Miguel Sousa Tavares, no Expresso de 14.02.2015:
«Qualquer benefício obtido pelo Governo grego na situação actual de estrangulamento financeiro em que vive terá o efeito de uma bofetada em Passos Coelho e Paulo Portas. Pois que significará duas coisas: que não estamos condenados ao TINA (“There Is No Alternative”), e que vale mais não abdicar de ser um parceiro europeu, com voz própria e ainda que desprezada, do que ser um mero vassalo da vontade e interesses alemães, ajoelhando aos pés de Schäuble, como fez Vítor Gaspar, prometendo-lhe obediência eterna em troca de uma “atençãozinha” (tão ao nosso jeito e tradição).
Portas — que costumava ser sensível a estas coisas — sabe muito bem que a vitória do Syriza e a sua postura perante Bruxelas e a Alemanha têm um efeito de atracção e contágio virais: eis um pequeno país, arruinado e pobre, que, em vez de se manter como pedinte, estendendo a mão e agradecendo, reivindica a sua quota-parte de soberania nacional, que os tratados europeus garantem. Por muito que custe a Passos Coelho entender estes detalhes, o Syriza foi eleito pelos gregos, em eleições livres e contra todas as ameaças e avisos de Bruxelas, para inverter a política do Governo da Nova Democracia de Samaras — cuja gestão era a única que a troika consentia. Esse detalhe — a manifestação de soberania nacional de um povo — é tudo aquilo que a UE, capturada pela Alemanha e pelo interesse alemão, não suporta. Mas não foi o Syriza que conduziu a Grécia à ruína e sim a ND e o PASOK; não foi o Syriza que instituiu na Grécia um sistema corrupto e um Estado clientelar; não foi o Syriza que fez batota com os dinheiros europeus e que permitiu toda a espécie de falcatruas e de evasões fiscais; e não foi o Syriza que, depois de ter arruinado o país, chamou a troika e lhe pediu montes de dinheiro emprestado — o qual, na sua maior parte, foi usado para safar a banca alemã, que, por ganância criminosa, tinha apostado forte na ruína financeira da Grécia. Não houve nada de inocente na forma como Bruxelas e Berlim assistiram à falência do Estado grego. É preciso ver para lá da babugem das marés, para lá dos fóruns de Davos e dos Conselhos Europeus.
Com um horizonte de gerações de miséria pela frente para pagar a dívida, a Grécia votou no Syriza contra a troika. Esperar ou exigir que o Syriza, eleito com um mandato expresso para mudar de agulha, continuasse a “honrar” o que o Governo anterior acordara com a troika, era o mesmo que dizer que Bruxelas não reconhece qualquer efeito ou legitimidade à vontade manifestada pelos povos da União — excepto se forem suficientemente grandes para poderem causar estragos gerais. Para desconforto dos trogloditas da direita, o Governo do Syriza não propôs nada de radical, nada do género “não pagamos, ponto final”. Pelo contrário, fez propostas que, além de justas e mais do que justificadas, são exequíveis e de interesse comum — desde que o interesse comum seja a defesa da Europa, coisa que eu há muito duvido que seja o interesse estratégico alemão. Esta mensagem, já entendida por muita gente que se desabituara de pensar “out of the box”, não chegou ainda, nem chegará, à actual maioria. Não só porque no horizonte há eleições e não é altura para começar a reconhecer que tudo esteve errado, mas também porque eles foram formatados assim e nada é mais penoso à ignorância do que a dúvida.
Há duas maneiras de um país endividado conseguir condições para pagar a dívida: ou pelo crescimento económico, gerando receitas sobrantes para tal, ou pelo empobrecimento, canalizando todos os recursos (mais impostos, menos prestações sociais, privatizações a qualquer preço), para, antes de tudo mais, pagar aos credores. Este último caminho foi o que a Alemanha impôs como castigo aos países do Sul, foi o que a troika executou e foi o que o Governo português entusiasticamente subscreveu (Passos chegou a fazer o elogio do empobrecimento e até houve um secretário de Estado que fez a apologia da emigração). Aqui e na Grécia conhecemos os resultados trágicos desta ‘solução’. O pior de tudo ainda, aquilo que demonstra como a solução estava errada, é que depois de fazer a economia regredir a padrões de há anos ou décadas, nem a dívida parou de aumentar nem se alterou nada de substancial na estrutura da despesa pública, de modo a evitar que, tal como Portas prometeu, o Estado português nunca mais se veja em situação de falência. Tudo foi um tremendo erro económico, resultante de uma irresponsável arrogância ideológica. É por isso que nem Passos, nem Portas, nem Cavaco Silva (que lhes deu sempre uma indecente cobertura política) podem admitir que a Grécia obtenha o que quer que seja. Detesto os palavrões políticos, mas não encontro outra forma de classificar esta atitude senão como uma posição antipatriótica, ditada pela mais mesquinha das razões.»
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