«Percebi que me estava a acontecer quando os dias bons passaram a ser piores do que os dias maus. Percebi que não dava para fingir mais, quando já rigorosamente nada me tirava a vontade de chorar. Passei do não saber o que era ansiedade para ter ansiedade de manhã à noite. Quando percebi que toda a gente me irritava, percebi que o problema era eu. Sabia que o trabalho me estava a fazer mal, e no entanto, só no trabalho me sentia menos mal. Atraído pelo meu abismo, prometi a mim mesmo que não quebrava, e quebrei.
Tenho feito com as minhas palavras o que sempre fiz. Usá-las para salvar vidas. Aproveitar os meus sentimentos mais nobres, mais empáticos e mais recheados de compaixão com o eco dos que me rodeiam e escarrapachá-las no papel para que percebam a dimensão do desafio. Pode ser redundante para os que me são próximos, mas eu já vi muita merda. Sei o que me move. É das poucas coisas que eu sei. Já tinha estado próximo do burnout por duas vezes na minha vida, em 2011 e em 2019, no Paquistão e no Iémen, respectivamente. Eu sou duro de emoções, mas há ali um momento, ou momentos, em que a exaustão toma conta de nós. E quando sentimos que já não conseguimos desligar dos doentes, somos nós os doentes.
Por muito menos, encontrei o burnout. Por muito menos trabalho, por muito menos intensidade de trabalho, e por muito menos vidas que me morreram nas mãos do que vi noutras circunstâncias, encontrei o meu limite. Ainda estou a tentar perceber os porquês, e também por isso eu escrevo, para me ajudar a pensar e desconstruir o que me fez quebrar.
Acho que foi a responsabilidade, as dores físicas que são grande parte do problema, mas também a maldade alheia, a solidão, a intensidade das emoções dos que comigo trabalham, a exigência que pus em mim próprio e a representatividade de quem ninguém me pediu, mas pelos quais eu faço tudo. A vontade de não falhar, de ser correcto, de fazer a coisa certa, de estar à altura dos meus companheiros e do desafio asfixiou-me.
Acho que assumi demasiadas lutas. A luta pelos doentes, e a luta pela opinião pública. Sei que ambas são fulcrais. Sei que ambas se entrecruzam. Sei que uma guerra se ganha no coração das pessoas. E fui na minha ingenuidade tentar explicar o óbvio. Tentei sempre comunicar pela positiva, e acreditem que não é fácil resistir a não responder na mesma moeda aos que ao meu nome colaram insultos.
Eu sobrevivi emocionalmente à dureza de ter companheiros/amigos raptados pelo Estado Islâmico, já sobrevivi à tortura de olhar todos os dias para a cara de um rapaz que morreu por politiquices entre médicos, na República Centro-Africana. Chorei muitas vezes, mas sobrevivi emocionalmente. E ainda não consegui perceber muito bem porque é que desta vez não sobrevivi.
Aos que gritam “liberdade” e pelos doentes “não-covid”, eu convido-vos primeiro a deslocarem-se a um hospital central e a apresentarem alternativas. E se continuam a achar que o vírus não é assim tão mau e que mata só velhinhos já quase mortos, eu convido-vos a vir comigo e escolher quem é que deixamos morrer à porta do hospital? Até podemos fazer assim: eu tomo as decisões que tenho mais saberes para isso, mas vocês vão olhá-los nos olhos e dirigi-los para um espaço qualquer, talvez um barracão, onde os deixamos a morrer. Querem exercer a vossa “liberdade” para fazer isso? Se sim, força. Se não, não peçam aos médicos que toda a vida se bateram por fazer o melhor por todos os doentes, para o fazer. Não peçam.
Os problemas tomaram conta de mim. A raiva, a angústia de ver cada vez mais doentes a chegar, os profissionais cada vez mais exaustos, e a opinião pública cada vez mais decidida a falar do que não sabe. Quando me parece tão óbvio que “falar do que não se sabe” em tempos de crise cria confusão, entropia, hesitação e mais angústia. E angustiado fico eu por sentir que tenho uma palavra a dizer pelos doentes que vejo a morrer nas minhas mãos, pelas famílias que sinto a sofrer ao telefone, e pelos profissionais de saúde que estão a ser triturados. Querem liberdade? Então digam para onde mandamos para morrer os doentes que podem ser os vossos pais ou as vossas mães.
Sinto as coisas muito a peito, deixei-me levar pela luta. Fui sugado pela tristeza de ver a luta legítima pela insegurança económica de tantos, com a contaminação da extrema-direita e dos negacionistas, todos no mesmo palco. Como se fosse justo, colocar num campo de batalha os profissionais de saúde que estão a dar o litro para salvar vidas, e os legitimamente desesperados porque perderam emprego. São lutas diferentes. E só o rigor na luta pela pandemia nos permitirá respirar ar puro mais cedo. Está a acontecer em todo o mundo, não é culpa do nosso governo. Já sei que no final é tudo política, mas não tornem política a luta pela saúde pública, pelo amor da vossa saúde.
Há dias cheguei ao hospital “pronto” para trabalhar 24 horas nos Cuidados Intensivos a uma intensidade que nunca vimos antes, e uma colega ao olhar para as minhas olheiras perguntou-me se eu estava a sair de noite. Já não durmo direito há muito tempo, e quando me perguntam o que me faz feliz, dá-me vontade de chorar. Privei-me de quase tudo para estar apto para trabalhar. Aguentei as minhas dores até onde pude, pelos doentes, pela minha equipa, e por todos que fizeram de mim médico. E por esses, eu prometo que vou voltar mais forte, para quando outro quebrar eu poder dar um bocado mais de mim. É certo que vamos ser muitos a quebrar. Talvez os mais duros, talvez os a quem mais se pede, talvez os que mais sentem. Há muita gente nos hospitais a chorar e mais ainda a esconder as lágrimas.
Não há vencedores nesta luta em que estamos todos a perder. Há a luta contínua por um mal menor. Tenho-me alimentado de palavras incríveis de pessoas incríveis que sei que partilham dos ideais de quem quer o melhor para todos. Ao telefone, quando ouço os familiares a engolir as lágrimas e a dizer “Muito Obrigado”, fico eu com lágrimas de querer fazer melhor. “Eu só quero é que vocês tenham muita força!”, e eu prometo-lhes que sim, querendo acreditar que é verdade, mas agora sabendo que menti, porque não fui capaz.
No meu dia de anos, uma mãe deu-me a honra de conhecer o seu filho Francisco que já não está entre nós. Prometi-lhe o melhor de mim pela honra e inspiração que me concedeu. Sinto que estou a falhar ao mundo inteiro, menos à minha consciência. Nunca foram as palmas à janela que nos motivaram, é o saber que estamos a fazer a coisa certa, é saber que estamos do lado certo da luta. Fazer a coisa certa, será assim tão difícil de compreender?
Vou-me afastar do hospital para me proteger porque já não aguento mais, mas morro de angústia pelos doentes a quem podia ser útil, e pelos meus colegas por estar a sobrecarrega-los quando já estamos todos tão cansados. Infelizmente não tenho outra saída se não tomar conta de mim, para em breve poder voltar a tomar conta dos outros.
Prometo voltar.
(E voltei. Este texto foi escrito a 22 de Novembro após trabalhar 24 horas e me retirar para me tratar. Hoje, dia 21 de Dezembro, chego a casa após o meu regresso ao hospital com 24 horas de trabalho nos Cuidados Intensivos completas. Consegui, e estou muito feliz por voltar à luta. Queria dedicar o meu esforço aos meus companheiros de trabalho por me protegerem à custa da sua sobrecarga e da sua exaustão, e em nome deles e de todos que estão exaustos decido publicar estas palavras. Queria agradecer à minha fisioterapeuta e à minha psicóloga por terem pegado em mim pela mão, como se faz a uma criança para atravessar a rua, nesta que foi uma das travessias mais difíceis da minha vida, e claro à minha mãe que me ensinou que só vale a pena olhar para o mundo se for com o coração. Obrigado.)
Este é o maior desafio das nossas vidas. Abram os vossos corações.»
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