2.4.24

O regresso do militarismo

 


«A Europa vive duas ameaças latentes. Nada garante que o expansionismo russo se fique pela Ucrânia, e que Vladimir Putin não alimente a intenção de novas invasões, e uma eventual eleição de Donald Trump teria como consequência uma maior desprotecção europeia, por implicar uma desvalorização da NATO.

A adesão da Finlândia e da Suécia à aliança militar é um bom indicador de como ambos desconfiam do vizinho russo nesta conjuntura pós-invasão da Ucrânia, a ponto de o segundo ter abandonado a sua famosa neutralidade, imaculada desde 1814. Não parece que exista outra defesa possível perante as tentações imperiais do autocrata do Kremlin.

Esta guerra que se abateu sobre a Europa não tem desfecho à vista, nem duração previsível. O ambiente de guerra e de corrida ao armamento está definitivamente instalado. A indústria agradece.

O presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, foi o primeiro a dizê-lo sem equívocos, por achar que a Rússia não se ficará pela Ucrânia, como também não se contentou com a Crimeia: “Se queremos a paz, temos de nos preparar para a guerra.” O primeiro-ministro polaco Donald Tusk não tem dúvidas de que “estamos numa época de pré-guerra”, considera que não está a ser exagerado quando o afirma e que isso “é cada dia mais evidente”.

A ministra espanhola da Defesa, Margarita Robles, também já referiu que a Europa tem de estar consciente de que o perigo da guerra está muito próximo: “Não é uma pura hipótese, é real.”

O contexto é propício ao discurso belicista, ao aumento da despesa com a Defesa, para cumprir a meta do investimento dos 2% do PIB no quadro da NATO, e ao aumento dos efectivos. A realidade muda de país para país e é certo que quanto maior foi a proximidade da Rússia maior será a necessidade de protecção e a atmosfera de pré-guerra.

Os finlandeses, suecos ou polacos, que aumentaram os gastos militares até 3,9% do PIB, têm razões para se inquietarem. Têm razões para sempre se terem preocupado com a sua autonomia de Defesa ou com a manutenção do serviço militar obrigatório (SMO) como condição para assegurar um número de elementos razoável.

A Europa desperta agora para o pesadelo de ter de investir mais recursos financeiros no armamento e de exigir aos seus cidadãos que defendam o país na eventualidade de uma guerra. Algo absolutamente impensável até há pouco tempo. Os europeus habituaram-se ao guarda-chuva dos EUA e Trump pode fechá-lo, com consequências estrondosas.

O quadro é favorável a que os militares insistam no retrocesso que seria para Portugal voltar a aplicar o serviço militar obrigatório, porque a profissionalização não dotou as forças armadas com o número necessário de elementos. É verdade que vários países europeus têm vindo a reintroduzir o serviço militar obrigatório por aquela razão, mas estão a fazê-lo de uma forma mais adaptada aos tempos actuais, acrescentando-lhe uma componente cívica.

O SMO acabou em Portugal porque tinha deixado de fazer qualquer sentido uma experiência de caserna, que se pauta pelo machismo, pela ausência de aprendizagem relevante e por recrutas vexatórias que, em algumas forças especiais, raiam o sadismo, como o atestam as mortes de instruendos nos cursos dos Comandos, e porque os tempos eram de paz.

Encerrado o capítulo da guerra colonial, o serviço militar ficou circunscrito a quem não tinha cunha que lhe permitisse escapar. Não é necessário passar nove meses numa caserna para aprender a fazer uma cama, engraxar botas ou valorizar a disciplina. Sim, é verdade que as Forças Armadas têm um problema de atracção e de retenção de efectivos. Mas têm-no porque a profissionalização militar não é uma carreia atractiva. Nunca foi. O estado em que se encontram as Forças Armadas é proporcional à importância atribuída por sucessivos governos. O país teve outras prioridades mais óbvias nas últimas décadas.

Forças Armadas alimentadas por conscritos podem ser mais numerosas, mas isso não garante que sejam mais competentes. Os militares querem lançar o debate, neste cenário de pré-guerra e de compromisso de aumento da Defesa, em vésperas da tomada de posse de um novo governo.

O tema não foi discutido durante a última campanha para as legislativas e está muito longe de ser consensual entre as forças partidárias. Sim, podemos ter essa discussão, mas há, todavia, outras coisas a fazer no imediato, como aumentar salários, prolongar contratos, reconhecer a equivalência de certificação de cursos, melhorar a integração no mercado de trabalho e tudo o mais que dignifique a carreira militar. Não se trata de preparar a guerra, mas de melhorar a Defesa, no âmbito de uma maior autonomia europeia.»

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