3.9.22

Hotéis

 


O lobby do Gran Hotel, Cidade do México.

Daqui.
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Incontronável

 


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03.09.1940 – Eduardo Galeano

 


Um grande uruguaio que nasceu em Montevidéu e que nos deixou em 2015. Quis ser jogador de futebol, mas acabou escritor com mais de quarenta livros publicados. Andou a fugir de ditaduras, em 1973 foi preso depois do golpe militar no seu país e exilou-se na Argentina. Com outro golpe militar – o de Jorge Videla em 1976 –, viu o nome colocado na lista dos «esquadrões da morte», partiu para Espanha e só nove anos mais tarde regressou à cidade que o viu nascer.

Ver dois vídeos com textos ditos pelo próprio, e ler como ia o mundo em 3 de Setembro de 1940 descrito por ele numa página de Os filhos dos dias, AQUI.
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Uma urgência a não ignorar



 

«Há como que um mistério na chamada “contemporaneidade” portuguesa: como é que um povo pôde viver mais de dois séculos sem uma informação de qualidade? E sobretudo sem uma informação suficientemente difundida por entre a população? Três primeiras explicações saltam aos olhos: a alta e duradoira taxa de analfabetismo, alargada a uma instrução reduzida e manifestamente deficiente; um poder de compra que também ele foi durante longos decénios reduzido, fazendo desde logo dos jornais e dos recetores de rádio e de televisão produtos de luxo; um clima político repressivo em diversas fases da história, impedindo a afirmação de uma prática jornalística livre e de uma informação de qualidade.

Mas estas explicações liminares não respondem a outra interrogação: como é que, globalmente, ao longo destes mais de dois séculos, os meios dirigentes deste país não sentiram a necessidade de dispor de uma informação de qualidade, abundante e plural para melhor exercerem as suas próprias funções de direção? Interrogação tanto mais pertinente que, até aos anos 1990, grosso modo, o acesso a média estrangeiros foi bastante difícil e limitado.

Resta-nos uma explicação particularmente desagradável: os meios dirigentes deste país foram-se concentrando ao longo dos séculos na “capital do império”, onde círculos de poder diversos se foram habituando a reinar sem prestar contas ao resto do país. E pior do que isso: interiorizaram um modelo de governação que não só ignora largamente a população, como prefere mantê-la longe dos corredores do poder, das suas manobras, negociações e decisões. O que explica o desinteresse profundo dos meios dirigentes em relação à situação de subdesenvolvimento atroz dos média em Portugal e da preocupante insuficiência da informação que praticam. E o constante desinteresse dos meios governamentais que se têm sucedido no poder da atual Segunda República [de 1926 a 1974, Portugal viveu em Ditadura e não em República] é terrivelmente significativo disso.

Porque Portugal vive de facto num inaceitável estado de subdesenvolvimento em matéria de média de informação jornalística, particularmente evidente no que diz respeito à imprensa escrita (em papel ou em digital). São raros os diários nacionais como os regionais, sendo as difusões (circulações) de todos eles inconcebivelmente baixas num país com a dimensão demográfica que é a sua. E, embora os periódicos (não diários) sejam relativamente numerosos, as difusões são igualmente bastante reduzidas e até mesmo, em muitos casos, insignificantes.

A própria paisagem mediática dita “nacional” (imprensa, rádio, televisão e média em linha) está unicamente sediada em Lisboa, com uma pequena exceção no Porto, sendo o resto do país um desolador deserto. Um duplo deserto aliás: nenhum média “nacional” emana deste resto do país e a pretensa imprensa “nacional” pouco se vende na chamada “província”. Enquanto jornais, rádios e televisões com origem na “província” praticam um jornalismo particularmente pobre. Uma situação que tem tendência a acentuar-se, dada a evolução atual dos investimentos publicitários nos chamados média “tradicionais”.

Ora, uma democracia no pleno sentido do termo supõe cidadãos bem informados e meios dirigentes dispondo de elementos fatuais de informação e de análise que permitam a uns e outros tomar as decisões que lhes parecem impor-se. O que pressupõe a existência de uma paisagem mediática diversificada e plural, mas também redações numerosas e competentes. Porque um dos dramas dos média de informação jornalística em Portugal é a pobreza das redações, em termos quantitativos como de especializações. O que se traduz por conteúdos editoriais bem mais reduzidos do que os de confrades com posicionamentos comparáveis noutros países da Europa. Mas também por conteúdos menos substanciais, tratados quantas vezes por jornalistas que passam, por exemplo, de uma área geopolítica para outra de um continente diferente, de um tema médico-hospitalar para outro sobre um caso judicial, de uma guerra no estrangeiro para um fogo de floresta. Uma larga ausência de especialistas a que vem acrescentar-se uma escassez de correspondências e de reportagens no interior do país como no estrangeiro que, quando realizadas, revelam quase sempre uma manifesta falta de meios técnicos e humanos. O que é particularmente evidente em audiovisual, o jornalista mantendo-se longe do acontecimento, enquanto as gravações e as montagens prévias são extremamente raras.

Tal escassez de meios financeiros, técnicos e humanos, aliada a formações académico-profissionais muito discutíveis, faz que os jornais sejam muitas vezes meros canais amplificadores do que foi produzido pelas assessorias mais diversas (ministérios, partidos, ordens, sindicatos, corporações, polícias, bombeiros, autarquias…), quantas vezes sem que a mais elementar distância, a desejável verificação e o salutar sentido crítico tenham sido exercidos. Vêm juntar-se-lhes despachos, sons e imagens propostos por agências de informação, muitas vezes unicamente a portuguesa Lusa, por vezes também as britânico-estado-unidenses, com o que isso significa como visão da atualidade no mundo. Um conjunto de conteúdos ou perspetivas de conteúdos acolhido como maná por redações e que as leva a produzir jornais exageradamente monotemáticos-folhetinescos (covid, fogos, Ucrânia, urgências hospitalares…).

Para que Portugal possa de facto vir a ser um membro entre os melhores da União Europeia nesta matéria, é, pois, urgente que o seu sistema mediático e o tratamento da informação sejam repensados. Mas, numa perspetiva puramente liberal, a sociedade portuguesa sendo o que é e tem demonstrado ser, haverá provavelmente pouco a esperar dos meios económicos em termos de iniciativa, ab ovo, a última tendo sido a criação do PÚBLICO pelo grupo Sonae em 1990, há 32 anos. Aos poderes legislativo e executivo de tomarem, pois, iniciativas de modo a incrementarem as indispensáveis evoluções. Criando uma fundação dotada de um fundo capaz de permitir o financiamento parcial de iniciativas provenientes dos meios editoriais e jornalísticos com vista a criar novos média de informação ou a reforçar iniciativas (jornalísticas e promocionais) de média existentes. Este fundo proviria do Estado e da União Europeia, mas também de empresas, instituições ou pessoas privadas, como consequência de uma legislação fiscal favorável às doações à fundação. Da mesma maneira que uma legislação devidamente adequada deveria garantir a independência e a sua não recuperação por criaturas partidárias notoriamente incompetentes na dupla matéria mediática e jornalística.

A entrada de Portugal na rota de um verdadeiro progresso democrático, quase meio século depois do 25 de Abril, depende largamente do estatuto que soubermos dar aos média de informação e à sua prática jornalística. Os meios dirigentes responsáveis do país não podem continuar a ignorá-lo…»

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2.9.22

Prédios

 


Edifício Arte Nova, Terézváros , Budapeste, 1900.
Arquitectos: Marcell Komor e Dezső Jakab.


Daqui.
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02.09.1939 - Neruda e a chegada, ao Chile, de exilados da Guerra Civil Espanhola

 


Na noite de 2 de Setembro de 1939, o Winnipeg chegou a Valparaíso, no Chile, com 2.365 espanhóis, exilados da Guerra Civil Espanhola e que se encontravam refugiados em campos, em França.

Quando desembarcaram, no dia seguinte, nem queriam acreditar no que viam, nem percebiam bem onde estavam: o Chile era uma terra longínqua e estavam a ser recebidos como heróis...

Se Pablo Neruda não foi o único promotor desta iniciativa, foi certamente o principal. No dia 4 de Agosto, quando o barco saíra do porto francês de Trompeloup, tinha escrito o que viria a relatar mais tarde nas suas Memórias: «Que la crítica borre toda mi poesía, si le parece. Pero este poema, que hoy recuerdo, no podrá borrarlo nadie.» Em Memorial de Isla Negra, incluiu o seguinte poema:

Yo los puse en mi barco.
Era de día y Francia
 su vestido de lujo
de cada día tuvo aquella vez,
fue
la misma claridad de vino y aire
su ropaje de diosa forestal.
Mi navío esperaba
con su remoto nombre “Winnipeg”
Pero mis españoles no venían
de Versalles,
del baile plateado,
de las viejas alfombras de amaranto,
de las copas que trinan
con el vino,
no, de allí no venían,
no, de allí no venían.
De más lejos,
de campos de prisiones,
de las arenas negras
del Sahara,
de ásperos escondrijos
donde yacieron
hambrientos y desnudos,
allí a mi barco claro,
al navío en el mar, a la esperanza
acudieron llamados uno a uno
por mí, desde sus cárceles,
desde las fortalezas
de Francia tambaleante
por mi boca llamados
acudieron,
Saavedra, dije, y vino el albañil,
Zúñiga, dije, y allí estaba,
Roces, llamé, y llegó con severa sonrisa,
grité, Alberti! y con manos de cuarzo
acudió la poesía.

Labriegos, carpinteros,
pescadores,
torneros, maquinistas,
alfareros, curtidores:
se iba poblando el barco
que partía a mi patria. Yo sentía en los dedos
las semillas
de España
que rescaté yo mismo y esparcí
sobre el mar, dirigidas
a la paz
de las praderas.
 .
(Mais descrições aqui e aqui.) .
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Olaré!

 


Eu também danço em Moçambique, ou julgam que é só o outro?
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Portugal está com um problema de saúde

 


«Em Janeiro, no debate com Jerónimo de Sousa, António Costa dizia não sentir confiança para afirmar que a chamada ‘geringonça’ fosse “uma solução estável”, pelo que a “solução segura e certa” seria uma maioria absoluta do PS. Oito meses depois, o Governo está de facto bastante estável, no sentido em que costumamos ouvir dizer que um paciente com diagnóstico reservado se encontra estável. Marta Temido demitiu-se mas, até ver, continua em funções — até porque, de acordo com os jornais, o primeiro-ministro quer que seja ela a levar ao Parlamento o diploma que regula a nova direcção do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Ou seja, a ministra está em morte política, mas ficará ligada à máquina do Estado durante mais umas semanas. Em defesa de António Costa, é preciso admitir que só a estabilidade de uma maioria absoluta permite que seja um ministro demissionário a tomar decisões importantes para o futuro.

Paradoxalmente, a saída da ministra veio revelar que há alguns sinais de que o estado da saúde é melhor do que parece. Quando a demissão foi noticiada, à uma e meia da manhã de terça-feira, percebemos que, apesar de tudo, nem tudo está mal no SNS. Quem se demite àquela hora da madrugada é porque tem urgência em fazê-lo, e acaba por ser reconfortante saber que ainda há quem consiga ser atendido de urgência por causa de questões de saúde em Portugal.

Outro aspecto animador é o facto de, há cerca de um ano, Marta Temido se ter tornado militante do PS. Enquanto independente, a ministra permaneceu três anos no cargo. Depois de se tornar militante, só aguentou um ano. O que significa que, ao contrário do que maldosamente se diz, o cartão do PS não garante um emprego no Estado.

Menos tranquilizador é o que a demissão revela sobre Portugal. A ministra foi capaz de enfrentar dois duros anos da maior pandemia dos últimos 100 anos com alguma desenvoltura. Mas alguns meses de confronto com o simples dia-a-dia do SNS português foram impossíveis de suportar. Pandemias comemos nós ao pequeno-almoço. Encontrar um modo de fazer o país funcionar sem sobressaltos é que é quase impossível. E o certo é que a ministra ficou desamparada: durante a pandemia os portugueses isolaram-se em casa para proteger o SNS; nos últimos tempos resolveram viver normalmente, o que em Portugal só pode dar mau resultado. Quando a directora-geral da Saúde e o Presidente da República pediram aos cidadãos que evitassem adoecer sabiam do que estavam a falar. Se não houver doentes, o SNS funciona na perfeição. A demissão da ministra, sozinha, não resolve nada. Enquanto os enfermos não puserem a mão na consciência e não se demitirem também, o problema persistirá.»

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1.9.22

Ele aí está

 

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Tema para semanas?

 

Chovem os títulos sobre uma jornalista que fez não sei que pergunta «fora do contexto» nem sei a quem, numa «flash interview» futebolística. Deve ter sido gravíssimo o conteúdo da dita pergunta, porque uns querem processo disciplinar, outros rasgam as vestes contra a ideia, ministro da Cultura incluído que já evoca a Constituição.

E já acabou a silly season!
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António Lobo Antunes

 


Parabéns, chega hoje aos 80.

E é anunciada esta excelente iniciativa. Nem todos os lisboetas vivem no centro da cidade, há bons transportes para a Av. Gomes Pereira e Benfica é «a terra» dos Lobo Antunes.

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Vencer medos, reaver utopias

 


«Estamos a viver um estio de duras securas e incêndios em vários campos, desde o climático ao da governação global, europeia e nacional. Este é, provavelmente, o ano em que mais sentimos a gravidade dos problemas climáticos e ambientais. Pensar nos desafios que se colocam às gerações jovens assusta. Todavia, existem meios tecnológicos e científicos que, investidos numa equilibrada relação metabólica Homem/Sociedade/Natureza, podem trazer algumas soluções.

É possível mudar a organização dos territórios e espaços de habitação, corrigir estilos de vida, utilizar riqueza existente para proteger povos e países em situações mais frágeis. Não podemos ficar tolhidos pelo medo.

Nas movimentações dos países e blocos que determinam as relações à escala global, os incendiários belicistas dominam como já não acontecia há muito tempo. E é grande a secura de ideias e de propostas para a construção de caminhos seguros. A imposição de uma visão dicotómica do Mundo e da necessidade de "guerras justas" - doutrina agora reforçada no nosso Ocidente - ajudam a bloquear soluções.

Na governação da União Europeia (UE) e dos países que a compõem, encontra-se o retrato que José Saramago fazia, em 1998, ao receber o Prémio Nobel: "Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os governos, seja porque não sabem, seja porque não podem, seja porque não lho permitem os que efetivamente governam, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder absolutamente não democrático reduziu a uma casca sem conteúdo o que ainda restava de ideal da democracia". Perante esta constatação, Saramago sugeria-nos assumirmos "o dever dos nossos deveres". O dever de não desistirmos das pequenas/grandes utopias e de nos responsabilizarmos como cidadão plenos.

O nosso Governo não faz tudo mal e está perante grandes problemas internos e externos. Mas, por vezes, parece ter uma atração pelo cair de maduro. Ao persistir em velhas políticas - de génese nacional ou europeia - e em mobilizar a Direita para as credibilizar em vez de forçar discussões de substância sobre novas soluções, desgasta-se. Deixa o campo aberto a polémicas estéreis. A Direita critica a obsessão do défice, não para que haja investimento onde ele é indispensável, mas sim para que o reforço momentâneo dos recursos do Estado desague nos mesmos de sempre. Para os trabalhadores e setores desprotegidos da população só tem o "programa de emergência social" - o velho assistencialismo caritativo.

Os problemas estruturais do país não são novos, nem exigem um elevado "grau de inovação e radicalidade". Exigem sim, do Governo, coerência e determinação para: i) pôr de lado o fundamentalismo orçamental (sem deixar de dar atenção ao défice) e garantir investimento; ii) abandonar o relacionamento doentio com empresários da pedinchice e das negociatas, substituindo as "ajudas" que lhes vem oferecendo por apoios escrutináveis e com contrapartidas; iii) ultrapassar contradições que manifesta sobre o papel determinante do Estado e das Administrações Públicas; iv) apostar na segurança no emprego e em melhorar os salários; v) contrariar a ação do presidente da República na sua errada postura de sabichão máximo de todos os assuntos, pois a cidadania e a democracia não dispensam a plena afirmação de interesses coletivos e a responsabilização das instituições de intermediação da sociedade.

Há pequenas utopias realizáveis. Lutando por elas venceremos medos e forçaremos alternativas.»

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31.8.22

Janelas

 


Uma janela em Barcelona.

Daqui.
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Mikhail Gorbatchov

 

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31.08.1945 - Sérgio Godinho


 

Sérgio Godinho faz hoje 77 anos. Compagnon de route de muitos de nós, mesmo a distância, já que viveu grande parte da sua vida no estrangeiro até 1974, faz parte de um grupo precioso que nos ajudou a usar a cantiga como arma antes do 25 de Abril e como grito de vitória e de esperança depois.

Difícil é a escolha, mas ficam aqui algumas das suas canções – em jeito de homenagem ao Sérgio e à nossa memória.









Com José Mário Branco, numa das canções desse extraordinário cd, de 2003, «O irmão do meio»:


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Usada e abandonada, mais uma vítima da ambição de Costa

 


«Durante a pandemia, o SNS demonstrou ser a única verdadeira resposta de saúde pública. Mas foi de tal forma posto à prova que todas as suas fragilidades vieram ao de cima. Já aqui expus o que toda a gente percebeu no início deste verão: que as urgências dependem, para necessidades permanentes, de prestadores externos que recebem mais do que os internos – um tarefeiro pode ganhar mais em 24 horas do que um médico num mês, o que é convite à irracionalidade. E que as empresas que fornecem estes serviços, muitas delas criadas por médicos saídos do SNS, tendem a falhar quando todo o sistema passa a depender delas. Que é impossível organizar escalas com trabalho externo especializado nestas dimensões.

É preciso dar autonomia para os hospitais contratarem e aumentar de forma permanente e muito substancial os médicos que escolham a exclusividade, para que não se torne mais atrativo abandonar o SNS. Mas isto custa dinheiro e implica contrariar a receita que tem vingado: não se resolve nada no SNS, tapa-se buracos fora. E é esta a política alternativa da maioria que tem espaço mediático. Deixar o SNS morrer porque reforça-lo (e à escola pública, e à segurança social) é “preconceito ideológico”.

A demissão de Marta Temido, num sistema que está a demonstrar brutais insuficiências, acaba por acontecer num caso em que ele até não falhou. Ninguém espera que não haja limite de vagas em UCI neonatal e a grávida que faleceu estava, de facto, a ser transferida para um outro hospital da zona, acompanhada por uma equipa clínica, seguindo o procedimento normal. O sistema funciona em rede. Falhas é quando a rede não pode responder. Não era o caso. É mentira o que disse Miguel Pinto Luz – a grávida foi admitida nas urgências do Santa Maria. As equipas estavam completas, havia vagas de neonatologia na área metropolitana, havia transporte especializado, os meios humanos e materiais para lidar com uma grávida em risco estavam disponíveis. Não faço ideia se tudo foi bem feito, mas nenhuma informação nos diz que não. Seja como for, no que dependia do sistema, tudo esteve preparado. E pelo sistema, e não por cada caso concreto, que a ministra responde.

Mas quem tem memória há de se lembrar dos nascimentos em ambulâncias que deixaram de ser notícia no dia em que um ministro contestado caiu. Se há área onde é fácil criar uma perceção é esta. Se há área onde a corporação tem acesso aos media é esta. Se há área onde se movem interesses poderosos e muito dinheiro é esta. Se ainda por cima for real a decadência dos serviços, então tudo fica mais fácil. A melhor forma de não ser notícia é não aborrecer nenhum interesse. Maria de Belém era perita nisso e, apesar da sua dependência umbilical (e posteriormente, como deputada e presidente da comissão parlamentar de saúde, financeira) a interesses privados, conseguiu deixar uma boa imagem que, não tivesse sido uma catastrófica candidata presidencial, perduraria até hoje.

Se há coisa que não se pode dizer sobre Marta Temido é que servia outros interesses, ao contrário de muitos dos que fora e dentro do PS, nas ordens e na imprensa, fizeram dela um alvo a abater e, nesse objetivo, foram mais eficazes do que a pandemia. O seu pecado, e é por causa dele que a sua demissão era inevitável, foi não ter aproveitado a força política que ganhou durante a pandemia – chegou a ser a ministra mais popular governo – para exigir meios e apoio para uma reforma difícil, mas urgente. A começar pelas carreiras médicas e de outros profissionais de saúde.

Marta Temido deixou-se inebriar pelo galanteio politicamente vazio de António Costa, que chegou a levá-la ao palco de um congresso do PS, promovendo-a a quase candidata a líder. E, talvez acreditado no estatuto de heroína da Covid (quando, de facto, resistiu ao que poucos dos seus críticos resistiriam), não fez o mais urgente: exigir, depois da brutal pressão da pandemia, apoios absolutamente excecionais para a recuperação de um sistema que já acumulara dificuldades.

Mas Costa não apoia ninguém por causa de políticas. Só por amizade, talvez. E mesmo assim... Marta Temido há de o ter percebido quando Fernando Medina disse que se o SNS está em crise não será por falta de dinheiro – afirmação que Costa corroborou recentemente. A porta da rua era serventia da casa e os agradecimentos de vários dirigentes do PS pelos serviços prestados, sem uma critica à falta de apoio dos últimos meses, são de um cinismo revoltante. Costa teve a decência de ser parco no elogio, apesar do que ainda há um ano dizia dela.

O substituto sabe com o que não pode contar – meios – e com o que terá em barda – agradecimentos. Sobreviverá se ceder sempre a quem tenha poder de pressão. Se não atrapalhar a modorra dos próximos quatro anos. Só que, como recordou uma fonte do governo ao Expresso, ainda antes da demissão, “foi Costa quem quis o novo estatuto como está, foi Costa quem disse há duas semanas que a solução não é pôr mais dinheiro na Saúde, é Costa quem não tem saído em defesa da sua ministra.” Foi Costa que criou condições para esta demissão.

Já fora o SNS que começara por alimentar as crises políticas em torno dos orçamentos de 2021 e 2022 – com o BE, nos dois, com o PCP, no segundo. Ambos avisaram que depois da Covid o sistema iria colapsar. A pressão dos comentadores fez o favor de acompanhar Costa na chantagem política, ignorando as causas. Mas o tempo deu razão aos dois partidos: de nada serve abrir vagas para mais médicos que inevitavelmente ficariam vazias. Era preciso mexer nas carreiras, o que custa dinheiro – que será poupado mais tarde, por evitar remendos. Só que abrir vagas que não se ocupam tem uma vantagem: a intenção de resolver o problema sai de graça.

Os que verdadeiramente querem defender o SNS – e não são seguramente as Belém e Adalbertos desta vida e ainda menos os bastonários que cumpriram o papel que sabemos durante a pandemia – iludem-se se esperam boas notícias. Marta Temido foi um cordeiro sacrificial e o isolamento para a queda seguiu o padrão habitual de Costa. A culpa da falta de rumo dentro de um governo hostil a que haja qualquer rumo é dela. Mas, agora, temo que venham os interesses de sempre – será muito interessante ver quem, no vazio da transição, conseguem colocar na Comissão Diretiva do SNS. Só a cedência a esses interesses compra a paz junto dos lóbis privado e corporativo mais fortes neste país. Aqueles a que a maioria da comunicação social responde, a que o bastonário responde, a que uma parte do PS responde. Como disse a CEO do Luz Saúde, este é o melhor negócio depois das armas. Os apetites são vorazes.

Depois das primeiras lutas – longe vai o governo que comprou a guerra dos contratos de associação dos colégios em nome da racionalidade do sistema e dos seus custos –, António Costa só quer poucas ondas. Se não se fizer aeroporto, se as carreiras médicas que segurem profissionais tiverem de esperar uma década, paciência. Estes quatro anos são para preparar outros voos. Os seus. O resto vai-se gerindo. Sem lealdades, como exigem os grandes voos. E até se perceber que os problemas que se acumulam em ministérios – os que ele ignora e os que ele piora – são responsabilidade sua, assim serão as coisas. Quando fica insuportável, manda-se ministro borda fora.»

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30.8.22

Bem enganados...

 

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Para termos uma ideia

 


Não admira pois que atraia pessoas que acreditam que a violência é uma prática aceitável. Não admira que transpire que um deputado e membro da direção foi agredido numa reunião; que é comum os membros do partido ameaçarem-se e insultarem-se. Não admira que um candidato autárquico tenha sido preso por disparar contra uma família estrangeira - um crime que foi descrito como tendo motivação xenófoba.

Mas não é só às personagens de aspeto patibular e modos de taberna que pululam no partido que a fórmula atrai; por mais que repugne e por mais que pareça impossível, está provado que funciona, ou não tivesse multiplicado votos e deputados, aqui como noutros países.»
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A demissão de uma ministra

 


Quando abri esta manhã o computador e soube do pedido de demissão da ministra da Saúde, a minha reacção foi a que se segue e ainda não mudou depois de tudo o que já ouvi.

Sem esquecer eventuais erros, efeitos de cansaço e muitos outros factores, creio que a ministra foi vítima da sua própria ingenuidade ao aceitar continuar no cargo em 2022, com maioria absoluta do PS. Porquê? Porque era já óbvia a vontade do governo, agora todo poderoso, de transformar o SERVIÇO NS num confuso SISTEMA NS. E por tudo o que ouvi e li nos últimos anos, afirmado por médicos totalmente identificados com o projecto Arnaut / Semedo, mesmo sem terem qualquer filiação partidária, Marta Temido tendia a alinhar com o dito projecto. Terá tentado o impossível, fecha agora a porta com toda a legitimidade.

A nomeação do seu sucessor talvez torne a situação mais clara.
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Quando o capitalismo falha

 


«Reformas, unificação e interconexões. Este era o objetivo da Europa para um mercado de eletricidade que se vem construindo desde a década de 1990. O último passo para que todos os países da União Europeia passassem a um mercado livre foi há oito anos.

Desde essa altura, são as empresas privadas (ou não) a ditar os preços da luz supervisionados pelos reguladores. O objetivo de tudo isso era a construção, posterior, de um mercado único europeu de eletricidade, mais adequado a uma combinação energética com foco em energias renováveis (principalmente, eólica e solar), favorecendo o consumidor com o fim dos monopólios estatais. Com a guerra da Ucrânia tudo mudou. Devido à dependência energética da Rússia, a Europa (e Portugal) está perante uma realidade em que os privados são "obrigados" a fazer disparar a fatura junto dos consumidores, fazendo com que o mercado livre ambicionado pela Europa se vire contra os seus concidadãos.

Não foi por acaso que a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, veio ontem afirmar que há que rever os princípios de mercado no setor da energia, apelando a "uma intervenção de emergência" já que a reforma que levou mais de duas décadas a construir não se aplica às atuais circunstâncias. Ou seja, deixar que o mercado funcione num produto tão essencial como a eletricidade afinal não é assim tão benéfico para os consumidores.

E qual é a solução imediata? Mudar as leis para que haja maior intervenção estatal na definição dos preços da energia? Sim, pode acontecer. Mas não nos livramos dos preços impostos pelo mercado internacional.

Cortar com o fornecimento russo tem um lado da moeda cruel, que é continuar a comprar energia a preços incomportáveis até a Europa conseguir fazer o seu abastecimento numa aposta a longo prazo nas energias renováveis. Ou reforçar a tão nefasta energia nuclear. Os ministros da Energia vão reunir-se numa cimeira extraordinária a 9 de setembro prontos a quebrar com as regras do mercado livre. Veremos o que sairá da torre de Babel.»

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29.8.22

Candeeiros

 


Lustre, Arte Nova, 1905.
Hector Guimard


Daqui.
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Onde isto já vai!

 


Não vale a pena esconder porque é grave. E houve reacções? Quando e de quem (para além de algumas indignações que vi no Twitter)?
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A menina do napalm

 


"Elle se cale sur le canapé de la galerie milanaise qui l’accueille, en ce mois de mai 2022, comme une star. Et elle sourit. Kim Phuc sourit toujours. De ce sourire radieux, qui réchauffe et apaise ses interlocuteurs. «Ne crois pas que la liberté fut un chemin facile. Ce n’est pas qu’une question de frontières, de regime politique ou de barbelés. C’est un travail, un long processus intérieur. Comment être libre si on est lesté par la haine ? Comment atteindre la paix si la colère te réveille, si l’amertume t’empoisonne?» Il lui a fallu du temps. Sa foi chrétienne l’a aidée. Et elle s’est enfin délestée du fardeau. Le chemin de la paix et de la liberté était à ce prix. Et c’est là son message."

(Le Monde, 28/29.08.2022)
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Acorde, senhor Presidente!

 


«Depois de umas longas férias que, no caso do governo e no que diz respeito a questões mais estruturais só terminam no próximo mês, é chegada a altura do país começar a ter conversas mais sérias. Não apenas sobre a urgência de um aumento dos apoios sociais às famílias mais carenciadas, mas também sobre o que vai ser preciso fazer para ajudar uma parte da classe média que também já não consegue suportar o aumento do custo de vida e não terá como pagar ao banco a casa que julga ser sua. Mas o que mais preocupa é a ideia de que este governo, que leva sempre mais tempo a tomar decisões do que a encontrar culpados exteriores para os seus falhanços, pode não saber aproveitar os quatro anos de maioria absoluta para mudar definitivamente esta economia onde nos arrastamos há décadas.

Não há soluções milagrosas e seguramente não é com mais liberalismo que se resolvem simultaneamente os problemas do crescimento económico e das profundas desigualdades sociais que se entranham numa sociedade onde até parece que existem castas. E onde só por milagre quem nasce pobre não morre pobre. É uma discussão gasta a conversa de mais Estado ou menos Estado, mas podemos começar por aí, se esse é o preço a pagar para mudar de vida. Desde que rapidamente toda a gente perceba que o mais e o menos só têm de ser substituídos por melhor Estado.

O economista Ricardo Reis alertou este fim de semana, no Expresso, para a necessidade de ter, pelo menos, uma "mera atitude de urgência que altere o rumo deprimente do nosso país". E isso não se vê. Verdade seja dita, não se vê no governo, mas também não se vê na oposição, mais interessada em surfar a onda mediática dos casos que importam e dos que não interessam para nada, nem sobrevivem até à próxima polémica. É Marcelo Rebelo de Sousa quem tem de começar a mudar de vida, para que todos nós possamos sonhar com o mesmo. Esqueça o PS e o PSD, o cola e o descola, e pense no país. Vamos passar muito mal e sair mais fracos desta crise, se não começarmos a mudar de vida. Os sinais estão todos aí, a começar na crise energética que nos convoca para uma eficiência que nunca tivemos, mas também para uma redução de consumo a que estamos obrigados.

A economia tem de estar ao serviço da sociedade e ela só nos serve se não deixar multidões para trás ou expulsar multidões deste país que é o nosso. O que mais me impressionou na crónica de Ricardo Reis foi a lembrança de que na última década saíram de Portugal quase um milhão de pessoas. Dez por cento dos portugueses abalaram, fugiram do país onde nasceram, porque esse país não lhes deu garantias de que era possível fazer vida aqui. Aconselho ao Presidente da República a leitura daquele texto para buscar inspiração para um mandato diferente. Um mandato que, no fim, permita recordá-lo como alguém que foi capaz de deixar de lado a intriga palaciana, de que tanto gosta, para se ocupar da liderança de um debate que é urgente. Precisamos de mudar de vida e se contarmos apenas com a vontade de quem nos governa isso não vai acontecer.»

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28.8.22

Feira do Livro?

 

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28.08.1963 – Luther King: «I have a dream»

 


Há 59 anos, quando Martin Luther King pronunciou este seu célebre discurso durante a «March on Washignton for Jobs and Freedom», não podia ter imaginado que o mundo estaria como está hoje. A história dos direitos adquiridos não será destruída, mas não está a ser nada fácil.



(No fim deste post, o texto do discurso na íntegra.)


A propósito:






«I have a dream» – Texto:


28.08.2011 – Marcelo na TVI

 


Muda-se os tempos, não necessariamente as vontades.
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O coração e os seus equívocos

 


«É fácil de perceber o entusiasmo e a curiosidade populares com o coração de D. Pedro IV. Como é fácil de entender a rapidez com que, em plena campanha eleitoral, Jair Bolsonaro se apropriou das comemorações do bicentenário da independência do Brasil e usou a trasladação ao serviço da sua própria retórica. Os erros históricos são o que são. A tentação de capitalizar politicamente todas as oportunidades, quando se avizinha uma eleição por agora dada como perdida, é humana e sem surpresas no atual chefe do Estado brasileiro.

A oposição não perdeu tempo para questionar as cerimónias. As dúvidas levantadas quanto aos gastos públicos serão as de mais simples resposta, já que as curtas palavras de Bolsonaro levantam questões mais sérias. Três frases apenas sobre as ligações entre os dois países e, a fechar, "Deus, pátria, família". Pelo meio, no dito e sobretudo no subentendido, um mar de desencontros e debates sobre o colonialismo, o retrocesso do Brasil e a visão que o presidente e candidato tem do país e da sua história.

A expressão "Deus, pátria, liberdade, família" foi proferida por Afonso Pena, escritor e político brasileiro, mas inspirou Oliveira Salazar nas principais linhas da governação. O lema serviu também o movimento de extrema-direita Ação Integralista Brasileira e tem sido por diversas vezes utilizado por Bolsonaro. Inclusivamente ao lado do presidente húngaro, cujo posicionamento é por demais conhecido.

A história pode ser torcida em muitas direções, consoante os propósitos que serve. Mas não se trata apenas de política ou do contexto eleitoral vivido no Brasil. As reações de muitos historiadores brasileiros trazem à tona problemas mal resolvidos entre os dois "países irmãos" e os equívocos que ainda povoam as relações sociais, intensificadas por sucessivas vagas migratórias.

A votação de outubro conta muito para o futuro do Brasil e do seu espaço de liberdade. Mas há, muito além das escolhas democráticas, tensões inequívocas com o que fomos e com o que fazemos do nosso passado. Com excessos, porque é perigoso retirar acontecimentos do seu momento concreto e lê-los com a lente da atualidade. Mas também com muitos detonadores de intolerância, xenofobia e discriminação que não podem deixar de ser tidos em conta, mesmo quando se parece abusar da crítica histórica. E esses detonadores interessam-nos e devem preocupar-nos a todos, de um lado ou de outro do Atlântico.»

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