«No final do milénio, uma nova China foi entrando devagarinho no nosso mundo, uma companhia simpática que trazia produtos baratos e lojas que vendiam tudo e mais alguma coisa. Íamos também sabendo da deslocalização das fábricas, que implicava algum desemprego, é certo, mas pouco visível num mundo de deslumbre consumista e de frenesim financeiro. Consultores e uma miríade de especialistas massajavam o nosso ego com as vantagens da globalização. Além de que o milagre económico, que retirava milhões de pessoas da pobreza para as instalar em modernas cidades, era a prova de que o capitalismo tinha vencido tudo e todos, mesmo o empedernido Império Maoista que tanto veneno havia lançado ao Ocidente desde o fim da II Guerra Mundial. Com a nova China, acontecia um verdadeiro milagre que inundava de felicidade os consumidores ocidentais.
O problema com os milagres é que dispensam explicações. E tornam as perguntas desnecessárias e inconvenientes provocações. O que nós víamos era que tudo vinha da China. Tudo. Mas qual era o problema? Estávamos numa economia global e a eficiência económica era uma equação partilhada entre Wall Street e Pequim. É verdade que o Ocidente deixou de ter fábricas e passou a viver com desemprego, mas tudo acontecia em nome do progresso. E é também verdade que os chineses tinham comprado as máquinas das fábricas ocidentais, que depois copiavam sem perder tempo ou dinheiro com os direitos industriais. O que era facto é que alimentavam as lojas das sociedades ocidentais com (quase) tudo aquilo de que precisávamos. Ninguém, mas mesmo ninguém, se preocupou em ver quão bizarro era ver a tecnologia tomar o caminho da ida quando na volta apenas vinham produtos baratos. O milagre era visto de tal forma que, antes da pandemia, nunca se questionou de onde vinham, por exemplo, os medicamentos. Assim era e ainda assim é. Os EUA e a Europa estão hoje no momento doloroso de despertar para a situação de dependência em que se encontram e procuram desesperadamente explicações sobre como foi possível terem perdido a liderança de um mundo que controlavam há alguns séculos. O milagre continua, sim, mas não é para todos. O sonho ocidental, esse, acabou.
A China não é propriamente um recém-chegado ao pináculo do mundo. O Império Chinês existia já no tempo do Império Romano com o qual rivalizava em dimensão e força, embora funcionando em metades do mundo que, na altura, não comunicavam entre si. Mais tarde, e durante muitos séculos, a Europa e o Médio Oriente habituaram-se aos produtos fabricados na China, primeiro trazidos por muçulmanos e venezianos e depois por portugueses, holandeses e ingleses. Ao contrário dos restantes povos, nunca o Grande Império do Meio ao longo da sua História (com excepção pontual para uma audácia marítima no séc. XV) se mostrou interessado em afirmar o seu poder fora de portas. A China bastava-se a si própria na sua magnificência e extensão.
Mas, em meados do séc. XIX, a expansão colonial imperial europeia, principalmente inglesa, destruiu-lhe a independência e deu à China o mesmo tratamento que tinha sido dado aos outros povos “descobertos” e colonizados por esse mundo fora. Russos e japoneses completaram o quadro de insultos e humilhações que fizeram cair o Império e que continuou na República. Porém, com o fim da II Guerra Mundial e a vitória dos nacionalistas (que se auto-intitulavam de comunistas), a grande nação perdida vai ressuscitar. Foram os nacionalistas, mesmo os espalhados pelo mundo, que se colocaram atrás da bandeira vermelha para expulsar de vez os estrangeiros.
A China de Mao e de Zhou Enlai apoia-se inicialmente da União Soviética, onde encontrava o motor ideológico para o renascimento e o apoio material e militar para existir. Mas esta convivência, mesmo entre irmãos fraternos, vai tornar-se impossível em 1960 e a cooperação com a URSS dá lugar à confrontação total. A cruzada marxista-leninista da Rússia pela libertação dos oprimidos no planeta vai ter a concorrência feroz da nova variante marxista-leninista-maoista. Mas, para além de exportar ideologia, a China não tinha vocação de conquista, pelo que se fechou e isolou do resto do mundo. As etapas de experimentação social interna que se seguiram, com o Grande Salto em Frente de 1958 a 1962 (40 milhões de mortos) e a Revolução Cultural de 1966 a 1976 (10% da população em presídios), destruíram muito do património material e cultural milenar e tornaram a China num gigante adormecido.
A abertura da China ao mundo vai ser tentada primeiro por De Gaulle em 1964. Um nacionalista que não temia afrontar o poder americano, De Gaulle quis posicionar a França como um árbitro europeu entre as superpotências. O inesperado reconhecimento pela França da República Popular da China, para além da afronta francesa aos seus parceiros ocidentais, não deu grandes resultados. A abertura irá começar apenas com Nixon, Kissinger, Mao e Zhou Enlai em 1972. A América tinha afinal o que mais nenhuma potência podia oferecer: tecnologia e recursos financeiros ilimitados. No entanto, vai ser preciso esperar pela morte de Mao e pela afirmação no poder de Deng Xiaoping para que o intercâmbio com o Ocidente e as transformações aconteçam a um ritmo que se vai tornar alucinante, mudando a China e revolucionando a economia mundial numa alteração estrutural que vai acabar por colocar hoje em questão a própria liderança global dos EUA.
O que se passou nestes 40 anos foi algo de extraordinário. Um país pobre e rural vai tornar-se (num pequeno momento histórico) numa potência económica com ambições de liderança global. A pressa em obter lucros por parte das empresas ocidentais lançou-as de peito aberto na partilha de meios e de tecnologia sem restrições de ordem estratégica. Aliás, o ambiente político foi por regra de grande amizade e colaboração, com a justificação moralizadora no Ocidente de que as melhorias económicas na China teriam como resultado inevitável a abertura da sociedade e a evolução para uma democracia solidária com os valores e os interesses do Ocidente. Só que, afinal, não foi isso que se passou.
As forças do desenvolvimento abriram efectivamente as portas para a expressão de valores humanistas, que foram entrando em confronto com a ortodoxia comunista. O grande choque vai ocorrer em Tiananmen em 1989, quando as potências Ocidentais se colocam ao lado dos que clamam por liberdade. A liderança comunista vê aí um momento de perigo fatal e vai ser o mesmo modernizador Deng Xiaoping que não terá dúvidas em fazer avançar a repressão. O grande reformador tinha afinal outras ideias para a China, que não passavam pela transformação democrática.
Vale a pena relembrar o que Deng explicava a um grupo de visitantes jugoslavos em Junho de 1987:
"Uma das grandes vantagens dos sistemas leninistas é que, quando algo está decidido e uma resolução foi tomada, ela pode ser concretizada imediatamente sem quaisquer restrições. Ao contrário dos americanos, a nossa eficiência é maior porque nós realizamos as coisas assim que estivermos convencidos. Essa é a nossa força e nós temos de manter essa vantagem.”
Com os tanques em Tiananmen e recuperado o controlo político e militar, Deng vai marcar a estratégia da China das décadas subsequentes, mantendo a ambição de crescimento e preservando a proximidade pacífica com o mundo capitalista. Para isso vai ser necessário fazer prova de humildade. A regra máxima de Deng, inspirada no património cultural chinês, que era “Esconde a tua força, espera o teu tempo, nunca tomes a liderança", vai ser repetida até à exaustão por sucessivos dirigentes e marcar profundamente o comportamento de todo um povo.
Esta atitude tranquilizadora para as relações com os parceiros ocidentais vai sendo progressivamente posta em causa por dirigentes chineses em afirmações de política estratégica bem mais interventivas. Da retenção e compostura no comportamento, vai-se passar a fazer apelo à necessidade de ‘concretizar coisas’, realizando acções que afirmem a identidade particular chinesa. Recentemente, apela-se mesmo à liderança de uma ‘Comunidade de Destino Comum’, à volta de um sistema de alianças controlado pela China e fortalecido com parcerias de investimento por ela financiadas, nomeadamente através da Iniciativa da Rota da Seda. Esta transfiguração interventiva, com tons cada vez mais agressivos, vai surpreender muitos políticos e parceiros ocidentais, que só podem concluir que os chineses mudaram.
Provavelmente os dirigentes marxistas chineses sempre foram fiéis à sua linha de pensamento, nacionalista e autoritária. E agora aperceberam-se de que os tempos mudaram, pois com a Grande Crise Financeira de 2008, que pôs o mundo capitalista de joelhos, com o “Brexit” a colocar em causa o futuro da Europa, com a eleição de Trump que tornou os EUA num espectáculo decadente e, por fim, com o caos da resposta à pandemia e com a humilhação americana no Afeganistão, é razoável concluir que o mundo ocidental não era, afinal, o que dizia ser. Não restará, portanto, aos chineses mais do que dar um passo em frente e reivindicar a liderança. Com os EUA corroídos por divisões e alucinações internas, com a Europa incapaz de se assumir como uma potência e com a ajuda de uma Rússia ressuscitada e atenta às oportunidades estratégicas, a China, que escondeu a sua força e esperou pelo seu tempo, toma agora a liderança. Esperando que o Ocidente caia como a União Soviética. Sem guerra. Só por inanição. Percepção que pode originar reacções dos EUA que acrescentem novos perigos ao risco já existente.
É o momento que estamos agora a viver.»
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