«O primeiro sinal do PSD, logo no primeiro dia desta legislatura, foi o de dar primazia a um compromisso com o Chega, assumindo que existe uma maioria de direita. Uma entrevista recente de Hugo Soares à SIC Notícias esvaziou, aliás, a ideia de que os contactos com o Chega foram semelhantes aos que existiram com o PS. O novo líder parlamentar do PSD confirmou a existência de um compromisso que o Chega teria traído, acusação que nunca fez aos socialistas. E mesmo depois de ter sido salvo pelo PS e de não contar com o voto da extrema-direita em Aguiar-Branco, o PSD não faltou com um único voto a Pacheco Amorim. Nenhuma porta foi fechada.
Mas, desde que o Partido Socialista viabilizou a eleição do novo Presidente da Assembleia da República, esse gesto de boa-vontade tem sido aproveitado para o tentar amarrar à sustentação do governo. Na entrevista referida, Hugo Soares até sublinhou que o acordo firmado com o PS foi para a legislatura e que isso obrigaria o PS a garantir a estabilidade, incluindo já a passagem de orçamentos de Estado neste pacote. Ontem, Luís Montenegro fez o mesmo, dizendo que quem, cumprindo um compromisso eleitoral, não inviabiliza a passagem do programa do governo tem de garantir a legislatura.
São, logo à partida, dois avisos para a má-fé com que o novo governo se relacionará com entendimentos pontuais, tentando a todo o custo entregar a liderança da oposição ao Chega – o maior favor que lhe pode ser feito, como se percebeu pelas declarações exultantes de Ventura depois do discurso de tomada de posse. Esta tentativa de amarrar o PS não exibe uma vontade de aproximação, mas de montar armadilhas pelo caminho.
Tenho ouvido e lido análises ao novo governo centradas no seu perfil mais político ou mais técnico, mais partidário ou mais independente. Como sublinhou Pacheco Pereira, elas têm a curiosidade de considerarem positivo – a proximidade ao líder ou a experiência partidária – o que em governos do PS era tido como negativo. O que tem faltado é uma análise programática destas escolhas, que nos deviam dizer que convergências o PSD teria de fazer, se quisesse ser consequente.
O +Liberdade, um think-tank politicamente liderada pelo deputado Carlos Guimarães Pinto e generosamente financiado para servir de braço propagandístico da IL (e pessoas que, estando noutros partidos, lhe têm proximidade ideológica), teve a amabilidade de fazer o trabalho por mim, destacando quatro ministros centrais que são membros desta laboratório de ideias ultraliberal: Fernando Alexandre, diretor não executivo do +Liberdade (com Guimarães Pinto e Cecília Meireles) e novo ministro da Educação; Rita Júdice, a surpreendente ministra da Justiça espacializada em negócios imobiliários; Pedro Reis, ministro da Economia; e António Leitão Amaro, figura central no PSD e no novo executivo, muito próximo de Montenegro.
Independentemente de alguns ministros terem sido nomeadas para cargos técnicos pelo governo anterior (o que desmente a ideia de que só se era promovido com cartão socialista), basta acompanhar as suas posições políticas e programáticas para perceber a sua natureza ideológica. Basta revisitar os escritos de Miranda Sarmento (várias vezes citados por António Costa em debates); conhecer as posições de Ana Paula Martins sobre a reforma do SNS iniciada por Fernando Araújo; rever as intervenções de Paulo Rangel sobre alguns governos aliados de Portugal (numa manifestação contra Sánchez, em Madrid, por exemplo); ler a doutrina sobre direito laboral da nova ministra do Trabalho e Segurança Social (o nome de Maria Rosário Ramalho foi mal recebido pelas centrais sindicais); ou recordar do papel de Miguel Pinto Luz na privatização da TAP à 25ª hora e na concessão da ANA (desfeita pelo Tribunal de Contas) que limita a escolha da localização novo aeroporto (assuntos caros ao líder do PS) para perceber que este governo não foi pensado para convergir com o Partido Socialista. Pelo contrário.
Nos setores mais sensíveis, o fosso com PS e com Pedro Nuno Santos, que Montenegro, ao bom jeito da IL, chamou de “gonçalvista”, é evidente. Não está em causa a competência de cada pessoa. Está em causa o facto deste não ser apenas um governo fortemente político, mas marcadamente ideológico. É uma opção legitima. Só não se pode pedir aos socialistas para jogar um jogo quando se selecionou uma equipa para outro.
Já aqui defendi que o PS deve estar disponível para entendimentos com todos os partidos democráticos (e não apenas com o PSD) em matérias de regime, afastando o Chega de qualquer intervenção que tenha a ver com política de imigração, para as minorias, de segurança, de política criminal ou para alterações constitucionais. A oposição de André Ventura à nova ministra da Administração Interna facilita essa opção, aliás. Curiosamente, é sobre a corrupção que Montenegro está disponível para falar com todos, incluindo o Chega, sem neste tema dar preferência ao PS, é sobre a corrupção – prevê-se um festival de populismo.
Coisa diferente é a política económica, social e relacionada com os serviços públicos. Aí, é o PSD que tem de fazer escolhas. A composição deste governo e o discurso de ontem indiciam uma política virada à direita. É legitimo. Existe uma maioria parlamentar de direita. Mas é uma escolha que deveria ter consequências.
O programa dirá se se confirma a decisão do PSD governar como se tivesse maioria absoluta. O discurso de Montenegro assim o indica. E se assim é, o PSD deveria ter em conta uma maior proximidade ao Chega nas propostas para o SNS, política fiscal e Escola Pública do que ao PS. E são essas políticas, e não as de regime, que mais contam para o Orçamento de Estado. Se o programa e o governo é à direita, é à direita que os entendimentos se deveriam fazer. Não se pode governar à direita, havendo uma maioria de direita, e exigir que o suporte dessa política seja a esquerda. Isso não é defender entendimentos ao centro, é defender uma armadilha que leve um partido a abandonar todas as suas posições em favor das de outro. Não foi só a AD que só teve 29%, foi o seu programa.
Quem tivesse dúvidas sobre tudo o que aqui escrevo, bastaria ter ouvido o discurso de tomada de posse de Luís Montenegro. A mensagem foi simples: a AD apresenta o seu programa, incluindo as reformas que defende (e que tiveram 29% dos votos) sem mudar uma linha, e exige que o PS o aprove. Para além do início da marcha-atrás em relação às promessas que fez às corporações, Montenegro tinha uma coisa para transmitir: quis enconstar o PS à parede logo no primeiro dia, mostrando indisponibilidade para cedências. Não está realmente disponível para negociações. Só vitimização. Luís Montenegro exigiu responsabilidade e humildade a todos. Só as dispensou para si.»
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