«Como na tomada de posse o presidente Jair Bolsonaro optou por fazer discursos de campanha eleitoral em vez de discursos de Estado, falando, mesmo sem o citar, mais no PT do que no seu próprio governo, recuemos uma semana e situemo-nos no que se passou no Brasil real nas festas de Natal.
E nem são para aqui chamados, por mais dramáticos que sejam, os números da Operação Natal da polícia rodoviária federal do Brasil que indicam 89 mortos e 1485 feridos entre os dias 21 e 25 de dezembro. Nem os igualmente trágicos registos de sete mortos e cinco feridos em tiroteios, só na cidade de São Paulo, na noite da consoada.
Do que aqui se trata é das cicatrizes que o Natal deixou naquele que costuma ser o núcleo da festa, uma família em redor de uma mesa a trocar presentes ou, pelo menos, afetos. Na verdade, o Natal não, porque o evento é apenas um pretexto para pais, filhos, irmãos, irmãs, primos e tios se reunirem - foram as eleições de 2018 que expuseram fraturas, que saberá Jesus Cristo, o aniversariante da noite, quando vão sarar.
Ao longo da campanha houve pais que romperam com filhos, irmãs com irmãos. Casamentos estremeceram, amizades de vida desfizeram-se. Relatos de pais que proibiram os filhos de encontrar os avós por causa de desavenças políticas. Grupos no WhatsApp em combustão, discussões vulcânicas no Facebook, ofensas sem limite no Twitter, ruturas telefónicas. Mas o Natal, em muitas famílias, é o dia em que as redes sociais regressam ao estado puro e se transformam em contacto visual. E físico.
O jornal Folha de S. Paulo, atento ao que aí vinha, publicou nas semanas anteriores à ceia um pequeno apanhado de perguntas e respostas, com factos, sobre alguns temas com potencial para aquecer ainda mais o já de si soalheiro Natal brasileiro - a situação da Venezuela, que surge sempre como arma de arremesso dos bolsonaristas contra os lulistas, o cancelamento do programa Mais Médicos, que os eleitores de Haddad usam para atacar os votantes do capitão do exército, ou um bê-á-bá do fascismo, que a direita brasileira mais desinformada (a grande maioria) insiste em conotar com a esquerda.
No Diário de Pernambuco, especialistas deram até dicas zen para passar uma consoada em paz.
Mas não resultou, segundo boa parte dos relatos.
Caio, por exemplo, equacionou passar a data nos Estados Unidos, onde vive, para não ter de encontrar a sogra do irmão com quem rompeu em outubro. Reconsiderou mas vestiu uma T-shirt com mensagem provocatória para a enfrentar. Eleitora de Haddad, Luísa passou o Natal longe dos pais, bolsonaristas convictos, pela primeira vez em décadas, trocando-os pela companhia dos sogros, de direita mas com moderação.
Ana, que festejou nas ruas o resultado eleitoral, foi a contragosto à mesma casa onde estava uma prima mais nova, feminista e socialista, que despreza. Com péssima relação com o pai homofóbico, o homossexual Marquinhos aproveitou as brigas políticas para não precisar sequer de o cumprimentar na noite de Natal.
Apoiante do capitão, Daniel passou semanas sob tensão com a inevitabilidade de rever irmão e cunhada, ambos anti-Bolsonaro, na consoada. Por sorte, eles devem ter sentido o mesmo e alegaram uma conveniente viagem à Europa para fugir à tradicional festa de família.
Noutros casos, toda a gente se reuniu mas com o compromisso de não falar de política - e, portanto, de não assistir ao noticiário, nem de comentar sobre a economia do país, nem da novela das nove, nem dos resultados do Brasileirão, nem de nada, porque afinal a política é tudo e tudo é política.
Como num dos exercícios do método Stanislavski para formação de atores em que o professor pede ao aluno para que durante cinco minutos não pense em ursos, o que o leva a só pensar no animal, nas ceias em que não se falou de política, a política pairou, como nunca, por cima dos presépios e das árvores de Natal, como um fantasma.
E a cicatriz demorará muito a sarar? A frase de despedida do ano velho de Marcelo D2, veterano rapper brasileiro, resume tudo. "A todos os que eu xinguei e com quem briguei em 2018, gostaria de dizer que em 2019 tamo aí de novo seus fdp."
Enquanto não vem o perdão, cuidado na estrada e com as balas perdidas, que esses é que são problemas sem volta.»
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