«Quem ouve anúncios assim fica a pensar que as notícias são boas – e foram várias as entidades a apresentá-las nesse tom. O INE informou há dias que as contas do Estado tiveram um saldo orçamental positivo de 1,1% do PIB no 1.º semestre deste ano. O Conselho das Finanças Públicas diz que podemos chegar ao final de 2023 com um saldo correspondente a +0,9% do PIB, em vez dos -0,4% que o Governo previa em Abril no Programa de Estabilidade, ou dos -0,9% inscritos no Orçamento do Estado aprovado há um ano. Por fim, o ministro das Finanças anunciou com orgulho que Portugal sairá do pódio dos países mais endividados da UE, ficando com uma dívida pública abaixo da de vários outros Estados-membros.
As escolas abrem sem professores, os hospitais não conseguem responder ao aumento da procura, as entidades públicas não conseguem atrair nem reter quadros qualificados devido aos baixos salários que oferecem, os jovens não conseguem viver nas grandes cidades, os estudantes deslocados e/ou de baixos rendimentos não suportam os custos de frequência do ensino superior, os transportes públicos falham diariamente por avarias e falta de material e o investimento público está há uma década em níveis historicamente baixos. Apesar disto tudo, é com regozijo que nos anunciam que o Estado poupa mais do que promete.
Se as projecções do Conselho das Finanças Públicas se confirmassem, em 2023 o Estado português arrecadaria em receitas a mais e/ou em despesas a menos do que o previsto cerca de 4,5 mil milhões de euros. Isto corresponde a dois terços do valor anual do Orçamento do Estado para a Educação e um terço da dotação pública para a Saúde. Mesmo que o Governo acelere a execução orçamental até ao fim do ano, ainda assim as Finanças deverão arrecadar em 2023 para lá de dois mil milhões de euros acima do que era suposto.
A façanha não é nova. Em 2022, o défice público ficou em 0,4% do PIB, em vez dos 1,9% inscritos no OE para esse ano. O Estado retirou assim à economia cerca de 3,5 mil milhões de euros a mais do que o previsto.
Há quem veja nesta poupança reforçada um sinal de virtude. Afinal, é bom que um país muito endividado reduza a despesa com juros, ainda mais quando estão a subir. Este raciocínio soa óbvio e sensato, mas não dispensa que se façam as contas.
Se em vez dos 0,4% alcançados em 2022 o Governo tivesse reduzido o défice para 0,9% do PIB – um valor, em qualquer modo, muito abaixo da meta estabelecida no OE (1,9%) –, teria libertado para a economia e para a sociedade cerca de 1,2 mil milhões de euros. Uma verba adicional destas daria, por exemplo, para aumentar o investimento em 500 milhões (ficando ainda assim abaixo do orçamentado), aumentar os salários da função pública em 1,9% (em vez de apenas 0,9%, muito abaixo da inflação registada), mais do que duplicar as verbas da acção social escolar do ensino superior, reintroduzir os estágios remunerados para novos professores dos ensinos básico e secundário (que em tempos ajudavam a atrair recém-licenciados para a profissão) e ainda reservar 300 milhões de euros para recuperar cirurgias em atraso no SNS.
O ministro das Finanças responde a propostas deste tipo com um sombrio “Gastar o que se tem e o que não se tem é uma política que rejeitamos por completo”, fazendo lembrar a ciência económica da idade das trevas que por cá se praticava noutros tempos. Importa recordar a Fernando Medina que, mesmo com todas as despesas adicionais referidas (que respondem a alguns dos problemas mais prementes do país), a dívida pública teria caído num ano de 124,5% do PIB para 112,9% (em vez de 112,4%), o que continuaria a colocar Portugal entre os países da UE com maiores quedas da dívida em 2022.
Ao contrário daquilo em que muitos parecem acreditar (não se dando ao trabalho de fazer as contas), o impacto directo que isto teria no saldo orçamental dos próximos anos seria muito limitado. À taxa de juro de 2,5% que o Estado paga actualmente pelos Certificados de Aforro, os juros adicionais a suportar seriam equivalentes a 0,01% do PIB em 2023 e ainda mais baixos ao longo dos próximos anos. Se considerarmos antes as taxas de juro que o Estado português paga para se financiar nos mercados (que são um pouco mais altas), as contas pouco se alteram.
Estes cálculos, feitos para o que se verificou em 2022, são idênticos aos que podemos fazer com os resultados agora anunciados para 2023. Nem a perspectiva de manutenção dos juros altos, confirmada há dias pelo Banco Central Europeu, altera aquela análise. Como mostra o Conselho das Finanças Públicas, nos próximos anos a despesa do Estado português com juros em percentagem do PIB deverá continuar aquém da registada em 2019 (para os com menos memória, nesse ano as contas públicas portuguesas foram excedentárias).
Ou seja, desacelerar um pouco o ritmo de redução da dívida não poria em causa nem a reputação do país nem a sustentabilidade das finanças públicas portuguesas. Mas poderia ajudar a resolver vários problemas urgentes.
Ao invés, o Governo está decidido em mostrar-se mais papista do que o Papa na gestão financeira do Estado. Do ponto de vista eleitoral, é fácil de perceber porquê. Justa ou injustamente, o PS ficou colado à imagem de partido do descontrolo orçamental. Pouco importa que a crise que Portugal atravessou em 2010-2012 tenha sido comum a muitos outros países, que a acumulação de dívida nos anos anteriores se explique mais pelo baixo crescimento económico do que pela gestão das contas públicas, ou que o PS divida a responsabilidade de más práticas orçamentais com os outros partidos que estiveram no governo ao longo dos anos. A verdade é que há uma década a direita apostou todas as fichas em diferenciar-se do PS pela austeridade. Ir hoje além da troika, além de Passos Coelho e além das regras da UE no ritmo de redução da dívida pública foi a forma escolhida por António Costa para neutralizar a oposição de direita.
A jogada parece estar a resultar: apesar do mau funcionamento dos serviços públicos, da crise na habitação, da perda de poder de compra e dos escândalos sucessivos na governação, as intenções de voto no PS pouco se alteraram desde o início do ano.
O Governo pode até estar a acertar na táctica política, mas o tacticismo do Governo tem custos para o país. Deixemos, pois, o Governo festejar. Mas olhemos bem para a factura antes de fazermos nós a festa. As boas notícias não são tão boas como parecem.»
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