26.4.14

Caxias, há 40 anos



Republico este post todos os anos, nesta data. Foi mesmo o primeiro dia do resto das nossas vidas - o fim das prisões do fascismo.












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Lido por aí (26)

Regressando a 25: à noite, quando a PIDE matou


(A nova placa, colocada esta semana, depois de a anterior ter desaparecido.)

Por volta das 20:30 do dia 25 de Abril de 1974, a partir das janelas da sede da PIDE, hoje transformada no condomínio de luxo, os pides abriram fogo indiscriminado, do qual resultaram quatro mortos e algumas dezenas de feridos que foram socorridos pela Cruz Vermelha e encaminhados para o Hospital S. José e Hospital Militar.

Pouco depois, unidades de Infantaria 1 (Amadora) e Cavalaria 3 (Estremoz), equipados com dois carro de assalto e uma autometralhadora, criam um perímetro estratégico em volta do edifício da PIDE/DGS.


(Som do Rádio Clube Português)
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Absolutamente imprescindível



... ESTE VÍDEO de «Melhor do que falecer». O texto de Ricardo Araújo Pereira é excelente, não encontro adjectivos para qualificar a interpretação de Maria do Céu Guerra. 
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Reflexões para o dia 26



«A sociedade civil portuguesa não se libertou. Calou-se e procura sobreviver. Juntou-se ao coro da queixa das almas jovens censuradas de que falava a mística Natália Correia. A contaminação do aparelho de Estado pelo Bloco Central de interesses tem minado muito do que deveria ser uma salutar relação do Estado com a sociedade civil. Só que a fragilidade desta não é deste tempo: é uma herança histórica. Nunca houve um grito do Ipiranga da sociedade civil portuguesa face ao Estado. Portugal parece mais rico do que em 1974. Mas pensava-se que nunca voltaria a esta figura de nação que estende a mão e que, tenda melhor geração em termos de preparação desde 1974, os voltasse a obrigar a emigrar. A pobreza parece ser o desígnio nacional. A ideologia hegemónica do FMI à UE e passando pelo Governo. Como escrevia há mais de um século Fialho de Almeida, "Entre nós, seja dito, não há perigo de que o luxo vá esbofetear a majestade das classes sofredores".

A dívida e o défice mantêm-se. A economia não se libertou do Estado. E este é cada vez mais um polícia fiscal. O concílio dos poderosos mantém-se: as elites políticas saltam do Estado para as empresas e para os escritórios de interesses e negócios. O sistema não se reforma. Nem com o FMI, que sustenta ideologicamente esta pretensa mudança. Navega à vista, esconde-se, no seu labirinto onde algumas portas se abrem para que a tempestade passe. E tudo volte ao mesmo. O 25 de Abril prometeu a regeneração. A desigualdade continua. Queria-se justiça, mas a balança desequilibrou-se. Queria-se progresso: chegou a austeridade sem fim. A comédia de enganos continua neste país imóvel. »

Fernando Sobral, no Negócios de 23 de Abril.
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25.4.14

Clandestinos — «running on empty»


A minha irmã e eu, depois da prisão do meu pai e já no meio do mundo intrigante dos outros

Um magnífico texto da Rita Veloso, divulgado hoje no Facebook e enviado também para este blogue:

Já por várias vezes escrevi textos com as minhas memórias do período da ditadura e da revolução. Neles, adoto sempre uma perspetiva feliz, dada pelos olhos da criança que era. O Sol e o mar de Peniche, as brincadeiras nas visitas ao meu pai, as ingenuidades de uma criança que tinha de lidar com termos confusos, como clandestinidade ou preso político. Afinal, se não guardarmos da infância memórias felizes, de quando guardaremos?

No entanto, é óbvio que essa perspetiva resulta de um filtro aplicado a uma realidade bem diferente.

Além de todas as misérias que afetavam a generalidade das crianças no período da ditadura – a subnutrição e a fome, o analfabetismo, o trabalho de sol a sol, as doenças vorazes – e que contrastavam brutalmente com as regalias das elites, havia as dificuldades específicas dos miúdos que nasciam em famílias de quem se atrevia a combater o regime, as quais se podiam somar ou não às anteriores.

Crescer na clandestinidade implicava estar-se privado de qualquer sociabilização fora do universo da família nuclear, à exceção de idas fugazes ao médico ou às compras de rotina. Não se usufruía de mimos e ensinamentos dos avós ou dos tios, não havia as brincadeiras com primos ou amigos, aspetos essenciais ao pleno desenvolvimento da personalidade do indivíduo, que se quer num ambiente seguro, carinhoso e estimulante, que questione o intrigante mundo dos outros. Em contrapartida, convivia-se vinte e quatro horas por dia com pais e irmãos. Desenganem-se os que pensam que isso era um privilégio: a tensão em que estas famílias viviam, resultante não só da situação de foragidos como também do convívio forçado e anatural, era sufocante e repercutia-se inevitavelmente nas suas crianças. Vivia-se numa bolha hiperprotegida e asfixiante. A isso juntava-se a instabilidade da contínua troca de casa, com mudanças feitas à pressa, que deixavam para trás as nossas referências físicas afetivas.

Quando chegava a idade escolar, o mais tardar, tudo mudava inexplicavelmente. Com mais ou menos conversas incompreensíveis, as crianças eram subitamente entregues a alguém da família, para poderem ir à escola sem levantar suspeitas e de forma estável. Não é preciso explicar o quão dolorosa era para pais e filhos esta separação. Em muitos casos, o contacto só foi reestabelecido na idade adulta, resultando, geralmente, em mágoas e acusações imperdoáveis. Muitos filhos questionaram o direito dos seus pais a constituir família naquelas condições, agravando ainda mais a dor que os pais já sentiam com o afastamento forçado.

O que levava tantos homens e tantas mulheres a optar por uma forma de vida que, de previsível, só tinha o dinheiro contado, a insegurança, a prisão e a tortura, o isolamento da família? Não seria, certamente, a sede de protagonismo, nem se tratava de semideuses ou heróis.

Serão, porém, seres com um profundo sentido de justiça e uma imensa capacidade de abnegação; indivíduos para quem o bem-estar próprio ou dos filhos vale tanto quanto o bem-estar de todos e para quem o primeiro não existe sem o segundo. Nem sequer se trata de abdicar de uma vida tranquila em prol dos outros; são indivíduos para quem a vida não é tranquila enquanto não houver justiça, igualdade e liberdade.

Eu tenho, assumidamente, muito orgulho nos pais que tive e não os recrimino pelos eventuais danos que as suas opções me causaram. Mas não os admiro nem lhes devo mais do que a todos os homens e mulheres, anónimos ou famosos, que um dia decidiram que iam mudar o mundo, mesmo que não viessem a ver o resultado.

A 25 de Abril de 1974 saiu-se da ditadura, mas não se construiu um mundo justo, igual e livre. Um mundo assim não é nunca uma obra acabada; exige um trabalho permanente de construção e manutenção, para que os direitos de hoje não sejam os privilégios de amanhã, para que a tradição de ontem seja uma discriminação hoje e conduza a um direito amanhã.

Hoje em dia, lutar por um mundo melhor não envolve os riscos que existiam antes do 25 de Abril, mas é mais difícil do que há 20 ou 30 anos. Se nada fizermos hoje, daqui a 10 anos será pior e daqui a 20 pior ainda será. Afinal, que mundo queremos nós deixar aos nossos filhos?



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Mas certamente, esqueceram alguma semente



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O tiroteio no Carmo, na tarde de 74



Não houve só cravos, no Largo do Carmo, no dia 25 de Abril. Por volta das 12:30, as tropas cercaram o Largo e três horas mais tarde disparam contra a fachada, depois de um pedido de rendição feito por Salgueiro Maia 20 minutos antes, através de megafone, não ter sido atendido.

O som e os tiros, em reportagem de Adelino Gomes:


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Naquele dia inteiro e limpo



O conteúdo deste post foi publicado numa brochura que a APRe! divulgou às 00:00 com textos relacionados com o 25 de Abril, escritos por um grande grupo de membros da Associação (*).

Noite cerrada, o telefone a tocar pouco depois das quatro da manhã, alguém que me diz que a tropa está na rua, uns minutos de espera, de ouvido colado a um velho aparelho de rádio, a voz inconfundível de Joaquim Furtado: «Aqui posto de comando do Movimento das Forças Armadas. As Forças Armadas portuguesas apelam a todos os habitantes da cidade de Lisboa no sentido de se recolherem a suas casas, nas quais se devem conservar com a máxima calma.»

No primeiro acto de desobediência a novas autoridades, que ainda nem o eram, saí imediatamente e só regressei a casa na madrugada do dia seguinte. Fui ter com amigos, reunimos máquinas fotográficas, deambulámos de carro e a pé pela cidade – horas e horas primeiro pelas ruas da baixa, depois no Carmo até à rendição de Marcelo.

Pelas 11 da manhã, quando absolutamente nada estava ainda decidido, alguém me tirou esta fotografia, no Largo do Corpo Santo, em Lisboa – guardo-a como a mais preciosa de toda uma vida. Tinha acabado de perguntar àquele soldado, empoleirado no tanque, o que se passaria a seguir. Que não sabia, mas que estava com Salgueiro Maia e que tudo ia correr bem. E eu também não duvidei, nem por um minuto, que sim, que ia acabar o pesadelo em que vivera desde que tinha nascido. Sem me passar pela cabeça temer o que quer que fosse.

Já no Largo do Carmo, a espera, as dúvidas, os boatos, o megafone de Francisco Sousa Tavares – e também os cravos, a Grândola. Pelo meio algumas corridas, evacuação obrigatória do local quando se pensou que o quartel não se renderia a bem, almoço tardio com últimos feijões do fundo de uma panela numa tasca do Largo da Misericórdia, pelo mais total dos acasos na companhia de José Cardoso Pires; um carro estacionado mesmo em frente, com as quatro portas abertas para o que desse e viesse. Regresso ao Carmo, o desenrolar de tudo o que se sabe, o poder que Marcelo Caetano não quis deixar cair na rua antes de sair de chaimite, os gritos sem fim de vitória, que se cravaram na memória e ainda hoje fazem arrepiar. A liberdade, enfim, que nunca se imaginara poder ser tão grande.

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Passaram 40 anos. Portugal é hoje, sem qualquer espécie de dúvida, um país melhor do que era naquela quinta-feira de Abril. Negá-lo não tem sentido. Mas não é aquilo que sonhámos, não foi por isto que tantos lutaram durante décadas de ditadura, que alguns morreram, não é o que podia e o que devia ser hoje. Falhámos uma oportunidade única, nós que tivemos na mão uma das mais belas revoluções dos tempos modernos. Os humanos não são deuses omniscientes, e ainda bem, porque teria sido absolutamente insuportável, naquela primeira semana luminosa, naquele 1º de Maio triunfante, uma espécie de «regresso ao futuro» em que pudéssemos ver o Portugal de 2014. Resta-nos agora lutar pela democracia de hoje e de amanhã, com a mesma força com que festejámos a sua chegada há quatro décadas. Não vai ser fácil. Mas é para isso que ainda estamos vivos.

(*) A brochura pode ser lida AQUI.
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24.4.14

Tão, mas tão actual!...



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Poema de Abril



A farda dos homens
voltou a ser pele
(porque a vocação
de tudo o que é vivo
é voltar às fontes).
Foi este o prodígio
do povo ultrajado,
do povo banido
que trouxe das trevas
pedaços de sol.


Foi este o prodígio
de um dia de Abril,
que fez das mordaças
bandeiras ao alto,
arrancou as grades,
libertou os pulsos,
e mostrou aos presos
que graças a eles
a farda dos homens
voltou a ser pele.


Ficou a herança
de erros e buracos
nas árduas ladeiras
a serem subidas
com os pés descalços,
mas no sofrimento
a farda dos homens
voltou a ser pele
e das baionetas
irromperam flores.


Minha pátria linda
de cabelos soltos
correndo no vento,
sinto um arrepio
de areia e de mar
ao ver-te feliz.
Com as mãos vazias
vamos trabalhar,
a farda dos homens
voltou a ser pele.


Sidónio Muralha, Poemas de Abril
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A clandestinidade de Ricardo Araújo Pereira



 Ricardo Araújo Pereira, na Visão de hoje:

«A celebração dos 40 anos do 25 de Abril descobriu um número surpreendente de revolucionários. Gente que revela agora ter estado na clandestinidade, embora tenha mantido o facto clandestino durante quatro décadas. Ou que diz ter conspirado contra a ditadura, apesar de a conspiração ter permanecido secreta até hoje. Todos se arriscaram pela liberdade.»

Nascido três dias depois do 25 de Abril, RAP diz-se inspirado a criar a sua própria narrativa de combate ao fascismo:
«Passei os nove meses que antecederam o 25 de Abril na clandestinidade. E, também, preso. Na solitária. A cela era húmida, escura, e a comida parecia-me já ter sido mastigada. resisti como pude a essa longa noite de fascismo.»

Na íntegra AQUI.
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Os miúdos de 74


@Alfredo Cunha

«Eu tinha 10 anos quando se deu o 25 de Abril. (...) Veio o 1.º de Maio na Alameda, onde vi mulheres a fumar, barbudos, cabeludos - eu nem sabia que o cabelo de um homem podia crescer aquilo - e canções que tinham uma letra que era o oposto ao que eu estava habituado a ler nos livros da escola - havia mesmo outro mundo, e eu já suspeitava: naquele, dos meus livros, não era possível viver.

Agora, anda por aí gente a fingir que antes do 25 do 4 aquilo não era mau, eu estive lá e era muito mau, miúdos. Depois veio aquele dia e tudo mudou. Foram tempos incríveis em que os adultos estavam distraídos a ser miúdos e se esqueciam de nós: as revelações e surpresas, sobre o mundo em que vivíamos, sucediam-se. Para mim, com 10 anos, era como poder espreitar por detrás do cenário. Por tudo isto, o 25 de Abril foi o meu melhor amigo de infância. Foi ele que me salvou. É um amigo imaginário que se tornou real. Nunca me esqueço dele.

Agora que já desabafei, posso confessar que aquela que considero a verdadeira, e digna, comemoração dos 40 anos da revolução de Abril aconteceu em meados de Fevereiro, quando, segundo foi noticiado, o "mau tempo arrasou com a casa de Salazar no Vimeiro". É que para quem ainda tinha dúvidas, São Pedro sempre foi antifascista. (...)

A queda da casa de Salazar é uma bela metáfora dos 40 anos do 25 de Abril porque a casa caiu por si. Passaram 40 anos e ainda ninguém tinha deitado aquilo abaixo. Isto diz muito de nós. É melhor estar calado que a Assunção Esteves é menina para mandar reconstruir a casa do Botas (pelo Souto de Moura) para festejar o 25 do 4.»

João Quadros
(O link pode só funcionar mais tarde.)
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23.4.14

«Nunca pensei viver…»



Nunca pensei viver para ver isto:
a liberdade – (e as promessas de liberdade)
restauradas. Não, na verdade, eu não pensava
– no negro desespero sem esperança viva –
que isto acontecesse realmente. Aconteceu.
E agora, meu general?


Tantos morreram de opressão ou de amargura,
tantos se exilaram ou foram exilados,
tantos viveram um dia-a-dia cínico e magoado,
tantos se calaram, tantos deixaram de escrever,
tantos desaprenderam que a liberdade existe –
E agora, povo português?


Essas promessas – há que fazer depressa
que o povo as entenda, creia mais em si mesmo
do que nelas, porque elas só nele se realizam
e por ele. Há que, por todos os meios,
abrir as portas e as janelas cerradas quase cinquenta anos -
E agora, meu general?


E tu povo, em nome de quem sempre se falou,
ouvir-se-á a tua voz firme por sobre os clamores
com que saúdas as promessas de liberdade ?
Tomarás nas tuas mãos, com serenidade e coragem,
aquilo que, numa hora única, te prometem ?
E agora, povo português?


Jorge de Sena, 40 anos de servidão
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Lido por aí (25)

Benfica de Abril



Moro há cerca de 40 anos quase dentro do Estádio do Benfica, sempre suportei com bonomia os inconvenientes, respirei a poeira da demolição das velhinhas bancadas, sofri com a construção da nova catedral, gosto que o clube ganhe, ainda bem que é campeão este ano. Mas ainda não me saiu da cabeça o que se passou no Domingo, as horas e horas de invasão da cidade, as inacreditáveis reportagens, em vários dias, com que as televisões nos massacraram mostrando imagens de gentes tresloucadas, com ar de multimilionários a quem saiu o Euromilhões em dia de jackpot.

Há quem tenha falado de simples catarse em tempos de crise (do clube e do país), mas não vou por aí. O que mais me impressionou foi o facto de aquela enorme multidão ser mobilizável por motivações puramente tribais e ficar maioritariamente passiva quando se trata dos problemas vitais que a afectam. Com se se tivesse interiorizado que, no futebol, há sempre uma hipótese de vitória quando, na vida, o nosso destino, o nosso fado, é inevitavelmente a derrota. Por isso são tão certeiros este excertos do texto de José Vítor Malheiros no Público de ontem:

«Há no fervor guerreiro dos adeptos dos clubes um aspecto puramente tribal, que há anos é objecto de estudos antropológicos e psicológicos. Não há no amor clubista nenhum valor substantivo, mas apenas uma adesão à camisola, à bandeira e ao grupo. O que é estranho é que a forma mais fácil de mobilizar multidões e de acirrar os seus ânimos seja através de um ritual tribal e não através de valores substantivos, de ideias ou de projectos que tenham um real impacto na vida dessas próprias pessoas.

Ontem, ao ouvir as buzinadelas, pensava em quantos adeptos deste ou de outro clube, loucos de alegria pelo resultado de um jogo que em nada modificaria a sua vida, estariam dispostos a sair à rua para defender o aumento do salário mínimo, o aumento das pensões, o fim das propinas ou o pleno emprego. Quantas dessas pessoas seriam capazes de vir para as ruas exigir o fim da pobreza? Quantas dessas pessoas viriam para a rua indignadas pelos milhares de crianças que passam fome? Quantas dessas pessoas viriam para a rua exigir um combate eficaz à corrupção e uma justiça igual para todos? Quantas viriam defender uma escola pública de qualidade? Quantas destas pessoas virão para a rua no 25 de Abril gritar que não esquecemos a liberdade? Quantas dessas pessoas irão votar nas eleições europeias? Quantas irão votar nas legislativas? E quantas irão votar nos mesmos que hoje os condenam a eles à pobreza e os seus filhos à ignorância? Para que lhes serve este feroz orgulho de grupo e esta embriguez selvagem da vitória se, nos momentos que importam realmente, irão baixar o pescoço onde se irá pousar a canga?» (Os realces são meus.)
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Portugal numa penitenciária virtual



«Em “Little Dorrit”, Charles Dickens fala-nos de uma prisão onde as pessoas que têm dívidas estão presas, sem poder trabalhar, até pagar. Nunca as pagarão, é claro. A menos que sejam perdoadas.

Portugal está na sua penitenciária virtual. E, por isso, está sujeito às dicas do FMI ou aos delírios da UE. Come e cala. Porque não tem outra saída. (...)

A ideia de que a dívida é um pecado tem uma dimensão religiosa. E por isso existem prisões para quem deve. Mas num país onde se torrou dinheiro com o BPN ou com as PPP e quem paga é o reformado e os sujeitos a impostos cada vez mais duros, pergunta-se se a pena está a ser aplicada a quem tem culpa.

A questão é se Portugal aprenderá esta lição que o colocou num labirinto sem fuga possível e visível. E se a elite que nos vai governando aprende alguma lição. Ou não.»

Fernando Sobral
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Interpretação livre


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22.4.14

Mulheres na Revolução



«Elas fizeram greves de braços caídos. Elas brigaram em casa para ir ao sindicato e à junta. Elas gritaram à vizinha que era fascista. Elas souberam dizer salário igual e creches e cantinas. Elas vieram para a rua de encarnado. Elas foram pedir para ali uma estrada de alcatrão e canos de água. Elas gritaram muito. Elas encheram as ruas de cravos. Elas disseram à mãe e à sogra que isso era dantes. Elas trouxeram alento e sopa aos quartéis e à rua. Elas foram para as portas de armas com os filhos ao colo. Elas ouviram falar de uma grande mudança que ia entrar pelas casas. Elas choraram no cais agarradas aos filhos que vinham da guerra. Elas choraram de ver o pai a guerrear com o filho. Elas tiveram medo e foram e não foram. Elas aprenderam a mexer nos livros de contas e nas alfaias das herdades abandonadas. Elas dobraram em quatro um papel que levava dentro uma cruzinha laboriosa. Elas sentaram-se a falar à roda de uma mesa a ver como podia ser sem os patrões. Elas levantaram o braço nas grandes assembleias. Elas costuraram bandeiras e bordaram a fio amarelo pequenas foices e martelos. Elas disseram à mãe, segure-me aqui nos cachopos, senhora, que a gente vai de camioneta a Lisboa dizer-lhes como é. Elas vieram dos arrabaldes com o fogão à cabeça ocupar uma parte de casa fechada. Elas estenderam roupas a cantar, com as armas que temos na mão. Elas diziam tu às pessoas com estudos e aos outros homens. Elas iam e não sabiam para aonde, mas que iam. Elas acendem o lume. Elas cortam o pão e aquecem o café esfriado. São elas que acordam pela manhã as bestas, os homens e as crianças adormecidas.»

Maria Velho da Costa, Cravo

Por Mário Viegas, na parte final deste vídeo:


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Um espelho dos cidadãos que somos



O Diário de Notícias divulga hoje uma extensa análise dos resultados do barómetro de Abril, elaborado pela Universidade Católica para o DN, JN, Antena 1 e RTP. Com muitos gráficos, dos quais escolhi os que me pareceram mais significativos e que coloco no fim deste post. Uma parte dos textos está acessível online e pode ser lida aqui e aqui. Muito haveria a dizer, mas opto por apenas um ou outro aspecto.

Ninguém se admirará ao constatar que a maioria esmagadora dos inquiridos está pouco ou nada satisfeita com o funcionamento da democracia em Portugal (83%), mas talvez seja de estranhar que, nos últimos treze anos, essa insatisfação só tenha piorado em 7%. Ou não: insatisfeitos nos dizemos sempre, não sei se por natureza ou se por cultura do fado.

Fica-se a saber também que os eleitores do PSD são os menos insatisfeitos, bem como os jovens: «no escalão 18-24 anos, 22% declaram-se satisfeitos enquanto nos restantes essa percentagem não passa de 16%» – abençoados jovens, oxalá não lhes saia o tiro pela culatra...

Embora não se perceba exactamente com base em que agregação de resultados mostrados nos gráficos, conclui-se que «quase dois terços dos inquiridos (62%) acham que o País é hoje mais pobre do que era antes da revolução». A isto, só há um comentário a fazer: não sabem do que falam! E é grave porque se revela uma das vias para se chegar ao «antigamente é que era bom», ou seja para entreabrir portas altamente perigosas a desvios populistas de saudosas ditaduras: há sempre um fantasma salazarento no horizonte, sob a capa de um qualquer sebastianismo serôdio.

Mas talvez tudo se explique, pelo menos parcialmente, num dos gráficos que «puxo» para aqui e que é, para mim, o mais impressionante: aquele que diz respeito à participação dos cidadãos na actividade política, durante o Estado Novo, no PREC, nas décadas que se seguiram e na actualidade.


De uma cidadania a este nível, espera-se exactamente o quê? 

Mais gráficos:


Falta o selfie


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Com açúcar e sem afecto



«Vá lá, isto já não é um governo. É um ajuntamento de pessoas unidas para cumprir o fecho do programa da troika, porque se isso não acontecesse - a manutenção do governo em funções mesmo em estado de colapso - a senhora Merkel ficaria muito aborrecida.

E porque isto já não é um governo, o primeiro-ministro exclui a descida do IRS e o vice-primeiro-ministro volta a pô-la em cima da mesa com a naturalidade dos funerais. (...)

Porque isto já não é um governo a ministra das Finanças anuncia novos impostos sobre produtos prejudiciais à saúde (o já chamado imposto das batatas fritas ou o imposto Sumol). Concorda imediatamente o secretário de Estado da Saúde - que não o ministro - elogiando exemplos estrangeiros. E depois, como se fosse a coisa mais normal do mundo, o ministro da Economia António Pires de Lima aparece em público a desmentir a ministra das Finanças. (...)

É este ajuntamento que governa o país e vai a votos no dia 25 de Maio em coligação. Se "sucessivos episódios" ainda fossem justificação para derrubar um governo, esse seria o dia. Mas Passos nunca cederá e Paulo Portas foi irrevogavelmente preso a um pacto de sangue, obrigado pelo partido e pelos credores, até ao fim da troika.»

Ana Sá Lopes

21.4.14

Como tempo novo, sem mancha nem vício


@Maria Keil

Revolução

Como casa limpa
Como chão varrido
Como porta aberta

Como puro início
Como tempo novo
Sem mancha nem vício

Como a voz do mar
Interior de um povo

Como página em branco
Onde o poema emerge

Como arquitectura
Do homem que ergue
Sua habitação

Sophia de Mello Breyner Andresen, O Nome das Coisas
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