4.1.25

Um banco

 


Banco de jardim, Arte Nova, relevo moldado com flores estilizadas verdes e azuis.
Thomas Minton (1766–1836) ou a sua fábrica.

Daqui.

Esquerda junta-se para tentar revogar alterações à lei dos solos

 


«Os 14 deputados do Bloco de Esquerda, PCP, Livre e PAN pediram esta quinta-feira a apreciação parlamentar do decreto-lei que possibilita a reclassificação de terrenos rústicos em urbanos, aprovado pelo Governo no final de Novembro. Como explicou a líder do BE, Mariana Mortágua, em conferência de imprensa, o objectivo dos partidos à esquerda do PS passa pela revogação da lei.

Os quatro partidos argumentam que a alteração legislativa não vem responder à crise habitacional em Portugal, como defendido pelo executivo. Pelo contrário: abre portas a um aumento drástico do preço do solo rústico transformado em urbano e contraria "todo o conhecimento acumulado sobre a possibilidade de redução de movimentos especulativos, sobre o impacto da artificialização do território, sobre o combate às alterações climáticas e mitigação dos seus efeitos e sobre a necessária transparência e controlo das iniciativas imobiliárias".


Indignos ou indignados

 


Percepções

 


«Se tivesse que escolher a palavra do ano, essa palavra seria “percepções”. No plural, em Portugal e na política. Contrariamente ao que é comum, a palavra é um pouco mais sofisticada, ou dito de outro modo, intelectual, do que é costume na linguagem muito pobre das redes sociais e na habitual desertificação do pensamento. No entanto, ela está conforme com um certo psicologismo vulgar que tem outras ramificações no discurso comum e que é muito bem retratado nos reality shows que se sucederam ao Big Brother, como a Casa dos Segredos. As conversas dos concorrentes e o comentário a essas conversas depois de cada “cena” por parte de um conjunto de homens e mulheres vindos do nosso pobre jetset, que aliás são completamente idênticos na cultura, vocabulário e “mundo”, deviam ser estudadas na academia como exemplo de como o país está mergulhado numa mistura de ficção emocional, coreografia afectiva e desertificação cultural, ou seja ignorância. É também por aqui que se chega às “percepções”, a uma identidade feita de sensações imediatas, de emoções sem pensamento, de ideias sobre a realidade feitas como se fossem “memes”, entre o engraçado e o convulsivo.

Era só uma questão de tempo até estas “percepções” chegarem ao Governo, cuja visão não é muito diferente das “influencers” e dos reality shows, a que se soma a competição política com o partido das “percepções” que é o Chega. É isto que vende o conselho profissional dos negociantes de “percepções”, ou seja das agências de comunicação.

Ao governar pelas “percepções” e não pela realidade, o Governo não faz outra coisa senão fortalecer as “percepções”, ou seja dar razão ao Chega. E como ninguém é mais eficaz nessa função do que o Chega, o cálculo oportunista não funciona, envenena o PSD sem tirar força ao Chega. Pelo tempo e o modo em que ocorreu, o espectáculo da Rua do Benformoso nada tem a ver com as rusgas anteriores em que a PSP usou do mesmo processo, que aliás é clássico em certas operações policiais. O modo foi o da “visibilidade”, presume-se que preparada pelo primeiro-ministro, que juntou dois dos temas fortes das “percepções”: a imigração e a criminalidade. O resultado foi acentuar a “percepção” de que existe uma correlação entre a criminalidade e a imigração. O tempo foi tudo isto ter acontecido quando há um partido poderoso – sim, o Chega é um partido poderoso – que aparece como proprietário destas “percepções”. Isso muda tudo, e não adianta os propagandistas do Governo virem com exemplos de rusgas semelhantes porque, tão simples como isso, não são semelhantes.

Voltando às “percepções”. Deve o Governo preocupar-se com as “percepções”? Certamente que sim, até porque estas “percepções” crescem por várias razões, a mais importante das quais é o crescimento do ressentimento social, cujas raízes têm muito a ver com o modo como na sociedade actual há uma desvalorização social, uma perda de dignidade, que começa no salário, na habitação, no emperrar do elevador social, a que se acrescenta a crise dos partidos do “arco da governação”. Por culpa deles, por culpa deles, por culpa deles, que continuam a cometer os mesmos erros, a promover no aparelho sem preocupação pela influência na sociedade, a permitir que gente corrupta ou gente indiferente à corrupção faça carreira. Depois, porque, desde os anos da troika, deu-se uma impregnação de meia dúzia de lugares comuns sobre a economia, o capitalismo, o papel do trabalho, que transformou partidos como o PSD e o PS em partidos cujos nomes não significam hoje quase nada.

E, por último, e muito mais importante do que se pensa, porque resulta de uma mistura do deslumbramento tecnológico com o degradar da circulação do saber – seja na comunicação social, seja no ensino, seja nos consumos de informação – e na redução do debate público à arregimentação e ao radicalismo das invectivas nas redes sociais, associado a muita preguiça socialmente instigada, que está a incrementar a ignorância agressiva. Nada é mais nocivo para a democracia do que os mecanismos dessa ignorância, que vive da falsidade das fake news e das teorias da conspiração, da redução da racionalidade à emotividade primária, e que gera o mundo das “percepções”.

Como é que se combate isto? Primeiro que tudo, combatendo, coisa que não há muita gente que faça com firmeza e fora da tendência espelhar para responder a invectivas com outras invectivas. Depois, percebendo que há muita asneira no mundo chamado woke que atinge também os fundamentos da democracia ao valorizar uma soma de identitarismos baseados no género, na orientação sexual, no policiamento da linguagem. Por fim, estudando, sim estudando, lendo mais Marx e Gramsci e olhando para o mundo dos telemóveis, das redes sociais, da sociabilidade pobre dos likes e perguntando-nos como é que meia dúzia de gente aos saltos no Tik-tok tem mais efeito numa escola do que professores e pais, muitas vezes iguais nos vícios que deviam combater. E por fim, lutar pela melhoria dos salários, por pôr mais dinheiro no bolso das pessoas, para que elas possam ser mais livres, ter maior sentimento de dignidade e ter meios para ultrapassar as “percepções” que as prendem mais do que libertam.»


3.1.25

«Godot não virá, talvez amanhã»

 


A lei dos solos

 


Peniche, 03.01.1960 – A Fuga

 


Álvaro Cunhal, Carlos Costa, Francisco Martins Rodrigues, Francisco Miguel, Guilherme da Costa Carvalho, Jaime Serra, Joaquim Gomes, José Carlos, Pedro Soares e Rogério de Carvalho fugiram da Fortaleza de Peniche, em 3 de Janeiro de 1960, numa iniciativa absolutamente espectacular.

«Mesmo que, por qualquer motivo, a fuga tivesse sido abortada na sua segunda fase – o trajecto para os esconderijos na zona de Lisboa -, nem por isso deixaria de poder ser considerada um enorme sucesso político para o PCP e um momento alto contra o regime de Salazar. Poucas fugas de carácter político se lhe podem comparar, mesmo incluindo as mais célebres fugas ocorridas durante a II Guerra Mundial. Na história do movimento comunista, é um acontecimento ímpar.»
José Pacheco Pereira, Álvaro Cunhal. Uma Biografia Política. O Prisioneiro (1949-1960), volume 3, p.724.

(Desenho de Margarida Tengarrinha, onde pode ser visto o percurso da fuga.)


...

O ciclo que se abre

 


«Não é a frase que vai ser mais comentada. Para esse fim, o Presidente deixou outras frases ou expressões, as do “bom senso” e da “cooperação estratégica”. Ou aquela do ser português é ser universal. Camões fica bem num discurso de Ano Novo. O Eça vai para o Panteão na próxima semana, mas não calha bem numa mensagem destas.

As citações de Eça sobre a pátria calhavam melhor junto à frase de que se vai falar pouco, a que mais preocupa Marcelo: os 50 anos do 25 de Abril foram “o fim de um ciclo”.

Não haverá ninguém mais preocupado do que o Presidente com isto. Nota-se de cada vez que fala. Sabe que o primeiro-ministro o ouve pouco e que o líder do PS quase não o ouve. E sabe que os dois não partilham dessa preocupação, no sentido em que acham que tudo se há de recompor, à maneira de um ou de outro.

Para eles, os 50 anos não foram o fim de nenhum ciclo. Estão seguros de que o ciclo é deles e que há de ser parecido a ciclos de outrora. No círculo do primeiro-ministro ainda se cita o exemplo de Cavaco Silva em 1985, que arrancou minoritário e marcou Portugal durante dez anos seguidos. No círculo de Pedro Nuno acredita-se que o momento de desforra vai chegar.

O problema não está nos protagonistas, mas em quem se desforra de quem. PS e PSD acham que se desforram um do outro, quando há muita gente propensa a desforrar-se dos dois. E muita mais indiferente a que essa desforra prossiga.

As circunstâncias são novas. Não se trata da tecla batida de a democracia estar em perigo, mas de uma coisa menos tangível: a democracia está a mudar, desde 2019, quando a fragmentação partidária irrompeu em São Bento. Em 2024 essa fragmentação passou a ser estrutural.

E agora, o que é uma maioria neste novo cenário? Que nível de compromisso ou colaboração existe entre quem pode somar maiorias? Como se faz uma reforma? Como se garante a estabilidade e a previsibilidade que o Presidente da República invocou na sua última mensagem?

Eram perguntas simples no ciclo que se fechou. São perguntas sem resposta no ciclo que se abre. O tal em que pode mesmo haver um PR que não é apoiado nem por PS nem por PSD. Não é fácil caminhar com rumo num terreno que se desconhece. O primeiro passo é reconhecer que o terreno é novo.»


Maçons e Gouveia de Melo

 


«Paulo Noguês, membro influente da Grande Loja Regular de Portugal (GLLP), anunciou, esta quinta-feira, que criou uma associação de apoio a Henrique Gouveia e Melo para a Presidência da República.

“Tem maçons e não maçons. Também há pessoas da Igreja, e do Opus Dei, que apoiam o almirante. A motivação é patriótica".»

Comentários para quê…

Notícias AQUI e AQUI.

2.1.25

Passagem de um velho ano

 


Cálice para passagem do ano 1904-1905, em prata e cobre. Edimburgo, Museu Victoria e Albert, Londres.
Projecto: Phoebe Anna Traquair Traquair; Execução: J.M. Talbot.

Daqui.

Fernando Pessoa

 


Migrantes, irritantes e o que mais houver

 


«Recapitule-se a nada formosa cena da Rua do Benformoso, lugar multicultural onde a maioria da população portuguesa nunca pôs os pés. Há lugares melhores, e sobretudo há vidas melhores do que as daquela gente. Existe uma razão para mandar os revistados voltarem a cara para a parede. É impossível revistar uma pessoa e de um modo geral humilhá-la e tratá-la com autoridade olhando-a nos olhos. Olhar uma pessoa nos olhos, mesmo essa classe de subpessoas a que chamamos imigrantes, ou migrantes na terminologia neutra, implica reconhecer uma identidade, racial ou outra, e uma personalidade.

Ora quando se olha um cavalo nos olhos torna-se difícil chicoteá-lo e pô-lo a fazer piruetas, o olho do cavalo é um poço negro de ternura e sensibilidade, de inteligência, e com as pessoas corre-se esse risco de humanização da vítima ou da entidade que queremos submeter. Sobretudo pessoas de pele escura e traços alienígenas, falando línguas que desconhecemos e que para nós são todas iguais, com nomes que desconhecemos e não queremos conhecer e que servem apenas para isso, servir. Servir-nos.»


Um pouco mais de azul (21)

 




Hélder Rosalino e os austeritários pouco austeros

 


«Parece ter havido algum “delay” no escrutínio ao novo poder. Oito anos de PS criaram a ideia que era o PS, e não o poder, que tinha de ser escrutinado. E, no entanto, assistimos a um rapidíssimo assalto ao Estado de um PSD faminto de tão longo jejum. Mesmo o CDS, morto e ainda não enterrado, mantém intacto o seu voraz apetite. De tal forma que uma vereadora de Lisboa, de 22 anos, que nem sequer tinha direito ao lugar, conseguiu nomear para jurista uma jota que não é jurista.

Um bom exemplo do escrutínio pretérito foi o caso do CCB. Uma dirigente a que quase todo o setor deixa rasgados elogios e que não tinha ligações a qualquer partido foi exonerada para dar lugar a um ex-secretário de Estado de Passos Coelho que, ao contrário de Francisca Carneiro, não tem qualquer currículo na gestão de instituições ligadas às artes performativas. E esta substituição foi feita em nome do fim “do compadrio, dos lóbis e das cunhas”. Dedicaram-se semanas ao passado da ex-presidente do CCB, ignorando a cunha política que se tinha à frente.

Talvez seja normal. Aconteceu no fim do cavaquismo. O cansaço com longos mandatos num país onde o Estado é demasiado fraco para resistir aos assaltos partidários leva a uma certa benevolência com o novo poder. Aquilo a que chamamos “estado de graça”. Seria, no entanto, interessante fazer as contas à quantidade de governantes do passismo colocados em lugares não políticos, no último ano. A urgência das exonerações revela um governo com pouca segurança na sua durabilidade e um PSD “cheio de vontade de ir ao pote”, para me socorrer de uma expressão de Passos Coelho. Não deixa de ser impressionante que um partido que, neste século, só teve sete anos no poder, tenha uma clientela tão cimentada.

Não me dedicaria a este tema, não fosse a hipocrisia do discurso que acompanha cada nova captura do Estado. Se a nomeação de Nuno Vassallo e Silva foi um exemplo de descaramento sonso, o debate sobre o salário de Hélder Rosalino como secretário-geral do governo, com o executivo a culpar o Banco de Portugal pela despesa que o recuo vai significar para o Estado, vai para lá disso. Por ter ido para além disso e começar a haver um pouco de escrutínio, Rosalino foi obrigado a recuar, demonstrando que quando a comunicação social faz o seu trabalho o abuso é travado.

A nomeação de um ex-secretário de Estado para secretário-geral do governo não me chocaria. É normal que o patrão confie na “governanta”. Mais difícil seria aceitar que Hélder Rosalino fosse ganhar mais do que o primeiro-ministro ou do que o Presidente da República. A sensação que passa é que só nos incomodam os salários dos que, através do voto, podemos contratar ou despedir.

Quando, em 2004, Manuela Ferreira Leite nomeou Paulo Macedo para diretor-geral de Impostos, com um salário muito acima do estipulado (por manter o de origem, no BCP), defendi o princípio, apesar de criticar o modo. Era um ponto de vista pragmático: quando se escolhe quem recolhe o dinheiro, o barato sai muitíssimo caro. O tempo deu razão a Ferreira Leite e a eficácia de Macedo mediu-se em resultados. Não era, aliás, o primeiro caso. Mas sempre se levantaram dúvidas quanto à legalidade. E o Estado deve ter clareza nos procedimentos. A lei deve garantir que o pragmatismo não serve para a arbitrariedade.

Como é sabido, os salários dos bancos centrais estão alinhados com os europeus, criando ilhas de privilégio para os que passam o tempo a dar lições de finanças públicas modestas e regradas. E Rosalino ganha 15 mil euros no Banco de Portugal. Para pagar este salário ao ex-secretário de Estado, o governo fez uma lei à medida. Dizia a lei que, para o lugar, podia-se receber os 4884 euros (mais 25% em despesas de representação) ou, em alternativa, o salário de origem, desde que não excedesse, “em caso algum”, o vencimento base do primeiro-ministro. Na véspera da nomeação, o governo mudou a lei para que o salário de Hélder Rosalino pudesse ultrapassar o do primeiro-ministro. E isso, sim, é inaceitável.

Como o banco central não pode financiar governos, o salário seria integralmente pago pelo Estado. O que disse o governo, em sua defesa? Que não iria gastar um cêntimo a mais, porque ele deixaria de ganhar aqueles 15 mil euros do banco central. Até iria poupar: Rosalino continuaria a receber o que recebia, e não se gastariam os seis mil euros com outro secretário-geral. E assim começamos a perceber porque os erros nas contas são recorrentes neste governo.

Primeiro, o Banco de Portugal tem orçamento próprio. Por isso, sim, o Estado iria gastar 15 mil euros a mais dos contribuintes. Mais precisamente, mais nove mil euros do que se contratasse outra pessoa. Depois, mesmo que as contas fossem as mesmas, Hélder Rosalino abandonaria o lugar no Banco de Portugal, o que quereria dizer que alguma função deixaria de ser cumprida e outro teria de ir para o seu lugar. Aparentemente, assim não seria, o que nos leva a outra questão, mais relevante para Centeno do que para Montenegro: aparentemente, há, no banco central, quem receba 15 mil euros para aquecer o lugar. Se a saída de Hélder Rosalino não obrigaria a uma substituição, os 15 mil euros pagavam o quê? É esta instituição que nos quer dar lições de contenção orçamental?

Como recordou Ana Sá Lopes, a função de Hélder Rosalino no governo de Pedro Passos Coelho foi tratar da razia nos salários e direitos dos trabalhadores do Estado. Foi o autor, em 2013, da tentativa de alteração da fórmula de cálculo das pensões da Função Pública com efeito retroativo, com um corte médio de 10% em 370 mil pensões de aposentação e 77 mil pensões de sobrevivência. A proposta foi chumbada pelo Tribunal Constitucional. Não afetaria o próprio, como é evidente.

Esta, mais do que outra, é a lição a tirar desta nomeação abortada: os defensores da austeridade sabem pôr-se ao fresco. Depois de tudo isto, quando disserem aos trabalhadores do Estado e aos pensionistas que o orçamento não aguenta as suas reivindicações, só têm de recordar este episódio: “ai aguenta, aguenta!”»


1.1.25

Um vaso original

 


Vaso de forma cilíndrica acentuada com decoração floral aplicada. Final do século XIX.
Moore Bros Company.

Daqui.

Mia Couto

 


Chico e Ano Novo

 



Em cada 1 de Janeiro

 


No primeiro dia do ano, era por volta do meio dia que abríamos o rádio para não perdermos a pérola do ano que 𝐀𝐦é𝐫𝐢𝐜𝐨 𝐓𝐨𝐦á𝐬 nos oferecia. Há mais, mas fica aqui esta.

Outra: «Decorreu célere, como os que o precederam, o ano que acabou de sumir-se na voragem do tempo. Outro o substituiu, para uma vida igualmente efémera. Nesta mutação constante, afigura-se haver agora um fenómeno de visível incongruência, pois, quando tudo se processa a ritmo que se acelera constantemente, pareceria lógico que de tal circunstância resultasse um aparente alongamento no tempo e não precisamente o inverso. Se sempre o presente, mal o é, se torna logo em passado, nunca, como nos nossos dias, tão evidente verdade pareceu mais evidente.» (01.01.1966)


António Guterres - Mensagem de Ano Novo

 



Ao longo de 2024, tem sido difícil encontrar esperança.

As guerras estão causando enorme dor, sofrimento e deslocamento.

As desigualdades e divisões são abundantes — alimentando tensões e desconfiança.

E hoje posso relatar oficialmente que acabamos de suportar uma década de calor mortal.

Os dez anos mais quentes registrados aconteceram nos últimos 10 anos, incluindo 2024.

Este é o colapso climático — em tempo real.

Devemos sair desta estrada para a ruína — e não temos tempo a perder.

Em 2025, os países devem colocar o mundo em um caminho mais seguro, reduzindo drasticamente as emissões e apoiando a transição para um futuro renovável.

É essencial — e é possível.

Mesmo no dias mais sombrios, vi a esperança impulsionar a mudança.

Vejo esperança em ativistas — jovens e velhos — levantando suas vozes pelo progresso.

Vejo esperança nos heróis humanitários superando enormes obstáculos para apoiar as pessoas mais vulneráveis.

Vejo esperança nos países em desenvolvimento lutando por justiça financeira e climática.

Vejo esperança nos cientistas e inovadores que abrem novos caminhos para a humanidade.

E vi esperança em setembro, quando os líderes mundiais se reuniram para adotar o Pacto para o Futuro.

O Pacto é um novo impulso para construir a paz por meio do desarmamento e da prevenção.

Para reformar o sistema financeiro global para que ele apoie e represente todos os países.

Para pressionar por mais oportunidades para mulheres e jovens.

Para construir barreiras para que as tecnologias coloquem as pessoas acima dos lucros e os direitos acima dos algoritmos descontrolados.

E sempre, para manter os valores e princípios consagrados pelos direitos humanos, pelo direito internacional e pela Carta das Nações Unidas.

Não há garantias para o que está por vir em 2025.

Mas prometo ficar ao lado de todos aqueles que estão trabalhando para construir um futuro mais pacífico, igualitário, estável e saudável para todas as pessoas.

Juntos, podemos fazer 2025 um novo começo.

Não como um mundo dividido.

Mas como nações unidas.

31.12.24

28 anos passam depressa

 


Optimismo

 


31.12.1968 – Uma vigília contra a Guerra Colonial

 

(Cabeçalho da convocatória para a Vigília)


Em 31 de Dezembro de 1968, cerca de cento e cinquenta católicos entraram na igreja de S. Domingos, em Lisboa, e nela permaneceram toda a noite, naquela que terá sido a primeira afirmação colectiva de católicos contra a Guerra Colonial, numa actividade formalmente «disciplinada». Com efeito, o papa Paulo VI decretara, em 8 de Dezembro, que o primeiro dia de cada ano civil passasse a ser comemorado pela Igreja como Dia Mundial pela Paz e, alguns dias depois, os bispos portugueses tinham seguido o apelo do papa em nota pastoral colectiva. 

Assim sendo, nada melhor do que tirar partido de uma oportunidade única: depois da missa presidida pelo cardeal Cerejeira, quatro delegados do numeroso grupo de participantes comunicaram-lhe que ficariam na igreja, explicando-lhe, resumidamente, o que pretendiam com a vigília: 

«1º – Tomar consciência de que a comunidade cristã portuguesa não pode celebrar um “dia da paz” desconhecendo, camuflando ou silenciando a guerra em que estamos envolvidos nos territórios de África. 
2º – Exprimir a nossa angústia e preocupação de cristãos frente a um tabu que se criou na sociedade portuguesa, que inibe as pessoas de se pronunciarem livremente sobre a guerra nos territórios de África.
3º – Assumir publicamente, como cristãos, um compromisso de procura efectiva da Paz frente à guerra de África.» 

Entregaram-lhe também um longo comunicado que tinha sido distribuído aos participantes, no qual, entre muitos outros aspectos, era sublinhado o facto de a nota pastoral dos bispos portugueses, acima referida, tomar expressamente partido pelas posições do governo que estavam na origem da própria guerra, ao falar de «povos ultramarinos que integram a Nação Portuguesa». 

Apesar de algumas objecções, o cardeal não se opôs a que permanecessem na igreja, ressalvando «a necessidade de uma atitude de aceitação da pluralidade de posições». Pluralidade não houve nenhuma: até às 5:30, foram discutidos todos os temas previstos e conhecidos vários testemunhos, orais ou escritos, sobre situações de guerra na Guiné, Angola e Moçambique. 

Hoje tudo isto parece trivial, mas estava então bem longe de o ser. Aliás, seguiu-se uma guerra de comunicados entre Cerejeira e os participantes na vigília, que seria fastidioso analisar aqui. Mas vale a pena referir que, com data de 8 de Janeiro, uma nota do Patriarcado denunciou «o carácter tendencioso da reunião», terminando com um parágrafo suficientemente esclarecedor para dispensar comentários: 

«Manifestações como esta que acabam por causar grave prejuízo à causa da Igreja e da verdadeira Paz, pelo clima de confusão, indisciplina e revolta que alimentam, são condenáveis; e é de lamentar que apareçam comprometidos com elas alguns membros do clero que, por vocação e missão deveriam ser, não os contestadores da palavra dos seus Bispos, mas os seus leais transmissores». 

A PIDE esteve presente (há disso notícia em processo na Torre do Tombo), mas não houve qualquer intervenção policial. Alguns jornais (Capital e Diário Popular) noticiaram o evento, mas sem se referirem ao tema da Guerra Colonial – terão provavelmente tentado sem que a censura deixasse passar… A imprensa estrangeira, nomeadamente algumas revistas e jornais franceses, deram grande relevo ao acontecimento. E foi forte a repercussão nos meios católicos. 

Para quem esteve presente em S. Domingos, como foi o meu caso, essa noite ficará para sempre ligada à Cantata da Paz, hoje tão conhecida, mas que poucos identificam com a sua origem. Com versos propositadamente escritos para essa noite por Sophia de Mello Breyner, e com música de Francisco Fernandes, foi então estreada por Francisco Fanhais. (Quantas vezes a terá cantado depois disso, nem ele certamente o saberá…) 



P.S. – Quatro anos mais tarde realizou-se uma outra vigília pela paz na Capela do Rato, com consequências bem mais gravosas porque envolveu uma greve de fome, prisões e despedimentos da função pública.
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Cinco memórias do ano que mudou Portugal

 


«Cara leitora, caro leitor:

Isto não é bem um balanço do ano, mas as cinco memórias que mais me ocorrem quando penso neste ano político, que vai marcar o próximo, sem dúvida.

1 – A direita em força no Parlamento

A vitória da AD nas eleições de Março não foi o acontecimento do ano. Afinal, Luís Montenegro tornou-se primeiro-ministro por ter conseguido eleger mais dois deputados do que o PS. Uma vitória pessoal sem dúvida, quando já ninguém acreditava que, caso a legislatura não tivesse sido interrompida, Montenegro chegasse ao Governo. A demissão de António Costa e a decisão de Marcelo Rebelo de Sousa de convocar eleições antecipadas "salvaram" Montenegro de uma revolta interna no PSD, que aconteceria se o partido perdesse – como veio a perder – as europeias de 2024.

A memória política que marcou 2024 e vai marcar os próximos tempos foi a eleição de 50 deputados do Chega. Aquilo a que Portugal sempre tinha sido poupado – uma direita populista radical forte – consumou-se. Paulo Portas costumava justificar os seus discursos mais extremistas quando era líder do CDS (sim, também contra a imigração) com o facto de estar a lutar para que não viesse a existir nenhum partido mais à direita do que o CDS. Era a frase: "À direita do CDS, só a parede". Enquanto o CDS se aguenta no Governo e no Parlamento por misericórdia do PSD, a direita radical, que Portas jurava que iria travar, instalou-se.

2 – A contaminação do PSD pelo Chega

Luís Montenegro quis libertar-se das memórias da troika e abjurar o seu antecessor, Pedro Passos Coelho. Tentou a reconciliação com os pensionistas. Nas legislativas, "jogou" ao centro. Quando chegou ao Governo, começou a resolver aquilo que António Costa nunca quis fazer – a resolução dos problemas das carreiras dos professores, polícias e outras da função pública.

Para captar o centro disse, finalmente, "não é não" a uma coligação com o Chega. Montenegro tinha sido sempre dúbio a este respeito – tal como, antes dele, Rui Rio – e até tinha ido dar palmadas nas costas de José Manuel Bolieiro (o presidente do Governo Regional dos Açores que tinha chegado ao cargo através de uma coligação com o Chega), durante a campanha interna contra Jorge Moreira da Silva. O actual subsecretário-geral das Nações Unidas manifestou-se contra o acordo dos Açores e perdeu a disputa interna do PSD contra Luís Montenegro, que apoiou Bolieiro.

Mas o "não é não" veio mudar o cenário. A recusa do acordo com o Chega passou a ser a palavra de ordem, libertando o eleitorado que abjurava o Chega para votar AD. A questão é que, apesar das medidas de reconciliação com a função pública e os pensionistas, nunca o PSD teve um discurso securitário e anti-imigração como este ano. A lei que veta o acesso de estrangeiros ao Serviço Nacional de Saúde é talvez o exemplo mais grave dessa cedência à direita populista. Mas, no discurso do congresso do PSD, Luís Montenegro já tinha dado o sinal de qual era o seu rumo: comprar e pôr em acção a agenda do Chega.

Na segurança, Luís Montenegro vive uma contradição impossível: às segundas, quartas e domingos, Portugal "é um dos países mais seguros do mundo" – como disse na mensagem de Natal –, nos outros dias é preciso dar "visibilidade" a "operações especiais" como a recente no Martim Moniz, em Lisboa, para combater a insegurança, ou a "percepção" de insegurança. Querer recuperar o eleitorado que votou Chega à custa de prejudicar a economia – que precisa de imigrantes e para a qual o facto de Portugal ser um país seguro é um activo – é absolutamente perverso. Mas contribuir para a discriminação dos imigrantes com os discursos e o elogio à "visibilidade" das operações especiais do tipo do Martim Moniz é imoral.

3 – O PS a viabilizar o Orçamento "da direita"

Pedro Nuno Santos tornou-se líder do PS, cumprindo um objectivo que tinha desde a faculdade. Mas os timings não se escolhem. Foi para eleições com a herança do costismo, com o desgaste de oito anos de PS no poder. Em toda a campanha percebeu-se que estava hirto, como se não se sentisse à vontade no papel. Afinal, o que ia a votos eram Costa e Pedro Nuno, e o novo secretário-geral teria que encarnar uma personagem bipolar. Não foi famoso.

Mas foi o drama do Orçamento aquilo que marcou o ano dos socialistas. Pedro Nuno Santos, não é segredo para ninguém, queria votar contra. Depois ziguezagueou: admitiu negociar e o Governo não ligou à disponibilidade durante muito tempo. A verdade é que o partido não queria o voto contra, apesar de ter votado no candidato a secretário-geral que sempre defendeu votos contra "orçamentos da direita". Em ano de autárquicas, o "aparelho" disse "não" à possibilidade de novas eleições. O grupo parlamentar também era maioritariamente contra o chumbo do Orçamento. As cedências do primeiro-ministro, nomeadamente no IRS Jovem, tornaram mais difícil o voto contra. Mesmo assim, o facto de Montenegro só ter aceitado deixar cair parcialmente a baixa do IRC fez Pedro Nuno recusar o acordo, mas dispor-se à abstenção. No fim, ainda foi o PS a viabilizar até a baixa do IRC. Não foi um processo feliz.

Enquanto isto, o homem com mais sorte de Portugal – António Costa – passou por momentos terríveis depois do famoso parágrafo da PGR em Novembro de 2023 e das buscas em São Bento, com a descoberta de dinheiro na sala do seu chefe de gabinete. Mas, sendo o homem com mais sorte do país, tudo acabou em bem: acabou de tomar posse como presidente do Conselho Europeu, o cargo que há muito desejava e que parecia quase impossível de alcançar depois de Marcelo ter garantido que convocaria eleições se Costa quisesse ir para a Europa. Tudo está bem quando acaba em bem.

4 – A geringonça rebentou com o Bloco de Esquerda e o PCP?

Nas legislativas, o BE conseguiu 4,36% dos votos e elegeu cinco deputados e o PCP apenas 3,17%, com quatro deputados eleitos. Em 2015, antes dos acordos com o PS, o Bloco de Esquerda tinha conseguido 10,19%, mais do dobro. Sentaram-se no parlamento 19 deputados bloquistas. Em 2015, também PCP obteve mais do dobro: 8,25%, com 17 deputados eleitos.

Foi a geringonça que reduziu a esquerda à esquerda do PS a mínimos? O voto de protesto foi para outras paragens? A posição sobre a Ucrânia fez com que algum eleitorado abandonasse o PCP? A verdade é que, depois da geringonça, nada foi como antes. Talvez isto explique que o PCP tenha recusado a coligação com o PS em Lisboa e o Bloco já tenha anunciado que vai apresentar um candidato (ainda que não tenha recusado a coligação).

5 – O ano mais duro para Marcelo

Marcelo Rebelo de Sousa foi obrigado a cortar relações com o filho por causa do "caso das gémeas", onde uma comissão parlamentar continua a averiguar qual foi a interferência da Presidência da República e do Governo no acesso ao Serviço Nacional de Saúde de duas meninas luso-brasileira. Só isto faria com que o ano do Presidente da República fosse profundamente infeliz.

Mas não foi só isso. Quando se pensa em qual será o legado de Marcelo Presidente, fora os afectos e a proximidade – que também é importante –, vê-se um chefe de Estado que assistiu, no seu mandato (e por sua decisão exclusiva) à entrada em força da direita populista no Parlamento português. E percebe-se que ainda não arranjou uma forma de lidar com o "rural" e "imprevisível" Montenegro, como o classificou num jantar com a imprensa estrangeira. Marcelo gosta de estar confortável, esteve assim quase toda a vida (excluindo os últimos tempos na liderança do PSD) e agora não está. Tem um ano para recuperar a sua ligação com o povo.

Tenha um excelente 2025 e até para a semana!»


30.12.24

Mais um vaso antes de 2024 acabar

 


Vaso de vidro amarelo com sobreposição branca e gravura, esmaltado com papoilas e margaridas, cerca de 1900-1910.
Émile Gallé.

Daqui.

E por vezes



E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites, não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos.

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos

David Mourão-Ferreira


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O que muda na mudança

 


Personalidade internacional de 2024: Trump, o mensageiro da Nova Ordem

 


«A vitória de Donald Trump não é o regresso a 2016. Antes de mais, porque já ninguém foi ao engano. Trump é eleito depois da desastrosa gestão que fez da pandemia. É reeleito depois do seu mandato único ter sido punido por uma derrota. É reeleito depois de, perante essa derrota, ter tentado subverter os resultados eleitorais e ter promovido a tentativa de um golpe, com uma inédita ocupação do Senado. A reeleição, depois do que aconteceu a 6 de janeiro, demonstra que já não estamos perante enganos ou ilusões.

O enquadramento político também é muito diferente do de 2016. Como se viu pelas nomeações que fez, Trump esmagou, de uma vez e para sempre, o Partido Republicano, moldando-o à sua imagem e rodeando-se de gente tão ou mais perigosa do que ele, de que J.D.Vance, momentaneamente ofuscado pelo brilho de Elon Musk, é exemplo. Trump governará com a maioria na Câmara dos Representes e do Senado e com uma declaração de inimputabilidade decretada pelo Supremo. Trump só não fará o que não quiser fazer. E isso demonstra a fragilidade das instituições em que tantos depositam ama fé infinita.

A vitória de Trump marca uma nova era. E quando digo que marca, não digo que a determina. Ela é sinal dessa nova era, em que ao triunfo do capitalismo financeiro global, que causou profunda erosão nas nossas democracias, se junta o triunfo do poder económico ligado às tecnologias da informação, que concentram um poder financeiro e político até hoje desconhecido. De tal forma que substituem a influência do dinheiro nas decisões políticas pela presença direta no próprio poder político. Sem agentes ou representantes. Com Trump, chega ao poder a oligarquia tecnológica que determinará, está a determinar, uma Nova Ordem Mundial capitalista, como o próprio Elon Musk anunciou no dia da vitória.

Os traços ideológicos desta nova elite são evidentes, porque ela tem um poder esmagador de, através do domínio dos instrumentos de construção de hegemonia cultural, os tornar maioritários: um, só aparentemente improvável, casamento entre autoritários político, reacionários culturais e libertários económicos, que usarão de forma impiedosa o Estado para acabar de concentrar todo o poder nas suas mãos em nome de uma liberdade económica em que já concentram o poder. Não é por acaso que Milei é o presidente preferido de Trump. O presidente argentino é quem, de forma mais perfeita, sintetiza esta aliança. E os mercados gostam.

E Trump chega ao poder num momento particularmente sensível, com o mundo em desordem e duas guerras que ele resolverá satisfatoriamente para os agressores – a da Ucrânia, provavelmente congelando-a, e a de Gaza, deixando que o seu amigo Netanyahu acabe o serviço que começou. A vitória de Trump representa também o fim definitivo de uma ordem mundial vagamente regulada por leis. E coincide com o ocaso da Europa – que se prepara para destruir o seu Estado Social em nome de uma economia de guerra, opção que a entregará de vez às mãos da extrema-direita – e da ascensão da China, o grande vencedor planificado da globalização.

O regresso de Donald Trump marca uma nova era que, como tenho defendido, vai pondo fim, com as contradições habituais em períodos de grande mudança, à curta experiência democrática de parte da população mundial. Uma experiência que correspondeu ao encontro entre os interesses nacionais e as suas burguesias industriais. Podermos continuar a ter eleições, dissidência e uma elite intelectual entretida em guerras identitárias (ou na reação a elas), mas a democracia é desnecessária à economia financeira e tecnológica globalizada e totalmente inviável com os níveis de concentração de riqueza e poder que hoje conhecemos. Trump foi, entre muitas outras coisas, consequência da aceleração desse processo.»


29.12.24

2025 - Festejemos!

 


E esta?!?

 


«E que poupança é essa? "Se a escolha tivesse recaído sobre outra pessoa, o Estado português teria de continuar a suportar o salário de Hélder Rosalino no Banco de Portugal (é posição permanente) e teria ainda que pagar o salário do novo Secretário-Geral do Governo. Como a posição de Hélder Rosalino não será substituída, ou ocupada por outra pessoa, dado ser específica de ex-administrador (dos quadros do Banco de Portugal), o sector público no seu conjunto fica a pagar apenas um salário e a poupar outro".»


A consoada na televisão

 


«O Presidente lá chegou, com mais de duas horas de atraso, ao volante da sua própria viatura. O que lhe aconteceu quando saiu do carro? “Assim que saiu do carro foi literalmente engolido... Nós só conseguimos ver um pouco da testa de Marcelo, o corpo inteiro ainda não conseguimos ver…”. Os repórteres mais distantes dessa fracção de testa estavam literalmente incendiados pela vontade de colocar perguntas a Marcelo, mas teriam de esperar. Depois de horas retido no trânsito automóvel, o Presidente estava agora retido no trânsito pedonal. A câmara da CNN não conseguia sequer filmar directamente a tradicional testa, portanto improvisou uma criativa solução de recurso: fez zoom a um telemóvel erguido que estava mais perto do alvo. Esse telemóvel filmava outros telemóveis, numa cadeia de transmissão de Escher, o último dos quais estaria certamente focado na testa do Presidente.»

Rogério Casanova

Eleições autárquicas: a corrida aos nomes

 


«Assiste-se, neste momento, a uma corrida aos nomes quer para as eleições presidenciais do início de 2026 quer para as locais (municípios e freguesias) de 2025, dando-se mais atenção àquelas. É grave menorizar as eleições locais gerais (eleições autárquicas) perante as eleições presidenciais. Pior ainda, instrumentalizar as locais em função da actuação do Governo.

As eleições locais gerais de Setembro/Outubro de 2025 têm por finalidade escolher as melhores listas e programas para o governo dos 308 municípios do país e também das freguesias cujo número total se saberá em breve, esperemos. Considerar que isso é menos importante do que saber quem vai ser Presidente da República em princípio de 2026 ou da popularidade do Governo actualmente em funções é algo que devia pôr-nos a reflectir, desde já.

Será que queremos para Lisboa e Porto, por exemplo, a eleição de quem melhor governe estes municípios ou ver se ganha o candidato do PS ou do PSD (sós ou em coligação) para vermos da popularidade do Governo? Fazer leituras nacionais das eleições locais é considerar que os munícipes não votam em função do melhor para o seu município, mas em função do melhor para o Governo do país, e isso é pensar mal dos cidadãos eleitores.

Não queremos dizer com isto que na mente dos eleitores não estejam em causa os dois objectivos (votar para o melhor do município e dar conta do agrado ou desagrado com o Governo). O que queremos dizer é que tudo devemos fazer numa democracia madura para que não se confundam as duas coisas e que bem pode suceder que o voto numa lista para o município não signifique que seria igual o voto se estivesse em causa a escolha do Governo.

Toda a pedagogia democrática – e nisso os meios de comunicação social têm particular responsabilidade – deve fazer-se no sentido de distinguir o voto para as eleições autárquicas do voto para outras eleições. Há tantas e tão interessantes questões a abordar nas eleições locais que é um desperdício democrático secundarizá-las por causa das escolhas para Presidente da República ou da actuação do Governo.

Falamos das questões que nas eleições locais de 2025 devem ser tratadas e salientamos algumas, sem poder mencionar muitas mais como mereciam, no âmbito deste texto. De que se está à espera para cumprir o artigo 239.º, n.º 3 da Constituição (revisão de 1997) sobre o sistema de governo dos municípios e sobre o efeito da moção de censura da assembleia municipal sobre a câmara? De que se está à espera para valorizar as carreiras dos funcionários municipais, bem sabendo que sem bons quadros não haverá bom governo municipal? E não haverá necessidade de repensar o nosso mapa municipal quando assuntos tão importantes como a educação, a saúde, a justiça (julgados de paz) e a protecção do ambiente entram no domínio da acção dos nossos municípios e precisam que estes tenham população e superfície adequadas?

Se não tivermos todos consciência de que o bom governo local é a base de uma democracia sólida, demonstramos pouco apreço pela democracia.»