16.11.24

Agora tinteiros

 


Tinteiro circular em cerâmica azul-pó. Montagem de bronze com decoração de folhagem. Sèvres, França.
Paul Millet.

Daqui.

Bem unidos façamos ó-ó

 


«As pessoas que lutam contra a opressão sempre me repeliram. Lutar aleija. Requer sacrifícios, o que é desagradável. Quando quem luta é um menor de idade que se comporta como um adulto, a minha vergonha é maior, porque sempre fui um adulto que se comporta como um menor de idade. É, por isso, um alívio verificar que, finalmente, vivo num mundo à minha medida. Percebo que vêm aí tempos difíceis e já me pus numa posição de luta — também conhecida como posição fetal. Vou buscar o meu ursinho e preparar-me para quatro anos de intenso combate.»


Imigrantes?

 


Buscar amor no lugar errado

 


«Depois de, no ano passado, a Cimeira do Clima ter ajudado a perpetuar os interesses económicos dos Emirados Árabes Unidos, o filme negro volta a repetir-se este ano, noutra geografia igualmente inimiga das energias limpas. O Azerbaijão, país-anfitrião da Cop29, tem na produção de combustíveis fósseis quase metade das suas exportações. Na cerimónia de abertura, em Baku, o presidente Ilham Aliyev disse mesmo que o petróleo e o gás eram uma “dádiva de Deus”. Seria cómico, se não fosse ridículo.

De resto, a Cimeira do Clima está pejada de lobistas anticlima: estima-se que na edição deste ano estejam inscritos pelo menos 1773 entusiastas do petróleo, gás e carvão, bem acima dos 1033 delegados das dez nações mais vulneráveis à crise climática. Al Gore, ex-presidente dos Estados Unidos, recorreu a uma imagem curiosa para expor esta disformidade concetual: “Há uma velha canção country do Nashville chamada´‘Looking for love in all the wrong places’ (à procura do amor em todos os lugares errados)”.

O combate às alterações climáticas só é eficaz se houver boa vontade (e muito dinheiro) dos países desenvolvidos. Sem a ajuda deles, as nações mais desfavorecidas jamais terão capacidade de intervenção contra os fenómenos extremos. Mas não é aceitável que as Nações Unidas continuem a patrocinar eventos desta natureza em petroestados, ao mesmo tempo que vão dramatizando o discurso público e apelando à urgência de medidas radicais. A causa ambiental, já tão fortemente desacreditada por ambientes tóxicos e tribos negacionistas, não ganha nada com exercícios de automutilação institucional como este. A temperatura do planeta tem de baixar. A hipocrisia também.»


15.11.24

Há mais vida para além do azul

 


Um belo par de vasos de vidro opala, atribuídos a Baccarat, França. Cerca de 1860.

Daqui.

Inundações "bíblicas" e furacões "monstruosos" no horizonte

 


«Em Baku, os líderes mundiais estão reunidos para a COP29. Pelo menos alguns, porque grandes nomes como os chinês Xi Jinping, o americano Joe Biden, o indiano Narendra Modi, mas também o alemão Olaf Scholz ou o brasileiro Lula da Silva parecem ter tido algo mais premente na agenda do que esta Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas.

Um sinal de que, mesmo nos casos em que o ambiente é uma preocupação, a urgência em agir não é muita. E nos EUA a perspetiva é que venha a piorar, uma vez que o presidente eleito Donald Trump já deixou claro que mal tome posse, em janeiro, voltará a tirar a América dos Acordos de Paris sobre o Clima. O homem que considera as alterações climáticas “um grande embuste” já tirara o país do acordo de 2015 no seu primeiro mandato e promete agora dar novo fôlego aos combustíveis fósseis.»


15.11.1969 - Washington: «Give Peace a Chance»



Em 15 de Novembro de 1969 teve lugar «Moratorium March on Washington», considerado o maior protesto anti-guerra da história dos Estados Unidos, contra o conflito que então tinha lugar no Vietname: uma manifestação quase totalmente pacífica de meio milhão de pessoas, que se integrou num vasto movimento que percorreu a América, de S. Francisco a Boston, e não só. Apesar disso e como é sabido, a guerra em questão iria durar ainda quase seis anos, até 30 de Abril de 1975.

No protesto de Washington participaram políticos como Eugene McCarthy, George McGovern e Charles Goodell e cantores como Peter, Paul and Mary, Arlo Guthrie, John Denver e Pete Seeger que interpretou a celebérrimo canção «Give Peace a Chance» (lançada por John Lennon na Primavera desse ano), juntamente com os outros cantores e com a multidão que a terá repetido durante dez minutos.


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Não é uma segunda temporada

 


«A velocidade a que os nomes da nova Administração americana são anunciados só tem par na velocidade a que os diversos grupos da coligação MAGA batem palmas. As surpresas, as críticas, o espanto ou mesmo a oposição a alguns nomes — e alguns são tão absurdos que nunca teriam lugar na primeira Administração de Donald Trump — surgem lentas, implacavelmente ultrapassados pela marcha de uma grande coligação.

As três principais mudanças que encontrei no terreno nos EUA em relação a 2020 resumem-se em poucas frases: uma fragmentação mediática exponencial, um ativismo “conservador” empenhado numa contrarrevolução cultural que explora essa fragmentação e, por último, um movimento MAGA mais vasto e diverso que aproveita de forma muito profissional os dois fatores anteriores.

Claro que sem a inflação, a economia e a imigração ilegal nenhuma destas mudanças seria determinante. Mas “em cima” destes problemas — comuns em democracia —, o que Trump fez ao longo dos últimos meses foi uma coisa diferente de 2016. O personalismo do líder passou a estar acompanhado de uma constelação de lugar-tenentes que são protagonistas dessa fragmentação e da revolução cultural.

Quem tenha visto comícios inteiros do Presidente eleito percebe isso de forma clara. O Rei-Sol regressou com uma constelação de figuras polarizadoras e contraditórias, mas com força intrínseca. A mudança já se sentia em 2020, mas explodiu com a pandemia, primeiro com a forte digitalização, depois com a revolta contra medidas sanitárias.

A nova versão do movimento MAGA, como sublinhou Miguel Monjardino, tem uma lógica de atuação leninista, em que a revolução se ganha através de uma atuação rápida e implacável. Desvalorizar o poder transformador desta coligação é um erro primário; colocá-la num altar, como fazem os admiradores europeus, é um erro ainda maior. A cola desta coligação é o isolacionismo. O resto do mundo limita-se a assistir.»


14.11.24

Continuemos no azul, então

 


Um grande pote coberto, Art Déco de Sèvres, França.
Paul Millet.


Daqui.

Americanos

 


«Não é uma surpresa, mas é preocupante. Elon Musk, o homem mais rico do Mundo, investiu mais de cem milhões de dólares na campanha de Trump e comprou, dessa forma, um lugar na Casa Branca. Oficialmente, será o responsável por um “departamento” cujo objetivo é tornar o Governo mais pequeno e mais eficiente. Pode parecer, mas não é uma boa ideia. Quando Trump e Musk falam em desburocratizar ou desregulamentar, o que verdadeiramente pretendem é garantir um tipo de capitalismo selvagem em que a política e os negócios se podem cruzar sem pudor.»


Mia Couto

 


Vai recomeçar a pandemia trumpista

 


«Não sou dos que acha que o maior impacto internacional da vitória de Donald Trump vá ser nas guerras da Ucrânia e de Gaza. Não é otimismo, é o contrário. As duas guerras já se encaminham para um epílogo trágico. Trump apenas vai abreviar a tragédia.

Na Ucrânia, assistimos ao impasse da desgraça. A guerra está praticamente perdida e todos andam a tentar perceber como lhe pôr fim com um acordo minimamente aceitável. As dificuldades de recrutamento de Kiev e a provável mudança de governo da Alemanha já ditariam o desfecho. Veremos se, com Trump no poder, Putin decide ir mais longe ou se aceita ficar com Donbas e Crimeia. E que estatuto consegue impor à Ucrânia.

Talvez isto apenas sirva para a Europa perceber, de uma vez por todas, que, desde o fim da guerra fria, os seus interesses estratégicos são diferentes dos norte-americanos. Foram ou deviam ter sido no Iraque, foram ou deviam ter sido na Ucrânia, de 2014 até à invasão russa, foram e continuam a ser na relação com a China e no Pacífico.

Em Gaza, acontece o mesmo: a tragédia será apenas mais rápida. A fraqueza da liderança de Joe Biden impediu-o de travar Israel, um Estado que depende existencialmente dos Estados Unidos. Biden foi e é cúmplice do genocídio e da falência moral do ocidente aos olhos dos povos do mundo. E, já agora, da perda votos de Kamala em voto jovem e árabe. Veremos se Netanyahu avança, como tantos desejam, para a anexação de Gaza. Como o embaixador de Trump para Israel nega a existência da Cisjordânia, dos colonatos e dos palestinianos, se a anexação não acontecer, será por causa da oposição interna.

O que pode piorar, porque Trump já foi responsável pela incapacidade de controlar Teerão e dar força aos moderados, é a relação com o Irão. A ignorância é, nestas matérias, ainda mais perigosa do que o fanatismo.

Este também é o momento para enterrar as poucas esperanças que restavam nas políticas necessárias para combater as alterações climáticas. Como vimos em Valência (e, em parte, com o furacão Helena, nos EUA), a direita populista tem a capacidade de negar as causas das tragédias, ser incompetente a lidar com as suas consequências, e, no fim, criar o caos político e a desinformação para atirar as culpas para os outros. COP29 parece ser mais um encontro de negócios com A um chapéu de chuva conveniente do que um esforço real para travar a tragédia que já vivemos.

A vitória de Donald Trump marca uma nova fase na ascensão da extrema-direita (ou das suas ideias) ao poder nas principais capitais ocidentais. O quartel-general da quinta coluna, hoje em Moscovo, passará a ser partilhado com Washington. Guardarei isto para o texto de amanhã, na edição semanal do Expresso, mas a proximidade dos narcísicos e megalómanos bilionários da tecnologia à Casa Branca, onde passarão a justamente ostentar o epiteto de “oligarcas”, é das coisas mais perigosas para as democracias. Este regresso de Trump pode vir a marcar uma nova fase do capitalismo global a que as democracias terão dificuldade a resistir.

Quem se lembra do que foi o impulso da extrema-direita, que já vinha de vitórias em vários países europeus, depois de 2016 pode imaginar qual será o efeito de contágio. 2016 em esteroides. Porque o poder é maior e está nas mãos de um círculo mais restrito e fanatizado. Através do exemplo, do financiamento indireto e promovido pelo poder, do apoio político e da aliança com a oligarquia tecnológica, a extrema-direita terá um novo impulso na Europa. Mesmo onde não chegar ao poder, marcará o debate e o discurso dos partidos tradicionais. À direita e à esquerda, como começamos a perceber em Portugal.

Tudo o que aqui escrevi pode, no entanto, ser desmentido por uma arma mais poderosa do que as convicções de Trump: a imensa incompetência executiva de um egocêntrico mimado que, depois de cada vitória, se dedica a minar o seu próprio poder.»


70% para o INEM. Sobra tempo para o SNS?

 



13.11.24

Enquanto eu encontrar azuis…

 


Ânfora de cerâmica bronze ormolu com aplicações de ferro forjado, Arte Nova de Sèvres, França.
Paul Millet.

Daqui.

“The Guardian” abandona rede social X

 


«Num anúncio aos leitores, o jornal explicou que a recente campanha eleitoral nos Estados Unidos "serviu apenas para sublinhar o que há muito" considerava: "que o X é uma plataforma tóxica e que o seu proprietário, Elon Musk, conseguiu usar a sua influência para moldar o discurso político".»
 
Ler notícia AQUI.

Vitória da tirania ou derrota do “wokismo”?

 


«Sim, a crise inflacionista foi real, os dados económicos estavam a melhorar, as pessoas ainda não os sentiam no bolso, mas penso que o capitalismo não espera o mesmo que se espera de um estado social robusto e também penso que não é “woke” combater uma das armas da extrema-direita, essa de ter direitos humanos elementares como “causas fraturantes” ou coisas “woke “de uma esquerda “que já cansa”.


A verdade é que este horror pegou porque anda meio mundo a defender um outro mundo que não conheço em que a defesa da classe trabalhadora exclui a defesa das causas identitárias ou mesmo que elas não se cruzam. Como se na classe trabalhadora não existissem negros, mulheres que são discriminadas no acesso à IVG, gays e lésbicas ou trans. (…)

E o grande tema que está na base de todas estas novas direitas não são os gays, nem as lésbicas, nem os trans. Esses são usados para agitar quem por associação é racista e xenófobo. Sim, o foco destas direitas extremadas é mesmo o racismo e a xenofobia, a repulsa pelo outro, no caso o regresso à América proibida, à América branca, suprema, fechada e para alguns. E é por isso que se acena com a “teoria da substituição”. Lá e cá.»


Amsterdão: relatar factos não é antissemita, é jornalismo

 


«Não vou desenvolver muito sobre o que aconteceu em Amsterdão, no último fim de semana. Fico por isto: condeno, à dimensão da gravidade de cada ato, os gritos islamofóbicos da claque do Maccabi Tel Aviv (conhecida pelo seu racismo); a violação do minuto de silêncio pelas vítimas de Valência; o vandalismo contra bandeiras palestinianas penduradas em casas de cidadãos de Amsterdão; o ataque a cidadãos da cidade; e os ataques violentos, planeados (parece que vários o foram previamente) ou reativos, contra adeptos e/ou membros da claque israelita. Nenhuma das coisas justifica a outra. E nada justifica a incompetência das forças de segurança holandesa, que não conseguiram impedir estes atos.

Saltar desta infeliz confluência entre a violência no futebol e a violência política (de parte a parte) para a utilização de termos como “pogrom” é um insulto abjeto à memória do povo judeu. Já nem discuto a transformação automática de ataques a Israel ou israelitas, sejam graves e violentos, como estes foram, ou apenas críticas a políticas do governo ou do Estado, em antissemitismo. Confundir pogroms, perseguição de brutal violência contra uma minoria religiosa e étnica com apoio das autoridades, com o que aconteceu com uma claque em Amsterdão é ajudar a relativizar o que foi e é a perseguição aos judeus – aconselho este “fio” de Brendan McGeever, estudioso do antissemitismo.

Não é por acaso que a extrema-direita holandesa, como boa parte da extrema-direita europeia, acompanhou o absurdo. Hoje, os seus judeus são outros. A cultura do ódio é que se mantém. E contam com os que, da trágica história europeia, retiveram a identidade das vítimas, não o processo político que leva ao horror.

Mas o meu tema neste caso é outro. É a forma como a comunicação social é condicionada pela chantagem, a ponto de considerar que os factos são, eles próprios, antissemitas. É um dos poucos casos onde praticamente nenhum órgão de comunicação social mainstream europeu resiste. Não por uma especial sensibilidade, mas por medo de uma acusação que se tornou tão mais banal, quanto mais brutal vai sendo a carnificina em Gaza. Quanto mais crimes comete, mais Netanyahu se socorre da memória dos crimes contra os judeus para se defender. Da estrela amarela de David na lapela, nas Nações Unidas, à utilização recorrente de expressões como “pogrom” e “Holocausto”, passando pela acusação de antissemitismo conta qualquer pessoa ou instituição que não o apoie incondicionalmente, a falta de pudor tem sido absoluta. Porque resulta.

Algumas pessoas nas redes sociais, com especial destaque para o jornalista e colunista do “The Guardian” Owen Jones, deram-se ao trabalho de verificar as imagens que nos foram sendo apresentadas dos confrontos e seguir o fio dos acontecimentos. O resultado é um dos mais evidentes casos de desinformação, criada não pelas redes sociais, mas por alguns dos mais prestigiados títulos e canais da imprensa ocidental.

Veja-se a forma como a Sky News, que tinha uma repórter em Amesterdão, faz uma primeira reportagem falando “nos ataques a adeptos israelitas”, para depois editar e apagar a peça das suas redes, passando a noticiar os mesmos confrontos como um “ataque antissemita”. Como na peça do “The New York Times”, com o mesmo conteúdo, não há qualquer prova dessa alegação e as citações do responsável pela polícia nunca referem essa suspeita. A única prova de ódio étnico, e que aparece no mais prestigiado jornal norte americano, é precisamente a dos membros da claque israelita a gritarem mensagens de ódio contra os árabes e a celebrar a destruição das escolas palestinianas.

Uma prestigiada fotojornalista radicada em Amesterdão viu a cobertura que fez dos confrontos ser usada como prova das agressões à claque israelita. Problema, a própria fotógrafa diz que as suas imagens mostram o contrário e exigiu, publicamente e junto dos órgãos de comunicação social que as difundiram, que escrevessem o que ela viu e fotografou: “Adeptos do Maccabi atacaram cidadãos de Amesterdão em frente à Estação Central após o jogo”. Podem ver a entrevista que Owen Jones lhe fez aqui.

À hora em que escrevo, apenas os canais públicos de TV da Alemanha e Luxemburgo corrigiram a informação que tinham veiculado. BBC, CNN, “The Guardian”, “Bild” e “The New York Times” nunca se retrataram ou corrigiram a peça e continuam a usar imagens de hooligans a espancar cidadãos de Amesterdão como um caso de antissemitismo.

Em Gaza, a que Israel nega o acesso à imprensa internacional, ainda há condicionantes que explicam falhas do trabalho jornalístico. As fontes são escassas e a credibilidade do Hamas não é cartão de visita que se apresente. Mas no centro da Europa, à luz de todos, com imagens vídeo e fotografias a relatar que houve confrontos entre uma claque e habitantes locais, como acontece vezes sem conta todos os anos, a delirante narrativa criada pelo governo israelita foi seguida por todos os principais canais e órgãos de informação do planeta sem qualquer rebuço.

Quem um dia procure, nos arquivos, o ano em que Gaza foi arrasada e se levou a cabo limpeza étnica (assim foi denominada pelo jornal israelita Haaretz), encontrará a notícias de que finalmente os poderes europeus se ergueram, pela voz da presidente da Comissão. Não para falar de Gaza, mas para condenar um lamentável episódio envolvendo hooligans de uma claque, transformado num “pogrom” através da remontagem e reescrita dos factos inicialmente revelados pelos próprios jornalistas. O contrastante com a cumplicidade passiva perante cinquenta mil mortes é uma obscenidade política. A que nos estamos a habituar demasiado facilmente.»


12.11.24

Regressam as casas

 


Fachada Arte Nova da casa Cauchie, Bruxelas, 1905.
Arquitecto: Paul Cauchie.


Daqui.

12.11.1975 - O «Cerco» ao Parlamento

 


No dia 12 de Novembro de 1975, operários da construção civil iniciaram o chamado «Cerco à Constituinte» que durou até ao fim da manhã do dia 13.

Num post de 2017, um breve resumo tirado de Os dias loucos do PREC (Adelino Gomes e José Pedro Castanheira) e um vídeo.
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Elon Musk

 


«Não é possível deixar de olhar com algum cinismo a ideia de que Trump vence ao dar voz aos desapossados pelas elites, quando o homem mais rico do mundo se ergue como um dos seus mais poderosos aliados e, quem sabe, um dos seus principais conselheiros.

Também não vale a pena assumir a posição de virgem ofendida quando sabemos que os ricos e poderosos sempre procuraram influenciar em seu proveito os caminhos da política. Agora, foi só mais descarado e com novas e mais influentes ferramentas. Um dia após a vitória de Trump, graças à subida das acções da Tesla, Musk acrescentou quase 20 mil milhões de dólares à sua fortuna. Seja por contratos federais que esperará ganhar, seja graças à desregulação que quer ver em vários sectores onde tem interesses, Musk irá ter muitos mais milhões a arrecadar.

O que vale mesmo a pena sublinhar é que não será só Trump a ser imitado em todo o mundo. Com Musk, abriu-se uma nova era para a capacidade que os super-ricos têm para influenciar os destinos da política e da sociedade. As democracias que se cuidem.»


Intervenção musculada

 



A América não somos nós

 


«Todos sabíamos que era possível, mas poucos queriam acreditar que acontecesse. Foi assim em 2016, foi assim em 2024. O resto do Mundo civilizado que não é a América voltou a envergar as vestes da inocência. Mas os Estados Unidos não são a Europa. A América não somos nós. Basta conhecer um pouco da fauna sociológica da nação que elegeu Trump para se perceber melhor o resultado destas eleições. Trump conquistou terreno em geografias com maiores desigualdades sociais, mas também onde os custos com a habitação são altos e onde vive uma parte expressiva das populações “estrangeiras” nascidas nos Estados Unidos. Acresce que, desta vez, obteve a maioria do voto popular, além de ter varrido o colégio eleitoral. Portanto, este desfecho está longe de ser apenas resultado do malfadado voto de protesto. Os americanos escolheram Trump porque ele lhes falou ao bolso e não se preocupou em ser decente ou verdadeiro. “Se querem transformar alguém num ícone, tentem metê-lo na cadeia ou tentem arruiná-lo financeiramente. Tudo isso falhou. Só conseguiram torná-lo numa força política ainda mais poderosa”, sintetizou, a propósito, Roger Stone, destacado republicano.

A diferença, desta vez, reside no poder de choque do movimento trumpista e na enfraquecida resistência que irá encontrar mesmo entre os poderes responsáveis pelo equilíbrio do regime. Seja no âmbito das reformas legislativas, na política económica, na externa e em particular na estratégia que irá seguir no campo da imigração. Depois, e mesmo não sendo nós a América, esta vitória terá obviamente um impacto significativo no realinhamento ideológico e programático dos partidos mais à Direita de todo o Mundo. O conservadorismo tradicional levou porventura a sua maior facada dos últimos anos. O quanto pior melhor está a viver uma segunda vida. Com Trump ao comando não será o fim dos tempos, mas os seguidores da sua política do caos permanecerão muito para além do segundo mandato na Casa Branca do presidente-fanfarrão.»


11.11.24

As velhas já não funcionam

 


Presidenciais 2026

 


𝐑𝐮𝐛𝐞𝐧 𝐀𝐦𝐨𝐫𝐢𝐦 𝐚𝐢𝐧𝐝𝐚 𝐧ã𝐨 𝐞𝐬𝐭á 𝐧𝐚 𝐥𝐢𝐬𝐭𝐚 𝐝𝐨𝐬 𝐜𝐚𝐧𝐝𝐢𝐝𝐚𝐭𝐨𝐬?

Até os benfiquistas votariam nele.
Futebol sempre, tudo o resto nunca mais?

Dia delas

 



Ao fim de quantas mortes acaba um estado de graça?

 


«Tem sido refrescante ver a mudança do ambiente do comentário político. Onde antes havia excitação, há ponderação. Onde antes havia julgamento, há compreensão. Toda a gente acha grave o que aconteceu com a greve no INEM, na semana passada. E quase todos os comentadores acham excessivas consequências políticas para uma ministra que, desde que chegou ao lugar, soma erros, conflitos e desastres.

Perante este caso, Marcelo Rebelo de Sousa disse que não gosta “de falar de problemas específicos da governação ou da Administração Pública, mesmo quando são muito urgentes ou muito prementes”. Que não se podia pronunciar sobre o que está em curso e casos concretos. Falou da urgência em encontrar soluções, ignorou as responsabilidades políticas. Todos acompanhamos a presidência de Marcelo há tempo suficiente para saber que nunca se esquivou, quando quis, a falar de problemas específicos da governação, em curso e bem concretos. Em enorme detalhe, quotidianamente e quase sem filtro. E a confrontar os governos com as suas responsabilidades.

O que disse o Presidente da República quando, em 2023, uma grávida teve de ser transportada para uma urgência a 200 quilómetros? “Que esse caso não é um caso que seja positivo – é muito negativo para o Serviço Nacional de Saúde e para o sistema nacional de saúde em geral –, é verdade. Que há erros, que há lapsos e que se tem de apurar o que aconteceu para, se for caso disso, responsabilizar quem deve ser responsabilizado, é fundamental. Um erro de 200 quilómetros é, se for assim, um erro muito grande”. Aparentemente, um erro que tenha custado mais de dez mortos, nem por isso.

Mais uma mentira

O debate, neste caso, não é sobre as fragilidades estruturais do INEM, que sabemos existirem. Tem menos de metade do pessoal que precisa num SNS que parece viver de horas extraordinárias. Um problema que atravessa grande parte dos serviços do Estado e que o governo pretende resolver ao sabor de cada escândalo, já que impôs a regra geral de que só entra um funcionário público por casa um que saia. A descida do IRC e do IRS para os jovens mais abonados não sai de borla. É paga por quem mais precisa do Estado.

O debate sobre a responsabilidade do último governo – e anteriores – na degradação dos serviços públicos é legitimo, desde que todos os que aplaudem o excedente orçamental não queiram ficar apenas com as boas notícias. O que não é legitimo é ignorar a responsabilidade direta neste caso: uma ministra negligente perante a marcação de uma greve. Repare-se que não estou sequer a aplicar a máxima que valeu nos últimos oito anos – que os ministros são politicamente responsáveis por tudo o que aconteça nos serviços que tutelam, mesmo que não tenham responsabilidade direta no sucedido. Estou a cingir-me ao que a ministra tinha de fazer e não fez.

Tudo começou com mais uma mentira, em que Ana Paulo Martins te sido recorrente –nas razões apontadas para a sua demissão do Santa Maria, quando já se sabia candidata a ministra; na novela sobre os contratos com os helicópteros de emergência; nos números que divulgou das operações de oncologia; na tentativa de esconder quais eram as urgências fechadas. “Nós não estávamos à espera, porque estamos de boa-fé” disse a ministra da Saúde, quando confrontada, na terça-feira, com a greve do Sindicato dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar às horas extraordinárias.

Mentiu, porque, como noticiou o Expresso, a ministra foi notificada não uma, mas duas vezes da greve, tendo sido a última dez dias antes do seu início. A única exigência era começar uma negociação. Apesar da sensibilidade deste serviço, nem sequer responder aos mails. Dos constrangimentos causados por esta greve poderão ter resultado mais de dez mortos. Apesar de ser improvável a ausência de consequências de haver menos de dez pessoas a atender chamadas de todo o país, na segunda-feira, com o mais baixo atendimento numa década, a relação de causalidade terá de ser demonstrada. Se se confirmar, uma reunião bastaria para evitar mortes.

Andar atrás de mortes, não de avisos

Igualmente grave é o INEM não ter preparado serviços mínimos para uma greve que há muito sabia que iria existir. E só ter preparado os serviços para a coincidência com a greve da função pública quando tudo derrapou. A direção do INEM diz que os serviços mínimos para os funcionários públicos, no dia 4, já estavam definidos no acordo coletivo a Federação sindical afeta à CGTP. Acontece que o sindicato que marcou a greve nada tem a ver com essa federação, coisa que uma direção do INEM que não mudasse de três em três meses saberia.

Há, portanto, duas responsabilidades: a ministra que ignora uma greve e depois finge que não sabia da greve e o presidente do INEM que não se apercebe que duas greves se vão sobrepor e reage tarde demais. Os problemas estruturais do INEM, reais, são outro tema que não absolve estas duas pessoas das suas responsabilidades. Tudo podia ter sido evitado com uma reunião, como ficou evidente no fim da semana passada. O tema é este.

Na reação a tudo isto, Luís Montenegro, para além de se ter limitado a pôr em dúvida a relação da causalidade entre a greve e as mortes, explicou que o governo não pode “andar atrás de pré-avisos de greve e a fazer reuniões de emergência”, preferindo, como se tornou um clássico, ficar-se pela herança que recebeu.

Para Montenegro, as negociações urgentes com os trabalhadores do Estado acabaram quando o governo deixa de sentir a emergência de preparar possíveis eleições. Governar é um grande plano de comunicação, onde as personagens entram e saem do palco quando o primeiro-ministro decide – assim como só responde aos jornalistas quando isso lhe interessa. Só que não é assim. A concertação social, assim como a gestão da coisa pública, é quotidiana, cheia de emergências e contrariedades. Por não ter ido “atrás de pré-avisos de greve”, o governo foi atrás de mortes. Num dia, resolveu um problema que poderia ter sido resolvido uma semana antes, evitando uma desgraça.

Regressando ao que o Presidente disse em 2023, mas achou que não devia dizer em 2024: “Melhorar passa por reconhecer humildemente que se falha e, quando se falha, corrigir, apurar e responsabilizar”. Tudo o que Montenegro se recusa a fazer.

Obviamente, demita-a

Ao contrário do que pensaria quando liderava a oposição, o primeiro-ministro acha que “a consequência política, quando há problemas, é resolvê-los”. Só que os trágicos problemas que podem ter sido causados pela ministra já não têm solução possível. E é sobre isso e apenas isso que, neste momento, a ministra da Saúde tem de responder. Confirmando-se a causalidade entre as mortes e uma greve que poderia ter sido evitada com uma simples resposta a um mail, a consequência política é óbvia: a demissão.

Se isto fosse um episódio isolado, poderia, com bastante esforço, haver tolerância. Só que esta é a mesma ministra que, para fazer um ajuste de contas com o seu antigo chefe, foi responsável pela demissão por uma direção executiva do SNS e, com isso, por mais um verão de caos nas urgências. É responsável por irmos na terceira direção do INEM. Tirando o anúncio de medidas, que, na realidade, correspondem quase todas à transferência de funções do SNS para o privado, ainda não houve uma coisa em que se visse trabalho. É, como se sabia pela sua passagem pelo Hospital Santa Maria, onde abriu uma guerra com o serviço de obstetrícia e de onde saiu inventando uma falsa polémica com Fernando Araújo porque já contava com um lugar no Ministério, um foco de conflitos e problemas. E agora foi isto.

Marta Temido demitiu-se por causa da morte de uma grávida, quando nem os serviços falharam, nem havia qualquer responsabilidade direta ou indireta sua. Poderão dizer que havia um grande desgaste pelo tempo de mandato e a pandemia. Mas neste caso, há muito mais do que isso: os serviços falharam por responsabilidade direta e negligente da ministra e disso poderão ter resultado mortes. Não há “estado de graça” que proteja um governante disto.»


Quando o MAGA venceu o 'wokismo'

 




José Mendes


10.11.24

Mais azul é difícil

 


Jarro azul-marinho, de gargalo esguio e pegas geométricas. 1882.
Rookwood Pottery.

Daqui.

Talvez respostas simples

 


Que o capitalismo age à rédea solta, como máquina afinadíssima de concentração de riqueza, de exploração de quem trabalha (e as “classes médias” cilindradas), de reprodução contínua de pobreza e miséria, mesmo em países onde se produz, ou onde circula, imensa riqueza. Os elevadores sociais são boicotados. Nunca os mais ricos foram tão ricos, e nunca foram tão poderosos. O capitalismo ultraliberal promove o ultraconservadorismo e o fascismo, nos EUA, na Europa e noutras latitudes. Já não os dispensa. E precisa da guerra.»


10.11.1948 – Mário Viegas

 


Mário Viegas festejaria hoje os 76, mas morreu novo, muito novo, antes de chegar aos 48. Fundou três companhias de teatro, actuou em vários países, participou em mais de quinze filmes e só quem for muito jovem não se recordará das séries televisivas «Palavras Ditas» (1984) e «Palavras Vivas» (1991).

Celebérrima ficou a sua leitura do Manifesto Anti-Dantas de Almada Negreiros:



Mas existiu também um Manifesto Anti-Cavaco, lançado por Mário Viegas durante a campanha eleitoral para as legislativas de 1995, em que foi candidato independente na lista da UDP (candidatou-se também à Presidência da República).



E inesquecíveis:




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Em Loures e na América

 


«Faltaram a Kamala Harris os votos de todas as causas que não abraçou; faltou o élan que, apesar de todo o seu bom humor, não se instalou no terreno. Ela participa — e é exemplo — do erro geral que as forças progressistas estão hoje a cometer: procuram conluios à direita de si, sem se aperceberem de quanto nessa aproximação vão perdendo as suas convicções maiores.

Sobre o porte de armas, Kamala afirmou sentir o dever ético e coletivo de estar ao lado da luta dos jovens e dos professores por uma escola livre de violência armada. Lembrou e lamentou o número de feridos e vítimas mortais desses incidentes — 82 em 2023 e 58 em 2024. Poderia também ter-se mostrado preocupada com a saúde mental dos americanos e daí progredir para a erradicação da pobreza, causas seguras da maioria destes incidentes. Podia falar do seu sonho de pacificar a América e de a tornar emocionalmente segura ao ponto de as armas caírem em desuso, uma coisa fora de moda. Ainda que lírico, este discurso inspira, tem essa qualidade política — e poética — tão necessária. Mas o que a candidata fez em vez disso foi proclamar aos quatro ventos que também ela tinha uma arma.

Harris lê os relatórios, sabe que o fracking é uma atividade com sérios impactos no ambiente terrestre. E sabe que não investir no seu fim tem um custo acrescido a jusante, com a mitigação de desastres humanos e materiais infligidos por um clima zangado e intempestivo. Mas, a meio da campanha, muda de ideias; afinal não é contra o fracking, ou pelo menos não o irá banir absolutamente. Resultado: ambientalistas furibundos, clamores de “traição”.

Da Palestina, chegavam imagens abissalmente contrastantes com a exuberância dos comícios da campanha democrata. Sobre o conflito, Kamala reafirma a sua determinação em estar ao lado de Israel, mas devia na frase seguinte condenar as práticas de guerra do atual Governo israelita, identificando-o como extremista e instando-o a fazer diferente, com urgência, porque, com armas americanas e de forma indevida, estavam a morrer muitos palestinianos, todos os dias. Mas não, tristemente refugiou-se, ou teve de se refugiar, em declarações de impotência bem-intencionada, numa indignação contida de que quem adia consente.

Kamala resultou numa candidata programada, sem ginga ou swag, em oposição ao improviso laranja e tagarela do seu rival. Não existiu assim uma sinceridade nova à qual aderir, muito graças a esta recém-adquirida mania de arrastar o pé para a direita, num medo parolo de se ser tomado por extremista, socialista, comunista, radical, ou, mais recentemente, por woke. Quando Kamala é acusada de “perigosa marxista”, podia ter esclarecido que conhece mal o marxismo — o que deve ser verdade —, mas que a justiça social é um imperativo universal e que ninguém, nenhum nome ou ideologia, se pode dela apoderar. Em vez disso, distanciou-se de tudo o que pudesse figurar ligeiramente à esquerda de si.

Harris, em lugar de se tentar distinguir como implacável promotora pública que mandava resmas de homens maus para a prisão, tipo heroína bidimensional da Marvel, podia ter construído uma figura apaixonada pela justiça ao ponto de ter uma moral e uma sinceridade suas. Poderia ter manifestado um ideário justo, esperançoso, com valores progressistas e sarapintado de utopia. Se no cômputo geral isso lhe traria mais ou menos votos, fica por saber. Uma vantagem seria certa: todos estaríamos hoje mais preparados, unidos, animados e inspirados por uma “agenda” capaz de enfrentar o que aí vem. Por mim, não se arreda o pé; seja na América ou na Câmara de Loures.»


Comentar o governo, eu?