24.9.23

Deus sacode o mundo

 


«Imaginemos por momentos que Deus, preocupado com os habitantes de uma das suas esferas celestes, o planeta Terra, tenciona sacudi-los três vezes seguidas, em conformidade com a Trindade na criação do mundo. Não será, como nunca é nos movimentos divinos, um gesto de intenções claras. No entanto, e disso se tem a certeza, não é coisa inteiramente planificada, ou socialista; não se trata de com três toques empobrecer os 1% de muito ricos e enriquecer os restantes 99% da população. Deus, melhor do que ninguém, conhece os sistemas terrestres e sabe que essa é uma solução irrealista: o planeta não aguenta a generalização da abundância. Numa aritmética espacial simples, para cada ser humano ter o tipo de vida de um alemão de classe média, seriam necessários três planetas Terra. E, portanto, a sua intenção é outra, talvez mais excelsa. Sabemos que Deus nem sempre sabe o que faz até ao pormenor, como bem se vê se olharmos para nós como uma criação Sua. Mas importa agora saber que Ele nos tenciona abanar. Como a sacudidela é espiritual, em terra nada vai tremer, mas será sentida no coração de cada um com grande estrondo e tremor. Gestos assim tendem a provocar todo o tipo de imprevisibilidades; era de facto importante que Deus explicasse o que O faz desejar interferir de forma tão descarada e, já agora, que fosse claro relativamente aos resultados pretendidos.

Como este Deus é inventado por mim, posso convidá-lo para um copo e fazer-lhe as perguntas que importam. Já se tinha bebido bem, quando, com um ar pesaroso, Ele confessa que até agora tem vindo a ser sensível ao clamor derradeiro de Cristo: Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem. É ao abrigo deste pedido, desta margem de erro assente na ignorância, e também no pressuposto beckettiano do falhar, falhar melhor, que tem vindo a olhar para a Terra e para a humanidade. O caso muda de figura, quando começa a sentir que querem que lhes perdoe porque sabem o que fazem, ou seja, pedem perdão ainda que sabendo estar a errar — e isto apesar de estar inteiramente à sua disposição acertar. Sentiu sérias dificuldades perante este novo pedido, que lhe parece inaceitável do ponto de vista da sustentabilidade cósmica. De resto, para qualquer Deus, aquele que a nível astral é conhecido por trajeto ecocida, é motivo de grande desassossego, uma vez que se vira contra a Criação.

E quanto aos resultados pretendidos com a sacudidela? Esclarece que revelar as suas intenções seria abdicar da prerrogativa celestial de escrever direito por linhas tortas; que isso nem o vinho lhe arranca. Garante apenas que nos vai trocar as voltas e que nada será como dantes. Mas trata-se de um salto cognitivo, qualitativo? Vamos ficar melhores pessoas? Silêncio divino; Deus ter-me-á deixado, porventura de regresso ao infinito. Resta-nos a nós — como sempre resta — projetar as desejáveis consequências deste prometido triabanão.

Na manhã do primeiro dia depois do tremor, imagino que todas as pessoas com mais de 45 anos são acometidas por uma onda severa de ecoansiedade. Choram quando leem notícias sobre a iminente extinção dos corais ou do leão-africano; revoltam-se com imagens de refugiados climáticos e com os fogos em que morrem milhões de animais. Agem, organizam-se, movendo as suas esferas de influência. Consequentemente, nesse mesmo dia, os mais jovens acordam com uma esperança extraordinária, nunca até aí sentida.

Bastaria este trocar de voltas para que nada fosse como dantes? Eu, terrestre, acredito que sim. A Deus desejo uma ressaca tranquila e pleno vigor nos gestos futuros.»

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