«Hoje, vemos Trump a adoptar o discurso de Putin contra a Ucrânia ("a Ucrânia foi a responsável pela invasão") e Zelensky ("um ditador que tem hoje 4% nas sondagens"). Quem defende o discurso de J.D. Vance em Munique – há pessoas a fazê-lo em Portugal e não são todas do Chega – a apoiar a extrema-direita e a afirmar que o inimigo da Europa não é a Rússia, mostra que o "inimigo" está mesmo dentro de nós. Falta pouco para vermos as pessoas que defendem Vance e Trump a defender Putin e a invasão da Ucrânia.»
«Esta é uma questão cada vez mais importante nos dias de hoje, em que as democracias conhecem uma crise profunda. Tem-se generalizado a utilização do termo “democracia liberal” para distinguir daquilo a que se chama “democracia iliberal”. Tenho a maior das dúvidas quanto a esta utilização, que tem o efeito perverso de permitir colocar sob o manto da “democracia” regimes que não são democracias. Das duas uma: ou há democracia ou não há, e há critérios para se saber a resposta.
Pode haver democracias em construção, democracias imperfeitas, democracias em crise, mas “democracias iliberais” não há. O corolário desta designação é a ideia de que aquilo que fundamentalmente caracteriza uma democracia são eleições, a expressão da vontade popular, o que não é verdade. Pode haver eleições livres e controladas, e existir legitimidade eleitoral, e não haver democracia, pela falta de outros elementos constitutivos do que é uma democracia, em particular dois: o primado da lei e o respeito pelos procedimentos que garantem os direitos, garantias e liberdades. Pode argumentar-se que, a partir da legitimidade eleitoral, em eleições uninominais ou parlamentares, um eleito ou eleitos legislem de forma a acabar com todos os procedimentos que vinham do passado e transformem a lei por forma a limitar direitos, liberdades e garantias, que é um pouco aquilo que fazem os candidatos a ditadores, nem que seja “por um dia”. Mas, como se passou com Hitler, isso acaba com a democracia desde o primeiro dia.
Ia escrever esta frase: “Pode parecer que é muito complicado, mas no essencial é simples”, mas na verdade não é simples. Ia escrever outra frase: “Toda a gente sabe quando está a perder liberdades”, mas também não é bem assim. Há alguma verdade em cada uma destas frases, que censurei a mim mesmo, mas há também muito que não corresponde à realidade, particularmente neste tempo de radicalização e polarização. Na verdade, a radicalização tem um forte efeito de tornar aparentemente aceitável muito do que está a pôr em causa as democracias, como sendo “natural”, particularmente porque vem dos “nossos” e atinge os “outros”. Muitas vezes, esta polarização tem como consequência que se sinta ou não a perda de liberdade conforme a “ecologia” em que se está, ou bem ou mal.
As palavras de J.D. Vance e Elon Musk sobre a falta de liberdade de expressão na Europa parecem-nos absurdas vindas de um país que, sob o poder de Trump e dos republicanos MAGA, proíbe livros nas bibliotecas, despede funcionários pelo uso de uma só palavra que se tornou maldita, como “equidade”, e impede uma agência noticiosa de ter acesso às conferências na Casa Branca porque se recusa a chamar Golfo da América ao Golfo do México. Para eles, nada disso é censura, mas impedir frases contra os imigrantes e insultos racistas nas redes sociais é. Também é censura – e, como se sabe, eu sou firme partidário da definição americana para a liberdade de expressão da Primeira Emenda da Constituição, e sei que, na base dessa Emenda, o que disse Pedro Pinto do Chega sobre a morte de Odair e o elogio da polícia em matá-lo como exemplo para outros “criminosos”, ou a condenação de Mário Machado por um insulto degradante a senhoras da esquerda radical não mereciam a pena de prisão –, mas a última coisa que aceito são as lições destes sicofantas de Trump.
Uma coisa são os impulsos censórios europeus do “politicamente correcto”, outra a dimensão e o valor da absurda comparação e da conclusão de Vance/Musk, que nada tem a ver com defesa da liberdade de expressão e é um ataque directo às democracias europeias, vindo de quem apoia a extrema-direita europeia e as suas pulsões autoritárias. O que eles dizem é que o discurso radical da extrema-direita é que deve servir para medir haver ou não liberdade de expressão.
Dei o exemplo da liberdade de expressão, mas podia dar muitos outros em que a crise da democracia é obviamente desejada por aqueles que a estão a matar, mas invisível para os que estão do seu lado. Estão a vingar-se e gostam. Por isso, a radicalização e a polarização fragilizam a resistência e o combate pela democracia.
Os EUA não são uma “democracia iliberal”, mas uma democracia em profunda crise que se transformará numa autocracia, nome benévolo para a ditadura, no momento em que Trump não aceite uma decisão judicial que o impeça, a ele e a Musk, de cometer ilegalidades, umas atrás das outras. Essa é a linha vermelha em que ele já está sentado, e que está ela própria já muito fragilizada pela politização do poder judicial, a começar pelo Supremo Tribunal, cujos juízes escolhidos por Trump mentiram nas audiências prévias dizendo que não iriam fazer aquilo que fizeram, por exemplo com o aborto. A degradação do poder judicial nos EUA significa que o último travão à ditadura está muito débil e, se não houver nada que ponha em causa Trump e os seus, então teremos a maior crise da democracia desde os anos 30 do século XX.
A razão é simples, o mal infecta, e infecta muito eficazmente.»
«Como explicar a cegueira, a cegueira dos europeus? Já não falo dos americanos. Durante anos, a Europa meteu a cabeça na areia. É uma receita para calar a ansiedade e deixar o tempo correr. Subitamente descobrimos que o mundo mudou e que sobre nós desabava a nova realidade.
A Europa está dilacerada por surtos populistas e pelos nacionalismos. A noção política de Ocidente está a dissipar-se. Depois da crise económica de 2008, a questão migratória mudou as dinâmicas políticas na Europa. A ascensão ao poder dos populistas italianos é um potente acelerador. (…) A simples existência de Trump é um incitamento aos populismos eurocépticos. Beppe Grillo, Matteo Salvini, Viktor Orbán ou Marine Le Pen exultaram com a sua vitória em 2016. Tinham razão. (…)
Acabou também o mundo pós-1989, o breve tempo em que o modelo da democracia liberal se expandia. Hoje, este modelo é desafiado por modelos autoritários, como os de Xi Jinping e Putin. Pelo mundo fora, cresce a lista dos autocratas. E o apetite por 'homens fortes', que garantam 'segurança', não é já estranho à Europa. É o modelo de Budapeste.»
«Ninguém sabe de quanto tempo disporá a Ucrânia até que a Rússia a engula por inteiro. Ninguém sabe se, em caso de ataque a um Estado-membro da NATO, os Estados Unidos intervirão em defesa do seu aliado. Estas são as duas grandes interrogações trazidas pela presidência Trump e suscitadas pelas palavras do vice-presidente Vance e do secretário Hegseth.
A exclusão da Europa das “negociações” impostas na Arábia Saudita serve um propósito: isolar a Ucrânia e fazê-la submeter-se às condições da paz determinadas por Putin e Trump, árbitros dos superiores interesses russos e americanos e ainda fazer “pagar” o apoio recebido nos anos Biden, facultando a empresas americanas o acesso aos recursos naturais da Ucrânia dilacerada, na parte que Putin não conseguiu abocanhar.
A Europa foi surpreendida pelo regresso à anarquia na ordem internacional, inaugurada por Putin e agora apadrinhada pelos Estados Unidos. Na ordem nova conta a força e a afirmação despudorada do interesse próprio, a correlação de forças é tudo, o direito nada.
Com umas forças armadas hiperdimensionadas e com uma economia subordinada ao esforço de guerra, a Rússia será grande beneficiária de qualquer trégua precária, que lhe dê o tempo de que precisa para acabar de vez com a Ucrânia, enquanto o Ocidente, cínico ou impotente, aguarda o regresso das “forças de paz” exclusivamente compostas por soldados europeus, provavelmente em caixas de pinho.
Quem só tem um martelo não pode senão pregar pregos e a Rússia é um martelo, um exército com um país acoplado, empobrecido, mas armado, que caminha para as consequências económicas da guerra ucraniana, que serão pesadas. A paz não serve a Putin que, com Lavrov, extrairá de Trump e dos outros cómicos o que bem lhe aprouver. A Europa, que pensa a 50 anos de distância, está a experimentar o diktat americano como em 1945, e sabe que, a prazo, o diktat será russo-americano, se não for exclusivamente russo, numa reorganização global das esferas de influência com a qual a América troque a Europa pela cumplicidade da Rússia noutras geografias.
A II Guerra Mundial foi vencida pela União Soviética, uma ditadura brutal, e pelos Estados Unidos, o arsenal da democracia. A ideia de que as democracias são pacíficas mas invencíveis é um puro mito. O eixo foi derrotado pela capacidade industrial americana e pela inesgotável capacidade de sacrifício do povo russo. A Inglaterra resistiu, graças a Churchill e ao canal da Mancha. Oitenta anos volvidos, a Europa, com o seu poderio económico equivalente a dez Rússias, sem o arsenal americano, vê-se devolvida à mundivisão anterior a Pearl Harbor, mais desarmada que nunca. Até ver, não conta para nada, como se de um protetorado se tratasse.
A Polónia, que vê a tragédia checoslovaca da crise dos sudetas a repetir-se no Donbas, sabe que as fronteiras são ficções sustentadas pela dissuasão, prontas a serem mercadejadas, em nome das minorias de conveniência, sejam elas germanófilas ou russófilas. A Polónia também conhece a ordem dos pratos no banquete das grandes potências. Habituada a não poder contar senão consigo própria, vai armar-se até aos dentes. A Alemanha fará igual, repetindo 1948, quando a necessidade ditou a sua entrada apressada no clube das democracias vencedoras.
O secretário da Defesa Hegseth comparou o art. 5º do tratado NATO ao seu artigo 3º, ou seja, equiparou os deveres de financiamento das forças armadas ao princípio de que um ataque a um membro constitui um ataque à aliança, baralhando propositadamente meios e fins. Postas assim as coisas, a NATO deixou de ser a garantia americana à Europa.
Na Europa central dorme-se mal porque o passado foi ontem e nem sequer passou. Por cá, como é próprio dos aposentados do palco da História, dormimos como justos.»
«Tudo começou com um telefonema entre Trump e Putin. Continuou com as declarações do secretário da Defesa na reunião da NATO e acabou com as do vice-presidente na Conferência de Munique. Há momentos em que a História acelera e dias que valem por décadas. Se for o que parece, este é um desses momentos históricos que se seguem ao fim das guerras e mudam a ordem mundial. Como o Tratado de Versalhes, em 1919, os de Ialta e Potsdam, em 1945, ou a queda do Muro de Berlim, em 1989.
Trump pôs fim à guerra na Ucrânia e tornou claro ao que vinha. Falou primeiro com a Rússia. E é entre a América e a Rússia que se definem os termos da paz. Só depois falou com a Ucrânia. Para a informar. E à Europa nem isso.
A Rússia conquista todos os seus objectivos de guerra. Primeiro, os objectivos explícitos: a Ucrânia não entra na NATO e não regressa às fronteiras pré-2014. Isto é, a Rússia ganha a Crimeia e o Donbass. Depois, os objectivos implícitos: a divisão do Ocidente, a fractura transatlântica e o enfraquecimento da Europa. Mais: de um só golpe, deixa de ser um Estado-pária e passa a ser um interlocutor credível e um dos grandes do mundo.
A Ucrânia, pelo contrário, é a grande perdedora: perde 20% do seu território e perde, sobretudo, a liberdade para decidir do seu destino: europeu e democrático. E quem sabe, se nas próximas eleições, sob coacção, não se torna uma segunda Bielorrússia?
Perdedora é, igualmente, a Europa. Menorizada, marginalizada e apagada das grandes questões internacionais, a começar pelas da sua própria segurança. Trump nunca escondeu a sua concepção transaccional da Aliança e desde o seu primeiro mandato que avisou que, se a Europa não pagasse, a América não a defenderia. Agora reafirmou tudo o que sempre disse e os europeus não quiseram ouvir. Que não se sente comprometido com o artigo 5.º e que a Europa, se quiser garantir a sua defesa colectiva, terá de o fazer sem a América. Isto é, a NATO como a conhecíamos deixou de existir.
Entre o abandono americano e a ameaça russa, a Europa está, agora, entregue a si própria. E se, como se antevê, o acordo de paz premiar o agressor e consolidar as suas conquistas territoriais, que melhor incentivo pode ter Putin para ir mais longe na Europa? O objectivo final como ele próprio o disse, nas condições que pôs à NATO antes da invasão, são as fronteiras do antigo Pacto de Varsóvia. E mesmo que o não consiga, militarmente, não parará a guerra híbrida para desestabilizar, dividir e enfraquecer a Europa.
Dito isto, sejamos claros: não foi a Rússia que ganhou a guerra, foram EUA que impuseram a derrota aos aliados e deram a vitória ao inimigo. Mas o que está em jogo vai muito para além da Ucrânia e a da segurança europeia. A mudança é a da própria ordem mundial.
Desde a Segunda Guerra que os EUA promoveram um sistema internacional assente no livre comércio, na democracia liberal e numa rede de instituições multilaterais que asseguraram a cooperação internacional, a segurança e a paz. Uma ordem internacional baseada em regras que lideram, no Ocidente, durante a Guerra Fria e, globalmente, no pós-Guerra Fria. Ora, é essa ordem internacional baseada em regras, já em erosão, que Trump rejeita e a que agora pôs termo. Porquê? Porque as regras e as instituições internacionais impõem limites à sua acção nacionalista e unilateral, transaccional e predadora. No plano económico, como no plano político.
Como é obvio, Trump quer precisamente o contrário: uma ordem internacional baseada nos negócios e na diplomacia coerciva que os sustenta: as tarifas; as sanções; e as ameaças. Uma ordem internacional em que a força vale mais que a lei, e o poder vale mais que a razão. Uma ordem internacional desenhada sobre esferas de influência e em que a expansão territorial das grandes potências é considerada legítima e um comportamento normal. A Rússia na Ucrânia, os EUA na Groenlândia, ou a China em Taiwan. É o regresso à velha rivalidade entre as grandes potências e ao choque dos imperialismos. E, nesse jogo, os EUA não me parece que vão sair vencedores. Nós, na Europa, infelizmente, sabemos como isso acaba. Por duas vezes acabou mal. O historiador francês, Jacques Bainville, dizia a propósito do Tratado de Versalhes, que se tratava de “fechar a ferida deixando a infecção no interior”. Ou muito me engano, ou vamos pelo mesmo caminho.
Caixa Arte Nova em ouro, diamante e esmalte, circular, tampa cravejada com painel em esmalte rodeado de diamantes, com retrato ao centro de jovem decorada com flores. Paris, 1898.
«Os Estados Unidos querem reservar para si metade da exploração dos recursos minerais ucranianos, partes das suas infra-estruturas de gás e petróleo, e a utilização dos seus portos. Foi este negócio, absolutamente predador (…), que o secretário do Tesouro americano Scott Benssent foi levar a Zelensky no mesmo dia em que Trump telefonava a Putin para "acabar" com a guerra na Ucrânia. (…)
A Europa não tirou as devidas lições do primeiro mandato de Trump. Não estava preparada para o segundo. Pensou que ainda tinha algum tempo. Em Munique, no fim-de-semana passado, descobriu em "choque e pavor" que já não tinha.
É esta realidade que permite compreender a imagem inconsequente e triste que deu para o exterior a reunião de emergência dos principais líderes europeus, convocada pelo Presidente Macron para o Eliseu na segunda-feira à tarde.»
«Em 1938, o primeiro-ministro britânico, Neville Chamberlain, voou até Munique para “oferecer” a Hitler o País dos Sudetas e, com ele, as defesas fronteiriças que retiraram qualquer possibilidade da Checoslováquia se defender da ameaça militar alemã. 87 anos depois, a cidade que é símbolo da capitulação das democracias europeias ouviu o vice-presidente norte-americano exigir a capitulação da Europa aos valores de Trump e da extrema-direita europeia. Não foi um momento menos inspirado. Haverá um antes e um depois desta declaração de “guerra” política.
Os EUA deixaram de ser um aliado. São, neste momento, na melhor das hipóteses, um parceiro hostil. E Trump não é um intervalo. O interregno foi Biden. Continuar a olhar para os EUA com o quadro de análise das últimas décadas seria um risco para a segurança da Europa.
Em menos de vinte minutos, J.D. Vance acusou a Europa de combater a liberdade de expressão por ter “medo do seu próprio povo”, indo contra “alguns dos seus valores fundamentais, partilhados pelos EUA”. Discursando numa cidade que está a pouco mais de mil quilómetros da Ucrânia, passou ao lado da ameaça russa ou da China, mas dissertou sobre a ameaça que representam os os “inimigos internos” da Europa que impedem partidos como a AfD de ascender ao poder. O cinismo do discurso, um dia depois de garantir, em Dachau, que “nunca mais” viveremos algo assim, foi sublinhado pelo chanceler alemão: “um compromisso pelo 'nunca mais' não é conciliável com o apoio à AfD”.
Mas talvez o mais irónico deste episódio tenha sido ouvir o vice de quem tentou um golpe para impedir a validação de um resultado eleitoral vir dar lições de respeito por processos eleitorais aos europeus. Vai para lá da total e absoluta falta de vergonha na cara.
Vance não foi a Munique como um atirador solitário. Não só Trump foi lesto a indicar que se tinha tratado de um discurso “brilhante”, como o contraste com o tratamento concedido a Putin é evidente. Nada como usar as palavras do próprio Trump, na rede social de que é proprietário, para descrever a sua longa chamada telefónica com Putin: “Conversámos sobre as forças das nossas respectivas nações e o grande benefício de trabalharmos juntos. (…) O Presidente Putin até usou o meu lema de campanha, 'senso comum’. Ambos acreditamos nisso. Concordámos em trabalhar juntos, de forma muito próxima, incluindo visitas às nações um do outro”. Nos antípodas do discurso de Vance, em Munique, sobre os seus supostos aliados.
Um dia antes, o presidente garantia que “há muitos anos que o Canadá é abusivo com os Estados Unidos.” É evidente a reverência para com as autocracias – mesmo a China tem sido menos penalizada com as ameaças de tarifas que a Europa e Canadá – e a tentativa de destabilização das principais democracias.
O resultado da conversa de Donald Trump com Vladimir Putin foi a calendarização rápida do processo de negociações entre os EUA e a Rússia, da qual a Ucrânia irá sendo informada. Tal como em Munique, em 1938, o país ameaçado fica de fora das salas onde se decidide o seu futuro. A Ucrânia e toda a Europa. O secretário da Defesa dos EUA, Pete Hegseth,indicou aos seus homólogos europeus que os EUA já não consideram a segurança da Europa uma prioridade. Mas a defesa da Europa e da Ucrânia terá de ser garantida pelos europeus nos moldes do acordo promovido pelos EUA com a Rússia sem a Europa e a Ucrânia.
Independentemente de a responsabilidade ser russa, a guerra da Ucrânia resultou de um caldo também cozinhado pelos EUA, desde 2014. E até são os EUA a assumir, com esta negociação, de que a viam como uma guerra por procuração, sendo os interesses da Ucrânia secundários. Apesar da ausência na negociação (receberam um questionário), vários líderes europeus já vieram dizer que enviarão tropas para a Ucrânia. Estamos aqui para os servir.
Trump limita-se a cumprir o que prometeu: nada fazer para defender um país europeu e a desvalorização sistemática da ameaça de Putin.
A Europa terá de tratar da sua defesa. Mas não tem de gastar 5% do PIB, assim como não gastam os EUA, presentes em todo o mundo, e a Rússia não os gastava antes da guerra. A pressão de Trump para os europeus saltarem rapidamente para estes valores tem um único objetivo, que nada tem a ver com a segurança da Europa: termos de nos fornecer na indústria norte-americana.
Como lembra o Bruno Cardoso Reis, Mark Ruthe, porta-voz obediente na defesa dos 5% do PIB em defesa, foi, enquanto primeiro-ministro dos Países Baixos, um dos mais vocais defensores dos cortes na despesa em defesa dos países intervencionados pela troika e na recusa sistemática da mutualização da dívida europeia, indispensável para este investimento. O secretário-geral da NATO não representa os interesses europeus. Representa os interesses do novo chefe.
A nova defesa da Europa dever ter três pressupostos.
Primeiro, essa defesa deve fazer-se fora do quadro da NATO. Se os EUA se querem dedicar ao Pacífico, não precisam de nós para isso. Se o Presidente e o Vice-Presidente dos EUA desprezam a ameaça russa e consideram que os inimigos “internos” são os governos democráticos da Europa, não há interesses comuns. As prioridades dos EUA já não são as nossas.
Segundo, o investimento em defesa não pode implicar a destruição do Estado Social, que corresponderia a criar o caldo para entregar a Europa à extrema-direita e, no fim, perder na mesma. O que nos obriga é a pôr fim à corrida fiscal para o fundo, que livra grandes empresas e os mais ricos de todo o esforço fiscal. A solidariedade entre países mais ou menos expostos ao perigo russo pode seguir uma lógica diferente à que vimos quando o Norte culpou “linha da frente” pela crise financeira. Mas exigem-se cautelas que então foram ignoradas, não aprofundando a divergência entre economias.
Terceiro, construir uma política de defesa coordenada é ter uma aliança semelhante à que hoje existe na NATO, não é, nunca teve de ser, a construção de um exército comum. A reunião de ontem, em que participaram países escolhidos da UE, explica porque um exército comum é uma impossibilidade. Esta é e continuará a ser uma Europa de nações. Mesmo quando a União funciona, é porque as nações mais fortes impõem a sua vontade. Como devíamos ter aprendido com o euro. Nestas circunstâncias, fazem-se alianças, não se dão passos em falso.
Antes de decidirmos que nos queremos armar, temos de saber para quê, com quem e de quem nos queremos defender. Tratar da defesa da Europa em conjunto com quem lhe declara guerra política de forma tão clara é um suicídio. Não se percebe quem são os inimigos estando equivocado quanto aos aliados.»
Miloš Forman, o cineasta nascido checo, depois também norte-americano, chegaria hoje aos 93. Teve uma infância complicada com o pai, judeu, preso pela Gestapo quando tinha apenas 8 anos e levado para Buchenwald onde veio a morrer em 1944, um ano depois de a mãe ter tido a mesma sorte em Auschwitz. Durante a invasão da Checoslováquia, em 1968, Miloš partiu para os Estados Unidos e em 1977 adquiriu a sua segunda nacionalidade.
«Benjamin Netanyahu e Vladimir Putin serão recompensados pela espera. Os dois aliados de Donald Trump terão mais do que aquilo que alguma vez esperaram conseguir.
O Presidente dos EUA vai conceder a ambos, respectivamente, a anexação de Gaza e da Cisjordânia e de uma grande parte do território da Ucrânia. Quer num caso, quer no outro, estamos a falar de uma falsa paz.
Donald Trump vai sacrificar o direito dos palestinianos a um Estado, a usufruírem de quaisquer direitos cívicos, ferindo de morte qualquer noção de direito internacional.
E irá sacrificar a luta ucraniana pela defesa da sua integridade, impor uma capitulação e aumentar a vulnerabilidade europeia. Benjamin Netanyahu e Vladimir Putin, ambos acusados de crimes de guerra, estão caucionados pela Casa Branca e não há nada que os possa travar a partir daqui.
Os países que compõem a União Europeia têm todas as razões para se sentirem traídos, para recearem futuras investidas russas e para duvidar da sacrossanta aliança transatlântica que formatou as democracias mundiais do pós-guerra.
O que J.D. Vance, Pete Hegseth e Keith Kellogg vieram dizer a Munique e a Bruxelas foi que o Tio Sam não quer nada connosco, como já estava explicito no anúncio do negócio que Trump e Putin se preparam para firmar, sem a participação europeia, à custa da Ucrânia.
Os emissários de Donald Trump nutrem pelo bloco europeu o mesmo desdém que reservam aos democratas e a todos com os quais não concordam, olhando para os líderes europeus como emanações de uma cultura progressista que abominam. Nenhum deles tem legitimidade ou ética para dar lições de moral sobre democracia.
J.D. Vance está muito preocupado com as eleições presidenciais romenas, porque a anulação dos resultados impediu a vitória de um candidato com públicas e assumidas paixões pelo III Reich, e até está empenhado na vitória da AfD na Alemanha, e não há partido mais simpatizante do ideário nazi do que este. A internacional da extrema-direita vai dando passos firmes.
É de um cinismo insuportável criticar os países europeus por uma suposta limitação da liberdade de expressão, quando o que o vice-presidente dos EUA defende é que a mentira manipuladora e o discurso de ódio mais hediondo possam circular sem limites, quando a Casa Branca atribui lugares nas suas conferências de imprensa a podcasters, youtubers ou tiktokers que farão de Donald Trump um santo, quando a Associated Press é expulsa da Sala Oval por continuar a referir-se ao golfo do México como tal, e não como golfo da América, quando é sugerido o despedimento de jornalistas que assinam textos mais críticos ou quando palavras transgénero, diversidade, desinformação, activismo, racismo ou género são banidas dos documentos oficiais ou de instituições financiadas pelo Estado. Para acabar de vez com o escrutínio, os EUA de hoje vivem uma época de purga, de censura e, talvez ainda pior, de autocensura.
O que mais preocupa J.D. Vance e companhia são as regras e a regulação do mercado europeu, que pode refrear a crescente influência das empresas tecnológicas na criação de uma atmosfera tóxica, porque esta administração só aceita as suas próprias regras e não hesita, até, em colocar em causa a independência do poder judicial.
Neste quadro, a UE não pode responder à afronta com resignação. Diplomacia é outras das palavras que não fazem parte do actual vocabulário de Washington. Os países europeus têm de se responsabilizar pela sua própria segurança. Mas isso não quer dizer que tenham de seguir os mandamentos de Mark Rutte e comparem armas à indústria de armamento norte-americana, sem garantias de segurança comuns. Para que serve a NATO, se os EUA a encararem apenas com uma central de compras para benefício próprio.
A UE é um importante mercado, ainda é uma referência democrática e pode ser influente e eficaz, se actuar como um bloco coeso, como já o demonstrou no passado. A Europa não deve deixar de ser a Europa, deve resistir à chantagem, responder à humilhação e fortalecer a sua autonomia.
Tem contra si as divisões internas, uma série de émulos de Trump à espera de chegar ao poder, com a ajuda de Elon Musk e dos algoritmos dos super-ricos de Silicon Valley, falta de liderança e uma irrelevância política que tem de combater. A reunião desta segunda-feira, em Paris, com a presença do Reino Unido, pode ter sido o primeiro despertar.
Num mundo cada vez mais fragmentado, a UE está entalada entre duas ameaças, a do imperialismo russo e a do imperialismo norte-americano. O que separa os europeus das presidências da Rússia e dos EUA é ideológica. Neste momento, quando há muito mais a unir Washington e Moscovo do que a unir Washington e Bruxelas, ou a UE se fortalece ou desaparece.»
Quem o conheceu nunca esquecerá a força que dele emanava, quem quiser saber como a Wikipédia o descreve pode consultá-la, mas vale mais ler a sua vida resumida pelo próprio na Introdução do livro Alípio de Freitas, Palavras de Amigos, Edições Pangeia, 2017. E ouvir a canção que Zeca Afonso lhe dedicou, claro.)
«Alípio de Freitas, mais propriamente Alípio Cristiano de Freitas.
Nasci em Bragança, Trás-os-Montes, nos contrafortes da Serra de Montesinho, em 1929. O meu pai era funcionário público dos CTT, a minha mãe, mulher de grandes qualidades (e grandes ambições) era apenas dona de casa. Frequentei a escola primária na Escola da Estacada, sendo meu primeiro mestre o Professor Pires. Fui logo matriculado na 2.ª classe, pois, quando cheguei à escola oficial, já sabia ler, escrever, e fazer contas.
Ensinou-me a minha mãe, embora quanto a ler, acho, até hoje, “sempre soube fazer". A oficina de ferreiro do Alfredo, na rua do Loreto, era em frente à minha casa. Como trabalhador, andarilho e militante frequentei outras escolas que não a da Estacada e do Abade Buíça (Vinhais) e tive outros professores: as oficinas de ferreiro e mecânica do Alfredo e do “seu” Manuel Brasileiro, e ainda "as lições particulares" do tio Baptista e do Tita. Todos tiveram grande importância naquilo que foi a minha vida, cada um a seu modo e a todos recordo, ainda hoje, com uma saudade que dói.
Na oficina do Alfredo eu passava todo o meu tempo disponível, vestindo uma bata de ganga e calçando umas botas grossas. Lá, eu fazia tudo o que a prudência do Alfredo permitia: puxava o fole da fornalha, deitava carvão, arrumava as ferramentas e via o que ele fazia e "como" o fazia e, mais do que tudo, ficava atento às conversas que as pessoas tinham com ele, quando chegavam para consertar ferramentas, ferrar carros de bois ou arados.
Tudo gente pobre, que trabalhava de sol a sol e, mesmo assim, vivia mal. Também ia para a oficina mecânica do "seu" Manuel Brasileiro. Também de bata de ganga e botas cardadas, "ajudava-o" ou ficava a ouvi-lo falar do Brasil, sobretudo do Rio de Janeiro.
Quando ele começava a falar do Brasil comigo, parava o que estava a fazer, limpava as mãos num trapo, puxava um cigarro Kentucky e falava de ficar comovido. Perguntei por que tinha voltado. Respondeu-me apenas: "P'ra me casar". Puxou uma fumada forte e disse-me: "Quando puderes, vai p'ra lá, deixa esta miséria, aqui. Faz como o teu tio Guilherme, que é rico, feliz, até já é doutor. nem que fosse p'ra morrer, eu queria voltar lá."
O tio Baptista era uma pessoa singular. Sei que, na sua juventude, ele e o meu avô paterno foram muito amigos. Aliás, foram-no sempre. "Menino da Roda" foi acolhido por um casal de camponeses remediados e sem filhos, que dele cuidaram e até lhe garantiram uma boa educação. Quando os seus padrinhos fecharam os olhos, o tio Baptista comprou uma carta de chamada para o Brasil, embarcou no rio Tuela, desceu o Douro e desembarcou em Santos, no Brasil.
Do patrício que lhe vendera a carta de chamada e lhe garantira emprego, nem sombras. Arranjou trabalho lá mesmo, começou a conhecer gente do porto de estiva e a interessar-se pelos seus problemas e, não muito tempo depois, já estava participando de movimentos operários.
Viveu as greves. Veio a repressão e, para não ser preso, tornou-se embarcadiço. Foi o tempo de conhecer o mundo. Até que um dia, em plena guerra civil espanhola, desembarcou em Espanha e juntou-se às forças republicanas.
No final da guerra, regressou a Portugal como se estivesse voltando do Brasil. É então que eu o conheço, na quinta do meu avô. Dele guardo muitas histórias e estórias, muitas, muitas, muitas. Mas agora quero apenas contar esta. Numa noite de céu estrelado, teria eu uns nove anos, ele perguntou-me: "Quantas constelações tu conheces?" Lá lhe fui repetindo o que já tinha aprendido na escola. Todavia, ele foi acrescentando outras e situando-as, como marinheiro que tinha sido. Por fim, disse-me: "Mas há uma que não vem nos livros, a mais importante de todas." Fiquei calado, à espera que ele ma revelasse. Por fim, disse: "É a constelação da Utopia. É uma constelação de que os livros não falam, nem os telescópios alcançam."
Continuei a ouvir em silêncio, e ele continuava: "Nessa constelação de muitas, muitas e sempre brilhantes estrelas é que está a memória de todas as pessoas que, desde sempre, e por toda a sua vida, lutaram pelo progresso da Humanidade." Depois de um demorado silêncio, perguntei-lhe: "E o senhor vai p'ra lá?". "Trabalho todos os dias para isso", disse-me.
O tio Baptista ficou por cá até depois do fim da II Guerra Mundial. Um dia, saiu de viajem e nunca mais voltou. Mas muitos viram a sua estrela.
Por exemplo, o Tita, que era camionista. Fazia a viajem entre Vinhais e o Porto, levando e trazendo mercadorias. Todo o mundo o achava um tipo esperto e informado, mas não fazia parte da roda dos aduladores dos "doutores" da vila.
Um dia, já eu estava no seminário, passando junto da porta de sua casa, pediu-me para entrar. Entrei, como já o fizera noutras vezes. Deu-me uns jornais desportivos e, depois, perguntou-me muito sério. "Tu és capaz de guardar segredo?". Acenei que sim com a cabeça. Então, ele tirou do bolso do casaco um envelope, abriu-o e tirou de lá um jornalzinho! "Está aqui, é para tu leres, só tu, mais ninguém e, depois de o teres lido, pegas-lhe fogo com um fósforo que ele arde num segundo. Lês e queimas e nem o padre a quem te confessas pode saber de nada." Foi assim que eu travei conhecimento com o ”Avante!”.
Mais tarde, quando ele soube que eu já lia bem francês, foi-me emprestando alguns escritos de Marx, até chegar ao “Manifesto Comunista”. Nunca me falou do PCP , ainda que eu depreendesse que ele deveria ter alguma ligação com ele. Nas minhas opções políticas e sociais, há também raízes nas sementes que ele foi deixando cair na minha alma. Depois que fui para o Brasil, perdi-lhe o rasto. Soube, mais tarde, que se tinha mudado para Setúbal, onde terminou a sua vida de lutador.
Estas foram algumas das portas que se foram abrindo para o meu entendimento do mundo e da vida. Uma outra dessas portas foi também a da biblioteca do seminário, onde encontrei tudo o que poderia e deveria ler, e tudo o que eu podia mas não deveria ler – os livros proibidos ou do índex. Os meus poderes eram, segundo o padre Campos que me nomeou seu ajudante, emprestar e recolher os livros emprestados aos padres professores e manter a biblioteca em ordem. Havia alguns livros, numa estante especial, que só podiam ser entregues e lidos com licença expressa do bispo. Foi aí que encontrei, entre muitos outros, o meu mestre Baruch Spinoza.
Quando tinha nove anos, o meu pai foi transferido para Vinhais e lá fomos nós atrás dele. Terminada a quarta classe, a única possibilidade que eu tinha de prosseguir estudos era entrar no Seminário. Ainda que os objectivos da minha família e os meus não coincidissem, sempre achei que a minha entrada para o seminário foi apesar de tudo providencial. Tudo o que foi a minha vida e o quê hoje sou, começou a se construir ali.
O seminário, apesar de tudo, abriu-me todas as portas por onde eu teria de passar para poder chegar feliz aos oitenta, ter travado todas as lutas que travei e continuar decidido a lutar para realizar a Utopia.
Fui professor, vigário de Rio de Onor e Guadramil, protegi os meus paroquianos camponeses de Deilão que se dedicavam ao contrabando; fui pároco de paróquias de subúrbio em São Luís do Maranhão; lecionei em universidades; organizei associações de moradores de bairros pobres, escolas (que denominei “De pé no chão, também se aprende a ler”); incentivei as organizações estudantis; cooperei na organização de associações de camponeses; fui militante e dirigente de Ligas Camponesas do Brasil; presidente da Liga de Favelados do Rio de Janeiro; fui agitador na Frente de Mobilização Popular; estive como convidado no Congresso Mundial da Paz, em 1962, em Moscovo, e viajei pela antiga URSS e outros países socialistas; relacionei-me com os grandes nomes da cultura e da política.
Em 1962 desliguei-me oficial e publicamente da Igreja Católica, por razões de natureza político-ideológica.
Em 1962, e depois em 1963, fui sequestrado e preso pelo IV Exército em Recife e em João Pessoa (Paraíba), respondi a dois Inquéritos Policiais Militares (IPM). Em 1964, após o golpe militar, na impossibilidade de permanecer no Brasil, exilei-me no México, partindo depois para Cuba. Passado algum tempo, regressei à América Latina, clandestinamente, e, finalmente, ao Brasil.
Aqui, participei da luta armada revolucionária contra a ditadura militar, e percorri grande parte do país, muitas, muitas vezes a pé. Conheci realidades que sedimentaram a minha convicção de contribuir para a construção de um mundo mais justo e solidário.
Fui preso em 1970, torturado, sobrevivi, andei de presídio em presídio, fui condenado em diversas Auditorias Militares, a cerca de 150 anos... Saí da prisão em 1979, como apátrida, pois tinham-me sido cassadas as cidadanias portuguesa e brasileira. Sem trabalho e sem direitos políticos, parti para Moçambique, onde estive integrado num projeto de apoio a organização de cooperativas do setor familiar da agricultura. Foi um tempo muito feliz. Gostei de voltar ao contacto com a terra e os camponeses e, acima de tudo, sentir-me útil, perceber que o meu trabalho e a minha experiência podiam melhorar a vida das pessoas.
Regressei a Portugal em finais de 1983. Em 1984 fui admitido na RTP como jornalista, atividade que exercia desde 1958, sob diversas condições e em distintos lugares e países.
Vivi a ilusão e a desilusão do Alentejo. Voltei para Lisboa para retomar o meu lugar no movimento social e político, e também para lecionar na Universidade Lusófona. Regressei também ao meu mundo, à participação nos Fóruns Sociais, ao MST, às Ligas Camponesas dos Pobres, e nem poderia ser de outro modo, pois, mais do que tudo, sou um andarilho e um agitador social dedicado às causas do povo. A minha pátria é a luta do povo. O meu objetivo de vida a construção da Utopia.»
«Sempre houve debates parlamentares mais ou menos acalorados em que alguns limites de civilidade foram ultrapassados. Sempre existiram apartes mais ou menos indecorosos nesses debates. Mas foram momentos excecionais, que resultaram do calor do confronto e que foram resolvidos, sem que isso afetasse o essencial da imagem da Assembleia da República.
As coisas mudaram com o Chega. Estamos perante um comportamento recorrente e premeditado de quem, não acreditado nas instituições democráticos, vê vantagem política em degradar a sua imagem. Porque é a degradação das instituições que permite propor a ordem salvífica e, chegado ao poder, é e a desinstitucionalização da política que permite impor a arbitrariedade. A informalidade com que Elon Musk aparece na Sala Oval não é uma questão de estilo. Corresponde ao programa político que permite a um milionário sem qualquer cargo no governo saltar sobre a lei para destruir as funções regulatórias do Estado por dentro. O abandalhamento é um instrumento de poder.
Se alguém tem dúvidas sobre a natureza estratégica da incivilidade do Chega, basta ouvir André Ventura, que defendeu que "o ambiente no parlamento é a expressão daquilo que os portugueses quiseram, é a fúria contra o sistema”. O Chega diz querer reproduzir nas instituições o clima social que diz existir no País, mas, na realidade, usa o parlamento para impor um determinado clima político e social ao país. Quer que o debate político baseado no insulto, na irracionalidade e na ausência de limites se espalhe no país a partir da autoridade institucional da Assembleia da República.
Esta forma de debater também funciona como intimidação. Não acontece apenas nas instituições do Estado. Repete-se nas televisões e nas redes, criando um clima pouco propício à participação cívica e política de cidadãos que se sintam desconfortáveis com o insulto e a difamação. Nivela a qualidade do debate (e, com ele, dos atores políticos) pelo Chega.
Os responsáveis pelos abusos dos deputados do Chega não são os próprios. Esses cumprem a sua função: desacreditar a democracia e as instituições. O responsável é o presidente da AR, que teve medo da impopularidade de impor limites.
José Pedro Aguiar-Branco tinha, perante o que aconteceu na legislatura anterior, o dever de, se não queria vir a limitar formalmente o espaço de manobra dos deputados, dar sinais de tolerância zero perante o abuso e o assédio. Fez exatamente o oposto. Pôs fim a qualquer freio, permitindo que os deputados do Chega, empoderados pelo crescimento eleitoral e a tolerância do novo presidente, testassem os limites.
O argumento do Presidente da Assembleia da República, usando quando houve a polémica da saudação nazi do deputado Miguel Arruda, é a negação da democracia liberal: “No próximo ato eleitoral, quem não se revir nos seus representantes deve penalizar, quem achar que deve continuar a ter o seu apoio deve reforçar ou votar naqueles que cumpriram o mandato tal como os portugueses acham e desejavam que fosse exercido". Ou seja, sendo eleitos, o único limite ao comportamento dos políticos é responder ao julgamento de quem lhes deu o voto.
Compreendo que Aguiar-Branco não tenha vontade de ser alvo da mesma onda de insultos, difamações e assédio que foram sofridos por Augusto Santos Silva e Ferro Rodrigues. Ainda mais difícil quando está num espaço político mais próximo do Chega e, por isso, mais sensível à sua pressão eleitoral. Mas o sinal que julga ter sido de liberdade foi de fraqueza. E o crescendo de insultos é inevitável sempre que o Chega, atravessado por escândalos judiciais e suspeitas de crime, precisa de lançar o fogo na pradaria.
A eleição de Aguiar-Branco resultou de um acordo com o PS depois do Chega lhe ter tirado o tapete. Isso deveria chegar para que o PSD aceitasse um pacto que impusesse regras perante todos os abusos a que assistimos na legislatura anterior.
Quanto mais funciona a autorregulação menos necessária é a regulação formal. Quando os próprios deputados, por formação cívica ou por temerem a punição dos eleitores, evitam um determinado tipo de comportamentos, cumprindo um conjunto de regras básicas não escritas, mais ligeiro pode ser o regulamento que limita a sua atividade. Quando as regras não escritas deixam de funcionar e a falta de educação até é premiada pelos eleitores, ele tem de ser mais apertado.
A Assembleia da República não tem de inventar a roda. Existem, por essa Europa fora, diversas formas de punição que, no essencial, não põem em causa a representação dos eleitores. Em casos de insulto, apelo à violência, difamação, tumulto no parlamento e outras perturbações do debate, é comum, em parlamentos como o alemão, o austríaco, o francês, o italiano, o britânico ou o europeu, para além de avisos e advertências, a suspensão dos trabalhos; a retirada a palavra ao deputado no momento ou em toda o debate ou sessão; exclusão de um deputado (não poderem estar na sala) até um mês (com perda de salário); exclusão de representação do parlamento em delegações externas; multas pecuniárias ou perda temporária de subsídio ou subvenção.
Perante a sucessão de espetáculos degradantes a que temos assistido, o regimento dos deputados tem de ser mais explicito nos limites e nas punições. É mais do que um imperativo interno ao funcionamento da Assembleia da República. É um imperativo democrático que transmite ao país uma ideia simples: na política, como na sociedade, há regras de convivência. A democracia é o espaço da liberdade e é o espaço dos seus limites. É nas ditaduras que reina a arbitrariedade onde o mais forte se consegue impor pelo medo.
Aguiar-Branco discorda. Acredita que o ideal é a pedagogia. Também acredito no poder pedagógico da experiência. Talvez sirva para o Presidente da Assembleia da República aprender como os inimigos da democracia se aproveitam da falta de coragem dos que a devem defender. Espero que aprenda depressa, que a democracia não aguenta muitas semanas como a última.»
«Sabemos o que aconteceu em Munique, em Setembro de 1938, numa cimeira que reuniu o chanceler alemão e os líderes do Reino Unido, da França e da Itália. O primeiro-ministro britânico e o seu homólogo francês acreditaram que podiam “apaziguar” Adolf Hitler e afastar a sombra da guerra que pairava sobre a Europa, entregando-lhe um pequeno país cujo nome tinham dificuldade em pronunciar. Quando Neville Chamberlain regressou a Londres, anunciou que tinha conseguido “a paz no nosso tempo”. Também sabemos o que Winston Churchill lhe respondeu: “Entre a desonra e a guerra, escolheste a desonra e vais ter a guerra.”
Hitler dizia que a Checoslováquia não existia, era um Estado artificial, “resultado de uma viragem histórica que nunca devia ter acontecido, criada pelos acordos da I Guerra Mundial”, como escreve o historiador Timothy Snyder. Acusava Praga de oprimir a minoria de língua alemã dos Sudetas. Sabemos que a profecia de Churchill se cumpriu menos de um ano depois.»
«Podemos continuar a fingir que não se passa nada, que o tempo será o melhor remédio. Podemos defender, até, que esse tempo terá necessariamente de ser o eleitoral, que pelas urnas se nasce, pelas urnas se morre. Podemos inclusivamente esperar que o julgamento político de um grupo de deputados que insultam uma colega de profissão cega pode tardar, mas será feito. Mas aí estaremos apenas a ignorar que o momento político atual não é uma fotocópia do passado. E que os atores são outros.
Na política como na vida, os comportamentos indecentes combatem-se com menos complacência. E o Parlamento não é uma taberna, por mais que os parlamentares do Chega, tão afoitos a criticar o sistema, estejam a contribuir para enlamear a imagem desse mesmo sistema. Chamar - como foi relatado por parlamentares de diferentes partidos - “aberração” a uma deputada cega de nascença é não apenas uma demonstração de completa desadequação para o cargo, como um insulto a todos os cidadãos portadores de uma deficiência.
Legislar a quente não é o ideal, mas a sucessão de casos desrespeitosos na Assembleia da República deve levar os partidos a refletir sobre a necessidade de mexer no Código de Conduta dos deputados. Há vários exemplos internacionais: desde limitar os tempos de intervenção, passando por sanções pecuniárias.
É verdade que a educação e a decência não carecem de enquadramento legal, mas a classe política tem de dar-se ao respeito para ser respeitada. Os portugueses elegem quem querem, mas em democracia não pode valer tudo em nome de uma suposta liberdade de expressão que mais não é do que libertinagem de exceção.»