo com o INE, de 2011 a 2020 emigraram 991 536 cidadãos nacionais.


Ou seja, na última década saiu do país, via emigração, 10% da população residente de nacionalidade portuguesa. A este ritmo, com taxas de fecundidade baixas e fluxos de imigração baixos, a diminuição da população residente em Portugal é inevitável. Em 2100, de acordo com a Population Survey das NU, seremos 6,6 milhões; de acordo com as projeções de um estudo de Vollset e outros, seremos apenas c. 4,5 milhões. A este ritmo pode bem ser pior.

Os efeitos daqui decorrentes são dramáticos, nomeadamente em termos de vitalidade na sociedade e na segurança social.

O relatório citado refere, em termos gerais, a razão principal para esta sangria migratória: "Portugal tem um PIB per capita e um índice de desenvolvimento humano com valores claramente inferiores aos dos principais países de destino da emigração portuguesa". Por outro lado, "Portugal tem [tido] uma taxa de desemprego superior à dos principais países de destino da sua emigração (com exceção da verificada em França)." Mas estas razões não explicam completamente o fenómeno.

Não é realista conseguir a breve trecho melhorar as condições de vida da generalidade da população e, em especial, melhorar significativamente a situação remuneratória dos trabalhadores portugueses. Há muitas pessoas com baixos rendimentos, quando não no limiar da pobreza, e muitas empresas com uma estrutura de custos assente em salários baixos. Não é possível mudar isto a curto prazo. Mas é necessário definir uma estratégia de desenvolvimento económico em que grande parte dos que ponderam sair acreditem que, a prazo, as condições de vida serão melhores e decidam não emigrar. Para que isso suceda é indispensável que haja propósito, rumo, ambição, que os governantes sejam competentes e confiáveis, que os gestores empresariais sejam qualificados e capazes, que seja mais fácil desenvolver projetos, que a carga fiscal seja menos opressiva. Enquanto isto não suceder, esta hemorragia migratória não cessará.

Precisamos também de começar a reforçar bastante mais os laços das instituições de Portugal com os seus cidadãos que estão fora, emigrados. Por volta de 2050, a maior parte dos Portugueses deixará de estar a residir em Portugal e passará a estar noutros países, nomeadamente em Espanha, França, Alemanha, Reino Unido, Brasil, Estados Unidos, Canadá, Angola. É possível, senão provável, que, após 2-3 gerações, haja uma integração nesses países. Muitos não irão regressar. Mas é fundamental que o Estado Português reforce as vias pelas quais estes cidadãos mantêm ligação à pátria.»

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Always look on the bright side of life

 

«Os principais beneficiados com a antecipação da meia pensão para Outubro são os pensionistas que vão morrer em Novembro ou em Dezembro deste ano. Esses já não receberiam nenhuma pensão de 2023 e, desta forma, ainda recebem em Outubro meia pensão de 2023.»

Luís Aguiar-Conraria no Facebook
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6.9.22

Vasos

 


Vaso de vidro com suporte em latão, 1910.
Museu de Arte da Filadélfia.


Daqui.

Reformas e engenharia financeira

 


Um primeiro comunicado da APRe! sobre o problema das reformas. Outros virão.
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Uma intrujice de milhões e tostões no milagre da rosa

 


«O embuste mais sofisticado é o das pensões. No caso do IVA da energia, é somente uma rasteira contando com a ingenuidade das pessoas: “baixar dos 13% para os 6%” é uma afirmação rigorosa, embora esquecendo a explicação fundamental de que pouca da energia está abrangida pelos 13% e que, quanto ao resto, continuam os 23%, portanto pouco mudando na fatura final. Mas no caso das pensões, que se dirige a mais de dois milhões de pessoas com os menores rendimentos e maior idade, a trapaça é ainda mais grave e consiste em dois passos: primeiro, oferecer em outubro um adiantamento do aumento legal previsto para 2023 e depois, a partir do início do próximo ano, reduzir o impacto do aumento que seria imposto por lei e, para esse efeito, mudar mesmo a lei.

O efeito dessa dupla manobra, além do engodo do pagamento em outubro, é manter no conjunto dos dois anos uma redução do valor real da pensão e, a partir de janeiro de 2024, diminuir a base de incidência dos futuros ajustamentos à inflação. Quem recebe uma pensão é prejudicado dessas duas formas e, portanto, se há uma medida estrutural, é esta: o valor efetivo da pensão vai cair em termos reais e ficará abaixo do que a lei impunha.

É uma velha obsessão do PS: no cálculo do seu programa eleitoral para 2015 anunciava orgulhosamente que, se Costa tivesse maioria absoluta, imporia o congelamento de pensões por quatro anos e as contas públicas ganhariam uns gordos 1660 milhões de euros. Essa medida teve de ser anulada graças à geringonça e houve aumentos, mas isso são contas de outro rosário.

Veja o caso da pensão média de velhice na Segurança Social, que, segundo os últimos dados oficiais, teria sido de 468 euros em 2020. Em 2021, com o aumento extraordinário e simplificando outros efeitos, andaria então pelos 478. Em 2022, essa pensão teve novo aumento extraordinário que, conjugado com o ajustamento legal, deu mais dez euros, a que agora, com o pacote ontem anunciado, se acresce a tal metade do mês de outubro. É sobre o valor base que se vão então aplicar os tais 4,43% do aumento para o ano de 2023, pelo que essa pensão chegará a partir de janeiro a 509,6 euros.

Se, em contrapartida, essas pensões tivessem sido atualizadas este ano pelos 8%, mesmo considerando uma inflação abaixo da real, e se no próximo ano se aplicasse a lei que imporia o aumento de 8%, o valor recebido pelos pensionistas ao longo dos dois anos – para não perderem poder de compra e na hipótese incerta de que a inflação em 2023 seja igual à deste – seria de mais 831 euros do que o que lhes entrará nas contas.

A diferença é mais de um mês e meio de pensão. Será menos se a inflação do próximo ano for menor, será maior se o contrário acontecer e, até agora, as previsões só pecaram por defeito. Ou seja, a medida do governo para as pensões é uma intrujice.»

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Porquinho mealheiro

 


Depois das medidas anunciadas ontem à noite, aconselha-se as famílias a inscreverem-se neste concurso da RTP.

N. B. – Um aspecto importante: os pensionistas vão receber apenas um ADIANTAMENTO do que receberiam em 2023, nada adicional. Ficarão em Janeiro de 2023 com uma pensão menor do que teriam pela aplicação da lei, com consequências para o futuro, a partir de Janeiro de 2024. É um corte nas pensões.
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5.9.22

Cinemas

 


Cinema Arte Nova.
Animatógrafo do Rossio, Lisboa, 1907.


Daqui.

Ena, IL!

 

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Galeano, ainda

 

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Lisboa há pouco mais de 100 anos

 


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É fácil pedir perdão



 

«No fundo, não é difícil pedir perdão. Sobretudo para alguém que é cristão, ou vem duma cultura cristã. É só reconhecer o mal cometido porque a vítima, essa, não tem outra opção senão aceitar o pedido de desculpas. Entre adultos, e sobretudo, entre estadistas que precisam da ficção de partilharem os mesmos valores, ficaria muito mal um pedir desculpas e outro rejeitá-las. O mundo diplomático que confere sentido ao que se diz – e ao que se não diz – encarrega-se sempre de produzir doses suficientes de compreensão que legitimam o pedido e aceitação de perdão.

Esteve muito bem o primeiro-ministro português ao pedir perdão pelo massacre de Wiriamu ao Presidente de Moçambique. Revelou-se bom cristão, ou bom cultor dos valores ocidentais. O único, contudo, que é estranho neste pedido é o tempo que levou para ser formulado. Tudo isto tendo em conta, claro, que não é difícil pedir perdão.

de O massacre foi há 50 anos. Passaram 47 anos desde que Moçambique ficou independente de Portugal. Vários Presidentes e primeiros-ministros portugueses visitaram Moçambique durante esse período de tempo. Todos os Presidentes que Moçambique já teve passaram por Portugal. É estranho que em nenhuma destas ocasiões tenha passado pela cabeça de nenhum estadista ou chefe de Governo português fazer algo tão simples quanto isso.

Mas o primeiro-ministro português falou bem na ocasião. Ele disse que Wiriamu é um “acto indesculpável que desonra a nossa História”. Aliás, há algo que parece profundo nessa afirmação, ainda que não esteja bem claro para mim se “nossa” se refere a Portugal, ou a Portugal e Moçambique.

Se a referência for a Portugal, ele pode ter muita razão. Portugal não é só colonialismo. É também a proclamação constante de valores com profundo teor humanista, alguns dos quais motivaram o próprio colonialismo. Não há nenhuma ironia nesta constatação. Nem sempre a maldade é fruto de más intenções. Ela pode ser motivada por boas intenções. Há algo de nobre e altruísta na intenção de trazer alguém à civilização e ao progresso, mesmo que essa pessoa não tenha manifestado interesse por isso.

Mas se “nossa” se refere à História de Portugal, então não é a Moçambique que António Costa deveria pedir perdão. Os moçambicanos não têm nada a ver com o seu conflito com a própria História. No lugar de desculpas, ele deve simplesmente reflectir sobre o que falhou na cultura sobre a qual essa História assenta para que ela impelisse os seus membros a fazerem coisas que mais tarde iriam constituir razão de vergonha.

Como moçambicano, dar-me-ia por satisfeito ouvindo um estadista português a dizer, 50 anos depois, que nunca ninguém se tinha pronunciado porque o País ainda estava a reflectir sobre o que teria levado a cultura desonrada dessa forma a fazer esse tipo de coisas. Só isso.

Agora, se “nossa História” se refere a Portugal e Moçambique, isto é, ao que fez dos dois países companheiros num destino mais ou menos comum, bom, as coisas ficam mais complicadas ainda. Essa “nossa História” é que é o problema. Na medida em que ela assentou justamente na dominação dum pelo outro – e, tudo, claro, na base de boas intenções –, ceifar a vida a 400 pessoas é, teoricamente, mas também na prática, apenas documento da natureza dessa “História”.

Assim sendo, um acto ignóbil como este não desonra História nenhuma. Confirma-a. Aliás, um acto como esse não existe isolado da História que o tornou possível. A própria História é que seria indesculpável, julgo. Quero dizer, soaria estranho que um senhor de gente escravizada lá nas Américas pedisse perdão por ter mutilado uma dessas pessoas porque isso desonra a escravidão...

Sei que estou a procurar agulha em palheiro. A verdade é que o primeiro-ministro português fez aquilo que, aparentemente, ninguém mais, ao seu nível, fez. E isto sabendo todos nós que não custa nada pedir desculpas. Então, não procuro, a bem dizer, nenhuma agulha no palheiro. Procuro a varinha mágica que enobrece os europeus em tudo o que fazem.

Ainda que a decência me obrigue a reconhecer a nobreza do gesto português, sinto uma raiva interior quando constato que simples palavras que não custam nada para pronunciar têm o condão de colocar o europeu que as profere num patamar ético elevado.

É como se a “nossa História”, portanto, o percurso português e moçambicano, fosse uma narrativa que reserva ao sofrimento africano o papel perverso de oferecer ao europeu a oportunidade de confirmar a sua superioridade moral. Uma vez, a escritora norte-americana negra, Toni Morrison, indagou-se como se sentem os europeus quando olham para tudo o que os seus fizeram em nome da sua própria cultura. Orgulhosos? Com vergonha? Na altura, quando ela colocou essa pergunta, fiquei também a pensar, sem resposta. Hoje, ao ler sobre o pedido de desculpas de António Costa, sinto-me como se tivesse encontrado a resposta. Não custa nada pedir desculpas porque tudo o que é decente, por muito tempo que leve a acontecer, faz parte da cultura europeia.

Sem nenhum pingo de ironia, ocorre-me apenas dizer que o pedido de perdão do primeiro-ministro português é um acto profundamente europeu. Vai ser humano no dia em que a sua inteligibilidade moral não assentar num quadro ético que dê a aceitação desse pedido por adquirido. Por enquanto, nem consigo imaginar os contornos desse quadro.»

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4.9.22

Viver assim, mal

 

«O Governo está fraco e confuso, sem norte e sem poder disfarçar as incompetências e insuficiências. A crise ainda mal começou. Costa vai desejar não ter tido maioria absoluta, porque ficou sem aliados e sem parceiros. E os portugueses, cansados de viverem assim, mal, em catástrofe permanente, inundados de más notícias, vão ficar muito mal dispostos. O conselho a dar aos jovens é só um, fujam de Portugal, como fazem os refugiados afegãos. Portugal é um país ideal para os reformados ricos e um lugar aterrador para os reformados pobres. O resto é paisagem.»

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04.09.1970 - A vitória de Allende

 


Há 52 anos, Salvador Allende ganhou as eleições presidenciais no Chile.

Excertos do discurso  de vitória:



Texto na íntegra AQUI.


Eduardo Galeano em Los Hijos de los días:


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Costa quebrou o “pacto de silêncio” do Estado sobre os crimes da guerra colonial

 


«Foram precisos quase 50 anos de democracia para que o Estado português viesse reconhecer, perante Moçambique, o “acto indesculpável que desonra a História” de Portugal, que foi o massacre de Wiriamu, um dos acontecimentos mais vergonhosos da guerra colonial.

A declaração do primeiro-ministro na sua visita a Moçambique é, por isso, histórica. “Neste ano de 2022, quase decorridos 50 anos sobre esse terrível dia 16 de Dezembro de 1972, não posso deixar aqui de evocar e de me curvar perante a memória das vítimas do massacre de Wiriamu, acto indesculpável que desonra a nossa História.”

Em Portugal abundam os traumatizados pelo fim do “Portugal do Minho a Timor” e há exemplos patéticos para ilustrar esse sofrimento, como a polémica dos arbustos da Praça do Império, que deve ter sido das coisas mais risíveis que animou nos últimos anos a sociedade portuguesa e a Câmara de Lisboa.

Lembremo-nos que a frase neo-salazarista “já fomos grandes e podemos voltar a ser” continua a ser repetida a torto e a direito e com boas intenções, sem qualquer noção de que se está implicitamente a exaltar o passado colonial. Há uns tempos, numa entrevista de vida, o chefe do Estado-Maior da Armada, o almirante Gouveia e Melo – que lidera as sondagens de potenciais candidatos a Presidente da República – disse que “viu o Império a desfazer-se” e teve uma espécie de chamamento para entrar na Marinha: “Tens que contribuir para que Portugal seja grande outra vez. Não somos grandes territorialmente, mas no mar somos gigantescos.”

Misteriosamente – ou se calhar não – o saudosismo colonial conseguiu atingir pessoas que nasceram depois da queda do Império e aquelas que eram muito crianças durante a descolonização. Mas lá está: uma geração vai sempre beber parte das suas convicções à geração anterior e se a geração que era adulta no 25 de Abril foi profundamente marcada pela ideologia salazarista, a marca não se extingue de um momento para o outro e a influência chega aos portugueses já nascidos em democracia.

Por tudo isto, é um feito notável que pela primeira vez um chefe do Governo, de visita a uma antiga colónia, tenha feito um decente mea culpa e quebrado o estado de denegação em que uma grande parte da sociedade portuguesa vive sobre os crimes da guerra colonial – ainda que a historiografia sobre o assunto já seja, nos tempos que hoje vivemos, imensa.

Não é a primeira vez que o Estado português assume um crime do passado colonial. O Presidente da República fê-lo em Fevereiro de 2018, quando “assumiu a responsabilidade” pelo massacre de Batepá, em São Tomé, quando cerca de 400 habitantes foram mortos a mando do governador colonial. Colocou uma coroa de flores no monumento ao Heróis da Liberdade e disse que “Portugal assume a sua história naquilo que tem de bom e que tem de mau, e assume nomeadamente, neste instante e neste memorial, aquilo que foi o sacrifício da vida e o desrespeito da dignidade de pessoas e comunidades”.

Hoje, parece-me quase do outro mundo aquela visita de Estado do Presidente da República a Moçambique, no ano de 2008, em que Cavaco Silva ficou quase em estado de choque quando lhe perguntei se tencionava pedir desculpa pelo massacre de Wiriamu. Cavaco estava ao lado do então Presidente moçambicano Armando Guebuza, esbugalhou os olhos, recusou pedir desculpa e desatou a contar os momentos felizes que passou em Moçambique quando, enquanto jovem alferes, esteve mobilizado para a guerra colonial: “Eu que estive aqui nesse tempo, apesar de já haver alguma instabilidade, nem isso me levou a ficar preso em Maputo [onde ficou colocado em funções administrativas]. Agarrei num carro e desbravei África.”

Nesse dia, em Maputo, tive vergonha do meu país. Ao assumir que Wiriamu foi “um acto indesculpável que desonra a nossa história”, António Costa dá um passo fundamental para quebrar a “omertà” que o Estado construiu em torno da guerra colonial.»

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