Os dois textos mais rebarbativos com que deparei nos últimos tempos foram o chamado Tratado Reformador da União Europeia e a recentíssima encíclica de Bento XVI
Spe Salvis. Nada têm em comum a não ser o facto de serem produtos tipicamente europeus, no mau sentido, pela sua inútil dimensão e complexidade (*).
Este texto do papa sobre a virtude da Esperança dirige-se a todos os católicos, mas permito-me duvidar que tenha muitos leitores entre o comum dos mortais. Primeiro porque é muito longo – tem 77 páginas. Segundo porque não creio que os jovens do século XXI, os chineses, os africanos e muitos outros, mesmo que entusiasticamente crentes e seguidores da Igreja católica, parem muito tempo para penetrar em parágrafos como este:
«Para compreender mais profundamente esta reflexão sobre as duas espécies de substâncias – hypostasis e hyparchonta – e sobre as duas maneiras de viver que com elas se exprimem, devemos reflectir ainda brevemente sobre duas palavras referentes ao assunto, que se encontram no décimo capítulo da Carta aos Hebreus. Trata-se das palavras hypomone (10,36) e hypostole.»(10,39).»
Deixando de lado todo o conteúdo propriamente religioso, limito-me a chamar a atenção para as reflexões que Ratzinger faz sobre o marxismo e os seus erros (que já foram ironicamente consideradas por alguns como um elogio) – estas sim numa linguagem simples, talvez mesmo simplista, demasiado
Readers Digest.
Prefiro citá-lo (poupando aos leitores o trabalho de localizarem esta passagem no emaranhado das setenta e sete páginas):
«Depois da revolução burguesa de 1789, tinha chegado a hora para uma nova revolução: a proletária. O progresso não podia limitar-se a avançar de forma linear e com pequenos passos. Urgia o salto revolucionário. Karl Marx recolheu este apelo do momento e, com vigor de linguagem e de pensamento, procurou iniciar este novo passo grande e, como supunha, definitivo da história rumo à salvação, rumo àquilo que Kant tinha qualificado como o «reino de Deus». Tendo-se diluída a verdade do além, tratar-se-ia agora de estabelecer a verdade de aquém. A crítica do céu transforma-se na crítica da terra, a crítica da teologia na crítica da política. O progresso rumo ao melhor, rumo ao mundo definitivamente bom, já não vem simplesmente da ciência, mas da política – de uma política pensada cientificamente, que sabe reconhecer a estrutura da história e da sociedade, indicando assim a estrada da revolução, da mudança de todas as coisas. Com pontual precisão, embora de forma unilateralmente parcial, Marx descreveu a situação do seu tempo e ilustrou, com grande capacidade analítica, as vias para a revolução. E não só teoricamente, pois com o partido comunista, nascido do manifesto comunista de 1848, também a iniciou concretamente. A sua promessa, graças à agudeza das análises e à clara indicação dos instrumentos para a mudança radical, fascinou e não cessa de fascinar ainda hoje. E a revolução deu-se, depois, na forma mais radical na Rússia.
Com a sua vitória, porém, tornou-se evidente também o erro fundamental de Marx. Ele indicou com exactidão o modo como realizar o derrubamento. Mas, não nos disse, como as coisas deveriam proceder depois. Ele supunha simplesmente que, com a expropriação da classe dominante, a queda do poder político e a socialização dos meios de produção, ter-se-ia realizado a Nova Jerusalém. Com efeito, então ficariam anuladas todas as contradições; o homem e o mundo haveriam finalmente de ver claro em si próprios. Então tudo poderia proceder espontaneamente pelo recto caminho, porque tudo pertenceria a todos e todos haviam de querer o melhor um para o outro. Assim, depois de cumprida a revolução, Lenin deu-se conta de que, nos escritos do mestre, não se achava qualquer indicação sobre o modo como proceder. É verdade que ele tinha falado da fase intermédia da ditadura do proletariado como de uma necessidade que, porém, num segundo momento ela mesma se demonstraria caduca. Esta «fase intermédia» conhecemo-la muito bem e sabemos também como depois evoluiu, não dando à luz o mundo sadio, mas deixando atrás de si uma destruição desoladora. Marx não falhou só ao deixar de idealizar os ordenamentos necessários para o mundo novo; com efeito, já não deveria haver mais necessidade deles. O facto de não dizer nada sobre isso é lógica consequência da sua perspectiva. O seu erro situa-se numa profundidade maior. Ele esqueceu que o homem permanece sempre homem. Esqueceu o homem e a sua liberdade. Esqueceu que a liberdade permanece sempre liberdade, inclusive para o mal. Pensava que, uma vez colocada em ordem a economia, tudo se arranjaria. O seu verdadeiro erro é o materialismo: de facto, o homem não é só o produto de condições económicas nem se pode curá-lo apenas do exterior criando condições económicas favoráveis.
(...)
Torna-se evidente que o homem necessita de uma esperança que vá mais além. Vê-se que só algo de infinito lhe pode bastar, algo que será sempre mais do que aquilo que ele alguma vez possa alcançar. Neste sentido, a época moderna desenvolveu a esperança da instauração de um mundo perfeito que, graças aos conhecimentos da ciência e a uma política cientificamente fundada, parecia tornar-se realizável. Assim, a esperança bíblica do reino de Deus foi substituída pela esperança do reino do homem, pela esperança de um mundo melhor que seria o verdadeiro «reino de Deus».
Estilo diferente de um papa diferente – sem dúvida.
Sinceramente, nem estou muito interessada em saber se mudará ou não qualquer coisa no interior da Igreja. Mas continuo a não acreditar que esteja a ser um agente mobilizador para que os povos vivam melhor e avancem com esperança. Antes estivesse.
(*) Texto integral
aqui.