«Parece ter havido algum “delay” no escrutínio ao novo poder. Oito anos de PS criaram a ideia que era o PS, e não o poder, que tinha de ser escrutinado. E, no entanto, assistimos a um rapidíssimo assalto ao Estado de um PSD faminto de tão longo jejum. Mesmo o CDS, morto e ainda não enterrado, mantém intacto o seu voraz apetite. De tal forma que uma vereadora de Lisboa, de 22 anos, que nem sequer tinha direito ao lugar, conseguiu nomear para jurista uma jota que não é jurista.
Um bom exemplo do escrutínio pretérito foi o caso do CCB. Uma dirigente a que quase todo o setor deixa rasgados elogios e que não tinha ligações a qualquer partido foi exonerada para dar lugar a um ex-secretário de Estado de Passos Coelho que, ao contrário de Francisca Carneiro, não tem qualquer currículo na gestão de instituições ligadas às artes performativas. E esta substituição foi feita em nome do fim “do compadrio, dos lóbis e das cunhas”. Dedicaram-se semanas ao passado da ex-presidente do CCB, ignorando a cunha política que se tinha à frente.
Talvez seja normal. Aconteceu no fim do cavaquismo. O cansaço com longos mandatos num país onde o Estado é demasiado fraco para resistir aos assaltos partidários leva a uma certa benevolência com o novo poder. Aquilo a que chamamos “estado de graça”. Seria, no entanto, interessante fazer as contas à quantidade de governantes do passismo colocados em lugares não políticos, no último ano. A urgência das exonerações revela um governo com pouca segurança na sua durabilidade e um PSD “cheio de vontade de ir ao pote”, para me socorrer de uma expressão de Passos Coelho. Não deixa de ser impressionante que um partido que, neste século, só teve sete anos no poder, tenha uma clientela tão cimentada.
Não me dedicaria a este tema, não fosse a hipocrisia do discurso que acompanha cada nova captura do Estado. Se a nomeação de Nuno Vassallo e Silva foi um exemplo de descaramento sonso, o debate sobre o salário de Hélder Rosalino como secretário-geral do governo, com o executivo a culpar o Banco de Portugal pela despesa que o recuo vai significar para o Estado, vai para lá disso. Por ter ido para além disso e começar a haver um pouco de escrutínio, Rosalino foi obrigado a recuar, demonstrando que quando a comunicação social faz o seu trabalho o abuso é travado.
A nomeação de um ex-secretário de Estado para secretário-geral do governo não me chocaria. É normal que o patrão confie na “governanta”. Mais difícil seria aceitar que Hélder Rosalino fosse ganhar mais do que o primeiro-ministro ou do que o Presidente da República. A sensação que passa é que só nos incomodam os salários dos que, através do voto, podemos contratar ou despedir.
Quando, em 2004, Manuela Ferreira Leite nomeou Paulo Macedo para diretor-geral de Impostos, com um salário muito acima do estipulado (por manter o de origem, no BCP), defendi o princípio, apesar de criticar o modo. Era um ponto de vista pragmático: quando se escolhe quem recolhe o dinheiro, o barato sai muitíssimo caro. O tempo deu razão a Ferreira Leite e a eficácia de Macedo mediu-se em resultados. Não era, aliás, o primeiro caso. Mas sempre se levantaram dúvidas quanto à legalidade. E o Estado deve ter clareza nos procedimentos. A lei deve garantir que o pragmatismo não serve para a arbitrariedade.
Como é sabido, os salários dos bancos centrais estão alinhados com os europeus, criando ilhas de privilégio para os que passam o tempo a dar lições de finanças públicas modestas e regradas. E Rosalino ganha 15 mil euros no Banco de Portugal. Para pagar este salário ao ex-secretário de Estado, o governo fez uma lei à medida. Dizia a lei que, para o lugar, podia-se receber os 4884 euros (mais 25% em despesas de representação) ou, em alternativa, o salário de origem, desde que não excedesse, “em caso algum”, o vencimento base do primeiro-ministro. Na véspera da nomeação, o governo mudou a lei para que o salário de Hélder Rosalino pudesse ultrapassar o do primeiro-ministro. E isso, sim, é inaceitável.
Como o banco central não pode financiar governos, o salário seria integralmente pago pelo Estado. O que disse o governo, em sua defesa? Que não iria gastar um cêntimo a mais, porque ele deixaria de ganhar aqueles 15 mil euros do banco central. Até iria poupar: Rosalino continuaria a receber o que recebia, e não se gastariam os seis mil euros com outro secretário-geral. E assim começamos a perceber porque os erros nas contas são recorrentes neste governo.
Primeiro, o Banco de Portugal tem orçamento próprio. Por isso, sim, o Estado iria gastar 15 mil euros a mais dos contribuintes. Mais precisamente, mais nove mil euros do que se contratasse outra pessoa. Depois, mesmo que as contas fossem as mesmas, Hélder Rosalino abandonaria o lugar no Banco de Portugal, o que quereria dizer que alguma função deixaria de ser cumprida e outro teria de ir para o seu lugar. Aparentemente, assim não seria, o que nos leva a outra questão, mais relevante para Centeno do que para Montenegro: aparentemente, há, no banco central, quem receba 15 mil euros para aquecer o lugar. Se a saída de Hélder Rosalino não obrigaria a uma substituição, os 15 mil euros pagavam o quê? É esta instituição que nos quer dar lições de contenção orçamental?
Como recordou Ana Sá Lopes, a função de Hélder Rosalino no governo de Pedro Passos Coelho foi tratar da razia nos salários e direitos dos trabalhadores do Estado. Foi o autor, em 2013, da tentativa de alteração da fórmula de cálculo das pensões da Função Pública com efeito retroativo, com um corte médio de 10% em 370 mil pensões de aposentação e 77 mil pensões de sobrevivência. A proposta foi chumbada pelo Tribunal Constitucional. Não afetaria o próprio, como é evidente.
Esta, mais do que outra, é a lição a tirar desta nomeação abortada: os defensores da austeridade sabem pôr-se ao fresco. Depois de tudo isto, quando disserem aos trabalhadores do Estado e aos pensionistas que o orçamento não aguenta as suas reivindicações, só têm de recordar este episódio: “ai aguenta, aguenta!”»
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