30.9.23

Taças

 


Taça de vidro Arte Nova, com esmalte pintado e aro prateado.
Émile Langlois.

Daqui.
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30.09.1935 – Porgy & Bess

 


«Porgy & Bess» estreou-se na Broadway, em Nova Iorque, há 88 anos, com um elenco formado unicamente por elementos afro-americanos – uma decisão mais do que ousada para a época, que retardou o seu êxito até 1976.

Summertime é certamente o trecho mais conhecido, mas há muitos mais.

Vídeos num post do ano passado AQUI.
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As ruas voltam a ter voz

 


«É difícil não fazer um paralelo entre os protestos previstos para este sábado em 24 cidades, de Lisboa ao Funchal, e os que há 11 anos se começavam a espalhar pelo país contra o Governo de Pedro Passos Coelho. A austeridade que lhes dá origem não é a mesma, o número de pessoas envolvidas certamente ainda não será o mesmo, mas algumas das forças de esquerda que os organizam são. E é esse o paralelo.

Em 2012, essas forças uniram-se para protestar contra o efeito das opções políticas do trio Passos, Portas e Vítor Gaspar. Na altura, só num dia e numa cidade, centenas de milhares de pessoas manifestaram-se contra a austeridade trazida por um memorando e um empréstimo que obrigou o país a viver quatro anos de sufoco. A fórmula repetiu-se noutros concelhos do país nos meses seguintes. O descontentamento era generalizado: pensionistas, jovens, famílias, empregados, desempregados.

Em Lisboa, desceu-se a Avenida. Fez-se muito barulho com tachos e panelas. Encheu-se o Terreiro do Paço. Desprezou-se “a fome, a miséria, o FMI”. E cantou-se Grândola, Vila Morena. Na faixa que encabeçava a manifestação lia-se: “Troika e Passos desapeguem-se daqui.”

Hoje, as queixas e os cartazes que as acompanham são outros e as palavras de ordem também — “Senhorio não é profissão”, “Baixem as rendas” ou “O que falta? Direito a ter casa”. Mas é curioso perceber que os protestos contra as políticas seguidas pelo PS em matéria de habitação foram pensados por algumas das cabeças que lançaram o movimento anti-troika de 2012, contribuindo para o desgaste do executivo PSD-CDS.

Depois de uns anos de paz social forçada pelas posições conjuntas que viabilizaram um acordo de governação histórico, as ruas voltam a ter voz – porque as forças de esquerda já não vêem nenhuma razão para dar a mão ao PS. E vão de novo descer a Avenida, desta vez com exigências diferentes: mais habitação e melhor clima (na realidade, ao protesto deste sábado da plataforma Casa para Viver junta-se o do colectivo Their Time to Pay, em defesa da justiça climática).

A crise da habitação pode vir a ser para António Costa o que a crise da troika foi para Pedro Passos Coelho: muito mais do que uma dor de cabeça pontual. Porque, além de todas as outras implicações sociais e eleitorais que essa crise pode ter, significa que zanga da “geringonça”, que já se tinha dissolvido na sequência das eleições legislativas de 2019, mas que se formalizou no chumbo do Orçamento do Estado para 2022, está para durar.»

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29.9.23

Prédios

 


Prédio Leonildo de Mendonça e Costa, R. Braamcamp 6, Lisboa, 1914.
Arquitecto: Ernesto Korrodi.

Daqui.
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Samora Machel – 90

 


29.09.1933 – 19.10.1986
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Fernando Alves

 


O pouco que é bom vai acabando?

«Partilho convosco esta passagem do magnífico livro que me ocupa por estes dias, na última crónica que assino nesta rádio. A meu modo, vou ocupar as horas, em grande medida, um pouco à maneira do vagabundo desta história. Não penso sentar-me no chão, à porta de uma livraria. Mas procurarei, muitas vezes, bancos de jardim, à sombra. E assim me deixarei ficar, absorto, tomando notas para uma improvável emissão futura, feita de silêncios e de palavras elementares, assim me pouse no ombro a ave clandestina. Ambição chã. Ficarei a ver passar os transeuntes com o seu ar triste, como só os vagabundos sabem detectá-lo. Até sempre.»

Ler a última crónica na íntegra AQUI.
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Isto é usar quem trabalha

 


«O Pacto Social da CIP, sedutoramente embrulhado com um falso aumento de 14,75% de salário e um suposto 15º mês, serve para instalar na opinião pública a ideia de que se paga mal por causa da carga fiscal e da Segurança Social e que a solução é cortar drasticamente no já baixo IRC e na TSU. Quando se sabe que as margens de lucro dilataram e são fator de inflação, os trabalhadores só seriam compensados pela redução do poder de compra se tudo fosse livre de impostos e de descontos para as suas reformas. Perante o desplante da desbragada demagogia, é bom que um adulto na sala recorde que são os impostos que pagam os médicos e professores que precisamos de contratar e que sem o contributo da TSU não há pensões presentes e futuras. Sendo perigosa, a proposta revela um sinistro calculismo: a CIP aproveita a aflição dos trabalhadores com a inflação e prestações da casa para lhes acenar com uma folga passageira nos rendimentos líquidos a troco de imporem, para agora e para o futuro, uma vitória absoluta de todos os seus interesses unilaterais.

O que a CIP propõe é uma redução brutal dos seus impostos, não um enorme aumento de salários: uma redução do IRC para 17% (acabando com a distinção entre pequenas e grandes empresas, para beneficiar as segundas); um “crédito fiscal” do valor cumulativo dos aumentos salariais (majorados em 40%) dos resultados que fossem incorporados no capital e dos investimentos aplicados na empresa; e uma isenção de TSU e de IRS em 50% do trabalho suplementar, estimulando o seu uso excessivo, em vez de reduzir horários de trabalho superiores à média europeia.

Quanto ao “15º mês”, que seria voluntário e isento de IRS e TSU, há que reconhecer o engenho do truque. Em vez de aumentos salariais decentes distribuídos pelos 14 meses, abre-se uma via para alargar a parte dos salários não sujeita a obrigações fiscais e previdenciais, comprometendo pensões, prestações sociais e serviços públicos. Legaliza-se o que muitas empresas já fazem, quando pagam em géneros. Não é descoberta da CIP. Macron adotou a atribuição de um plafond elevado de prémios anuais deste tipo com isenção fiscal. Não é difícil imaginar que a tendência seria a de ir transferindo parte dos 14 meses para este “15º”, mais barato para o patrão e, no fim, só uma coisa mudaria para o empregado: ficaria com a pensão mais baixa, pois perde parte dos descontos do patrão, coisa que só descobrirá quando se reformar. Mas a maior fraude é o suposto aumento de 14,75%, durante dois anos, totalmente financiado com a redução equivalente da TSU. Na realidade, o trabalhador só receberia mais 4,75%. Os restantes dez pontos percentuais não são aumento salarial. São uma transferência do que os patrões pagam à Segurança Social para um sistema complementar obrigatório de pensões. E onde hoje existe um regime complementar público (os “certificados de reforma”) e privado (fundos de pensões ou PPR) de adesão livre e voluntária, para a poupança individual, impunha-se um regime obrigatório com contribuição definida, porta aberta à muito esperada entrada do sistema financeiro num regime de pensões não solidário.

Com o “15º mês” isento da TSU e de IRS, valores astronómicos retirados da TSU para um sistema complementar de pensões e um aumento salarial abaixo da inflação, os patrões limitam-se a propor um conjunto de borlas fiscais para si mesmos e uma transferência de recursos da Segurança Social para um sistema de capitalização. Com o desemprego em baixa e a inflação em alta, os salários subiram 7,6% no primeiro semestre deste ano. Sabem que vão ter de aumentar bem acima do que realmente oferecem. O aumento que prometem é menos do que já estão a ter de dar.

Mas a proposta tem um objetivo: aproveitar uma inflação e os aumentos de prestações das casas que põem muitas famílias em dificuldades para, em troca de um aparente benefício imediato nos rendimentos líquidos e a sempre popular proposta de reduzir impostos, avançar com um assalto ao Fisco e à Segurança Social. É sintomático que a CIP não tenha apresentado qualquer estudo ou estimativa séria de quanto custariam as suas propostas ao Estado e à Segurança Social, nem qual seria o seu impacto na formação das pensões futuras, nem quais as medidas de compensação e neutralização do seu impacto. Quem vier atrás que apague a luz.

Não é rebentando com a sustentabilidade da Segurança Social e das contas públicas, com promessas demagógicas de rendimentos livres de descontos para a Segurança Social e de impostos (reduzindo a progressividade do sistema, já que a isenção de IRS beneficiaria muito mais quem ganha mais) que se desenvolve o país. Mas a obsessão com o excedente orçamental levou o Governo a não fazer a revisão dos escalões de IRS que a inflação obrigava e a deixar que os serviços públicos se degradassem, tornando ainda mais incompreensível para o cidadão comum a necessidade de pagar impostos. Deu espaço a este tipo de populismo. Se esta irresponsabilidade e leviandade viesse dos sindicatos, seriam triturados pela imprensa. Assim, é uma “lufada de ar fresco”. Se for por uma boa causa, que venha a prometida bancarrota.»

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28.9.23

Entradas

 


Porta do edifício de «Le Castel Béranger» que é considerada uma das principais obras-primas da Arte Nova francesa, Paris, 1895-1898.
Arquitecto: Hector Guimard.

Daqui.
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28.09.1974 – A «Maioria [que ficou mesmo] Silenciosa»

 


Há 49 anos, o país esteve agitado. Esperava-se a realização da chamada «Manifestação da Maioria Silenciosa» – uma iniciativa de apoio ao apelo do general Spínola, convocada alguns dias antes por cartazes que invadiram Lisboa.



Acabou por ser proibida pela Comissão Coordenadora do Programa do MFA. Antes disso, Spínola que tinha tentado, sem sucesso, reforçar os poderes da Junta de Salvação Nacional, emitiu um comunicado, pouco antes do meio-dia, a agradecer a intenção dos manifestantes, mas declarando que, naquele momento, a manifestação não seria «conveniente».

Os partidos políticos de esquerda (CARP M-L, CCRM-L, GAPS, LCI, LUAR, MDP/CDE, MES, PCP m-l, PCP, PRP-BR, URML), sindicatos e outras organizações tinham desencadeado, no próprio dia, uma gigantesca operação de «vigilância popular»: desde as primeiras horas da manhã, dezenas de grupos de militantes distribuíram panfletos e pararam e revistaram carros em todas as entradas de Lisboa.

Em 30 de Setembro, Spínola demitiu-se do cargo de presidente da República, sendo substituído pelo general Costa Gomes. Fechou-se assim o primeiro ciclo político do pós 25 de Abril.
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“Torcato, o bafiento beato”, um poema de Ricardo Araújo Pereira

 


«Mais uma vez, um grupo de fanáticos procurou impedir a venda de um livro destinado a crianças cuja leitura não é obrigatória. Dou por mim a ter saudades dos censores de antanho, que se dedicavam a censurar livros com um pouco mais de arcaboiço: “Novas Cartas Portuguesas”, “Os Versículos Satânicos”, “Lolita”. Coisas dessas. Era execrável na mesma, mas ao menos os censores andavam a ler livros para a sua idade. Já não era mau. Neste momento, a literatura mais polémica e incómoda é a infanto-juvenil. Os fanáticos desta semana foram exercer a sua censura para o lançamento do livro “No Meu Bairro”, da autora Lúcia Vicente e do ilustrador Tiago M., que reúne 12 histórias em verso. Por exemplo, ‘Magalhães, o menino que tinha duas mães’, ou ‘Beatriz, a cigana feliz’. Alguém leu as histórias aos censores, provavelmente ao deitar, e eles não gostaram nada. Por isso, apresentaram-se no lançamento com um megafone. Ou porque pensavam que ia estar um mar de gente na apresentação de “No Meu Bairro”, e precisavam de um megafone para que a multidão conseguisse ouvi-los, ou porque sabiam que ia estar apenas meia dúzia de pessoas mas tinham a consciência de que os seus argumentos são tão frágeis que só se conseguem impor se forem proferidos aos gritos. É difícil saber.

Sem querer culpar as vítimas, parece-me evidente que Lúcia Vicente e Tiago M. têm responsabilidades neste protesto. Quiseram escrever um livro norteado pelos valores da diversidade e da inclusão, mas falharam clamorosamente. Inventaram um bairro com vários tipos de criança, mas deixaram ostensivamente de fora os meninos que invadiram o lançamento. Não tinha custado nada escrever uma 13ª história em verso, chamada ‘Torcato, o bafiento beato’, para que eles se sentissem representados. Deixo aqui a história, com o objectivo de enriquecer futuras edições do livro.

“Era uma vez o Torcato
o bafiento beato.
Ele era um menino cristão
como aqueles pais de Famalicão. 
Dizia: ‘Cada filho deve ser educado
sem a intervenção do Estado.
Os pais decidem livremente
que educação dar a um descendente.’
Mas um dia o Torcato
leu um livro em que um gaiato,
tinha uma família horrorosa,
indecente, pecaminosa:
duas mães em vez de uma.
Bem pior que ter nenhuma.
Coitadinho do gaiato,
está melhor no orfanato.
E então o Torcato
foi fazer um espalhafato
contra o livro infantil.
Afinal ele é hostil
à noção de liberdade.
Educar os filhos há-de
obedecer a uma doutrina
de lógica cristalina:
um livro só é sensato
se aprovado pelo Torcato.”

Só falta o Tiago M. desenhar o Torcato com os calções castanhos, a camisa verde, o bivaque castanho escuro e o cinto com a letra S, e a segunda edição está pronta para ir para a gráfica.»

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26.9.23

O cinismo europeu

 


«O futuro da Europa encontra-se numa encruzilhada, entre a humanidade e o pragmatismo mais frio. Devemos fazer um esforço para tentar compreender a rejeição de muitos povos do Sul, da bacia do Mediterrâneo, que se veem todos os dias confrontados com a chegada de migrantes. Na Grécia, em Itália , sobretudo na Sicília, o caudal de pessoas em fuga da guerra e da fome não cessa de aumentar. É um desafio para os governos desses países dar resposta ao problema sem perder a confiança daqueles que os elegeram.

Numa tentativa de mostrar à primeira-ministra italiana que Bruxelas não é indiferente ao problema, a presidente da Comissão Europeia foi a Lampedusa dizer que “a imigração irregular é um problema europeu” e por isso “precisa de uma resposta europeia”. Nada como frases redondas, vazias de sentido, para nada ser feito. Ou melhor, para manter a fórmula de sempre. A mais cínica, a mais desumana.

Von der Leyen não perdeu tempo para dar uma resposta à pressão dos governos do Sul. Estes países recebem migrantes e ficam com eles, sem quaisquer condições, em campos de refugiados ou, os que conseguem escapar, vagueando pelas ruas. Indiferente aos apelos humanistas do Papa Francisco - em Marselha encontrou-se com pessoas que cruzaram o Mediterrâneo e se encontram numa espécie de limbo à espera de dias melhores -, a presidente da Comissão Europeia optou por voltar a atirar dinheiro sobre o grave problema. Não para criar melhores condições de acolhimento, antes para os reter nos países de origem. Hipocritamente, diz, o objetivo é criar condições para que não sintam necessidade de partir.

Mais cínica, sem dúvida, não podia ser a intenção da presidente Von der Leyen. Como todos sabemos, e ela mais que ninguém deveria ter conhecimento, esses 900 milhões de euros de apoio correm o risco de ajudar, precisamente, quem deles não carece.»

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25.9.23

Prédios

 


Varandas da Casa Elena Castellano, Bairro Gótico, Barcelona, 1906.
Arquitecto: Jaume Torres i Grau.

Daqui.
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Sempre ao seu serviço

 

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E quanto a presidenciais?

 


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Boas notícias que fazem mal ao país

 


«Quem ouve anúncios assim fica a pensar que as notícias são boas – e foram várias as entidades a apresentá-las nesse tom. O INE informou há dias que as contas do Estado tiveram um saldo orçamental positivo de 1,1% do PIB no 1.º semestre deste ano. O Conselho das Finanças Públicas diz que podemos chegar ao final de 2023 com um saldo correspondente a +0,9% do PIB, em vez dos -0,4% que o Governo previa em Abril no Programa de Estabilidade, ou dos -0,9% inscritos no Orçamento do Estado aprovado há um ano. Por fim, o ministro das Finanças anunciou com orgulho que Portugal sairá do pódio dos países mais endividados da UE, ficando com uma dívida pública abaixo da de vários outros Estados-membros.

As escolas abrem sem professores, os hospitais não conseguem responder ao aumento da procura, as entidades públicas não conseguem atrair nem reter quadros qualificados devido aos baixos salários que oferecem, os jovens não conseguem viver nas grandes cidades, os estudantes deslocados e/ou de baixos rendimentos não suportam os custos de frequência do ensino superior, os transportes públicos falham diariamente por avarias e falta de material e o investimento público está há uma década em níveis historicamente baixos. Apesar disto tudo, é com regozijo que nos anunciam que o Estado poupa mais do que promete.

Se as projecções do Conselho das Finanças Públicas se confirmassem, em 2023 o Estado português arrecadaria em receitas a mais e/ou em despesas a menos do que o previsto cerca de 4,5 mil milhões de euros. Isto corresponde a dois terços do valor anual do Orçamento do Estado para a Educação e um terço da dotação pública para a Saúde. Mesmo que o Governo acelere a execução orçamental até ao fim do ano, ainda assim as Finanças deverão arrecadar em 2023 para lá de dois mil milhões de euros acima do que era suposto.

A façanha não é nova. Em 2022, o défice público ficou em 0,4% do PIB, em vez dos 1,9% inscritos no OE para esse ano. O Estado retirou assim à economia cerca de 3,5 mil milhões de euros a mais do que o previsto.

Há quem veja nesta poupança reforçada um sinal de virtude. Afinal, é bom que um país muito endividado reduza a despesa com juros, ainda mais quando estão a subir. Este raciocínio soa óbvio e sensato, mas não dispensa que se façam as contas.

Se em vez dos 0,4% alcançados em 2022 o Governo tivesse reduzido o défice para 0,9% do PIB – um valor, em qualquer modo, muito abaixo da meta estabelecida no OE (1,9%) –, teria libertado para a economia e para a sociedade cerca de 1,2 mil milhões de euros. Uma verba adicional destas daria, por exemplo, para aumentar o investimento em 500 milhões (ficando ainda assim abaixo do orçamentado), aumentar os salários da função pública em 1,9% (em vez de apenas 0,9%, muito abaixo da inflação registada), mais do que duplicar as verbas da acção social escolar do ensino superior, reintroduzir os estágios remunerados para novos professores dos ensinos básico e secundário (que em tempos ajudavam a atrair recém-licenciados para a profissão) e ainda reservar 300 milhões de euros para recuperar cirurgias em atraso no SNS.

O ministro das Finanças responde a propostas deste tipo com um sombrio “Gastar o que se tem e o que não se tem é uma política que rejeitamos por completo”, fazendo lembrar a ciência económica da idade das trevas que por cá se praticava noutros tempos. Importa recordar a Fernando Medina que, mesmo com todas as despesas adicionais referidas (que respondem a alguns dos problemas mais prementes do país), a dívida pública teria caído num ano de 124,5% do PIB para 112,9% (em vez de 112,4%), o que continuaria a colocar Portugal entre os países da UE com maiores quedas da dívida em 2022.

Ao contrário daquilo em que muitos parecem acreditar (não se dando ao trabalho de fazer as contas), o impacto directo que isto teria no saldo orçamental dos próximos anos seria muito limitado. À taxa de juro de 2,5% que o Estado paga actualmente pelos Certificados de Aforro, os juros adicionais a suportar seriam equivalentes a 0,01% do PIB em 2023 e ainda mais baixos ao longo dos próximos anos. Se considerarmos antes as taxas de juro que o Estado português paga para se financiar nos mercados (que são um pouco mais altas), as contas pouco se alteram.

Estes cálculos, feitos para o que se verificou em 2022, são idênticos aos que podemos fazer com os resultados agora anunciados para 2023. Nem a perspectiva de manutenção dos juros altos, confirmada há dias pelo Banco Central Europeu, altera aquela análise. Como mostra o Conselho das Finanças Públicas, nos próximos anos a despesa do Estado português com juros em percentagem do PIB deverá continuar aquém da registada em 2019 (para os com menos memória, nesse ano as contas públicas portuguesas foram excedentárias).

Ou seja, desacelerar um pouco o ritmo de redução da dívida não poria em causa nem a reputação do país nem a sustentabilidade das finanças públicas portuguesas. Mas poderia ajudar a resolver vários problemas urgentes.

Ao invés, o Governo está decidido em mostrar-se mais papista do que o Papa na gestão financeira do Estado. Do ponto de vista eleitoral, é fácil de perceber porquê. Justa ou injustamente, o PS ficou colado à imagem de partido do descontrolo orçamental. Pouco importa que a crise que Portugal atravessou em 2010-2012 tenha sido comum a muitos outros países, que a acumulação de dívida nos anos anteriores se explique mais pelo baixo crescimento económico do que pela gestão das contas públicas, ou que o PS divida a responsabilidade de más práticas orçamentais com os outros partidos que estiveram no governo ao longo dos anos. A verdade é que há uma década a direita apostou todas as fichas em diferenciar-se do PS pela austeridade. Ir hoje além da troika, além de Passos Coelho e além das regras da UE no ritmo de redução da dívida pública foi a forma escolhida por António Costa para neutralizar a oposição de direita.

A jogada parece estar a resultar: apesar do mau funcionamento dos serviços públicos, da crise na habitação, da perda de poder de compra e dos escândalos sucessivos na governação, as intenções de voto no PS pouco se alteraram desde o início do ano.

O Governo pode até estar a acertar na táctica política, mas o tacticismo do Governo tem custos para o país. Deixemos, pois, o Governo festejar. Mas olhemos bem para a factura antes de fazermos nós a festa. As boas notícias não são tão boas como parecem.»

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24.9.23

Pianos

 


Piano na sala de música em The House for an Art Lover, Glasgow, Escócia, 1901.
Arquitecto: Charles Rennie Mackintosh.

Daqui.
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«We are Rinaldo», senhor Presidente da República?

 


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José Régio

 

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Deus sacode o mundo

 


«Imaginemos por momentos que Deus, preocupado com os habitantes de uma das suas esferas celestes, o planeta Terra, tenciona sacudi-los três vezes seguidas, em conformidade com a Trindade na criação do mundo. Não será, como nunca é nos movimentos divinos, um gesto de intenções claras. No entanto, e disso se tem a certeza, não é coisa inteiramente planificada, ou socialista; não se trata de com três toques empobrecer os 1% de muito ricos e enriquecer os restantes 99% da população. Deus, melhor do que ninguém, conhece os sistemas terrestres e sabe que essa é uma solução irrealista: o planeta não aguenta a generalização da abundância. Numa aritmética espacial simples, para cada ser humano ter o tipo de vida de um alemão de classe média, seriam necessários três planetas Terra. E, portanto, a sua intenção é outra, talvez mais excelsa. Sabemos que Deus nem sempre sabe o que faz até ao pormenor, como bem se vê se olharmos para nós como uma criação Sua. Mas importa agora saber que Ele nos tenciona abanar. Como a sacudidela é espiritual, em terra nada vai tremer, mas será sentida no coração de cada um com grande estrondo e tremor. Gestos assim tendem a provocar todo o tipo de imprevisibilidades; era de facto importante que Deus explicasse o que O faz desejar interferir de forma tão descarada e, já agora, que fosse claro relativamente aos resultados pretendidos.

Como este Deus é inventado por mim, posso convidá-lo para um copo e fazer-lhe as perguntas que importam. Já se tinha bebido bem, quando, com um ar pesaroso, Ele confessa que até agora tem vindo a ser sensível ao clamor derradeiro de Cristo: Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem. É ao abrigo deste pedido, desta margem de erro assente na ignorância, e também no pressuposto beckettiano do falhar, falhar melhor, que tem vindo a olhar para a Terra e para a humanidade. O caso muda de figura, quando começa a sentir que querem que lhes perdoe porque sabem o que fazem, ou seja, pedem perdão ainda que sabendo estar a errar — e isto apesar de estar inteiramente à sua disposição acertar. Sentiu sérias dificuldades perante este novo pedido, que lhe parece inaceitável do ponto de vista da sustentabilidade cósmica. De resto, para qualquer Deus, aquele que a nível astral é conhecido por trajeto ecocida, é motivo de grande desassossego, uma vez que se vira contra a Criação.

E quanto aos resultados pretendidos com a sacudidela? Esclarece que revelar as suas intenções seria abdicar da prerrogativa celestial de escrever direito por linhas tortas; que isso nem o vinho lhe arranca. Garante apenas que nos vai trocar as voltas e que nada será como dantes. Mas trata-se de um salto cognitivo, qualitativo? Vamos ficar melhores pessoas? Silêncio divino; Deus ter-me-á deixado, porventura de regresso ao infinito. Resta-nos a nós — como sempre resta — projetar as desejáveis consequências deste prometido triabanão.

Na manhã do primeiro dia depois do tremor, imagino que todas as pessoas com mais de 45 anos são acometidas por uma onda severa de ecoansiedade. Choram quando leem notícias sobre a iminente extinção dos corais ou do leão-africano; revoltam-se com imagens de refugiados climáticos e com os fogos em que morrem milhões de animais. Agem, organizam-se, movendo as suas esferas de influência. Consequentemente, nesse mesmo dia, os mais jovens acordam com uma esperança extraordinária, nunca até aí sentida.

Bastaria este trocar de voltas para que nada fosse como dantes? Eu, terrestre, acredito que sim. A Deus desejo uma ressaca tranquila e pleno vigor nos gestos futuros.»

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