9.11.24

É mesmo bonito!

 


Vaso "Hibisco", cerca de 1897.
Estúdios Tiffany,


Daqui.

09.11.1975 – «O povo é sereno, é apenas fumaça!»

 


Há 49 anos, a pouco mais de duas semanas do 25 de Novembro, os ânimos andavam bem exaltados.

PS e PPD, secundados por CDS, PPM e PCP(m-l), convocaram uma manifestação de apoio ao VI Governo Provisório e ao primeiro-ministro, com o lema: «Pinheiro, em frente, tens aqui a tua gente!». O Terreiro do Paço encheu-se, mas ninguém recordaria hoje o facto (todos os espaços se enchiam, dia sim dia sim…) sem as granadas de fumo e de gás lacrimogéneo e mais alguns tiros que deflagraram durante o discurso de Pinheiro de Azevedo. Iniciativa de autoria não muito clara e objecto de acusações cruzadas, mas que foi um enorme susto para muitos e gáudio para a esquerda da esquerda que viu a cena em casa, em directo televisivo.

«O povo é sereno, é apenas fumaça!», gritou o então primeiro-ministro, numa tirada que ficou para a pequena história dos últimos dias do PREC e que pode ser ouvida neste vídeo:


09.11.1989 – O dia em que caiu um muro em Berlim

 


Crise da democracia

 

Jackson Pollock

«Tudo é mau nos resultados eleitorais dos EUA. Acontece. Já não é a primeira vez na história que demagogos, populistas, protoditadores ganham eleições e, sem excepção, os efeitos são sempre maus. Não são maus para toda a gente, nem são maus para tudo, mas no geral são maus, em primeiro lugar, para a democracia, depois, dependendo do país, são maus para outros países ou para o mundo. No caso de Trump, são maus para quase tudo, a não ser para a direita radical em todo o mundo e para a Rússia porque, como se vê, eles são “estranhos companheiros de cama”, para não dizer em inglês.

Como quem me lê sabe, não foram uma surpresa estes resultados e a preocupação com a possibilidade e depois com a sua concretização. Estando a escrever dos EUA, em plena Trumplândia, e tendo tido já várias discussões com votantes no Trump, lendo a propaganda republicana, ouvindo as rádios como a Patriot Radio, tenho uma noção do que levou Trump ao poder. Percebe-se muito bem como os MAGA e Trump ganharam primeiro a guerra cultural, depois a guerra política, por esta ordem. A esquerda que anda há mais de uma década convencida das suas “causas fracturantes”, que nos EUA tem consequências práticas, muito mais absurdas do que na Europa, acantonou-se nas elites e perdeu as suas bases sociais, a começar pelos sindicatos. Se lessem Marx, perceberiam que trocar “bases sociais” por “bases intelectuais” é derrota certa. Não é razão única, mas foi a fundação em que todo o resto se construiu: medos, ódio ao “outro”, identidade construída contra o “outro”, radicalidade grupal, substituição da ciência e do saber por fake news e teorias conspirativas, ignorância agressiva, discurso violento nas redes sociais que são excelentes para isso, dissolução de muitos mecanismos que são fundamentais para haver democracia. Não é um anátema contra os votantes de Trump, mas é isso mesmo que os “faz”.

Eu não me irrito com muita coisa, mas a minimização do Trump, antes e depois das eleições, sob várias formas e feitios, deixa-me “balístico” e a cantar o hino nacional como se fazia antes do 25 de Abril, com uma subida do tom de voz numa certa parte da letra. A Marselhesa também serve. E a Constituição americana também.

Não tenham ilusões: há muita gente em Portugal, no processo de radicalização à direita dos últimos anos, que está feliz com a vitória de Trump, e não é só o Chega. Estão felizes com a derrota dos “outros”, os socialistas, os bloquistas, os centristas, os do “sistema”, e essa felicidade transparece por todo o lado.

Sem dúvida que é necessária análise no comentário e na academia sobre as “razões” do que se passou, até porque há muita coisa nova no movimento MAGA e nas razões do seu crescimento e no papel carismático de Trump. Mas para quem sabe o que é a fragilidade da democracia, há um combate político imediato a travar. Nós não estamos nos anos 30, mas também estamos nos anos 30.

Por tudo isto, deve denunciar-se a minimização em curso do que se passou, e as suas várias formas – uma delas é só falar dos malefícios e asneiras dos democratas em tom de fúria, muito trumpista, aliás, para evitar falar dos desmandos de Trump; outra é dizer que não se deve tomar à letra o que ele diz, que hoje tem uma equipa e um programa (um susto de equipa e o programa é o do Project 2025), que não vai fazer o que disse que ia fazer (esquecendo que ele é um narcisista patológico e, pelo menos, vai tentar, deixando um rastro de estragos pelo caminho), que não vai entregar a Ucrânia a Putin, que não vai aprovar taxas aduaneiras retaliatórias, que não se vai vingar (vai, vai) dos seus opositores, e que não vai fazer nada do que prometeu no “primeiro dia” em que quer ser “ditador”. Esquecem-se de que Trump é um criminoso que se vai perdoar a si próprio e aos assaltantes condenados do 6 de Janeiro, e que não há hoje para um homem como Trump quaisquer “checks and balances”, com uma interpretação absoluta do poder presidencial, tendo na mão o Supremo Tribunal, o Senado e talvez a Câmara dos Representantes.

Deixei para o fim a questão, que presumo alguns vão logo fazer depois de lerem o primeiro parágrafo deste artigo: "E, então, a pujança da democracia americana, o valor do voto popular, a escolha inequívoca dos americanos?" É que há um pequeno problema, o mesmo com que faz que seja uma asneira dizer que Hitler subiu ao poder democraticamente: é que a democracia não é apenas a vontade popular expressa no voto, é o primado da lei, o valor dos procedimentos constitucionais, o respeito pelos limites e separação dos poderes. Democracia apenas com o voto, sem a lei, é demagogia e a demagogia é o terreno ideal para os ditadores. Esperem por seis meses de Trump e voltamos aqui.»


8.11.24

Há mais vida para além de Trump!

 



António Capinha


Edmundo Pedro: seriam 106

 


Tive o privilégio de ser sua amiga, de gostar muito de conversar com ele, de ler muitos dos seus textos por vezes antes de serem publicados. Quando fez 99, referimos a festa inevitável que teria lugar para assinalar os 100 – festa que já não existiu.

Retomo um resumido «percurso existencial», de que gosto muito, escrito pelo próprio:

«Comecei a trabalhar aos doze anos numa oficina de serralharia. Daí em diante, interrompi o curso diurno da Escola Industrial Machado de Castro e passei a estudar à noite. Aos treze, entrei para o Arsenal da Marinha. Aí conheci dois vultos cimeiros do movimento operário de então, meus colegas de trabalho na oficina de máquinas do Arsenal: António Bento Gonçalves e Francisco Paula de Oliveira. Este último viria a celebrizar-se sob o pseudónimo de “Pavel”.

O primeiro era então Secretário-geral do PCP, o segundo Secretário-geral da Federação da Juventude Comunista. Ambos exerceram no meu espírito uma influência determinante.

Filiei-me na Juventude Comunista aos treze anos, pouco depois de ser admitido naquela empresa do Estado.

Fui detido pela primeira vez pela polícia política no dia 17 de Janeiro de 1934, pouco depois de ter completado os 15 anos de idade, por estar envolvido na preparação da tentativa de greve geral que deflagraria no dia seguinte. A minha primeira detenção está, pois, estreitamente ligada ao movimento de protesto contra a liquidação do sindicalismo livre. Esse movimento ficaria conhecido na história das lutas operárias como o «18 de Janeiro». Pela minha acção na preparação desse evento, fui condenado pelo Tribunal Militar Especial, acabado de criar por Salazar, à pena de um ano de prisão e à perda dos «direitos políticos» durante cinco anos…

Logo que fui libertado, retomei a oposição à ditadura como militante da Juventude Comunista. Em Abril de 1935 fui eleito, com Álvaro Cunhal, entre outros, para a direcção da Juventude Comunista.

Preso, uma vez mais, em Fevereiro de 1936, sob a acusação de ser dirigente da JC, acabaria, em Outubro desse ano, por ser deportado para Cabo Verde, onde fui estrear o tristemente célebre Campo de Concentração do Tarrafal. Ao fim de nove anos, regressei a Lisboa para ser, de novo, julgado no Tribunal Militar Especial. Depois de ter aguardado julgamento, ao todo, durante dez anos, fui condenado, por aquele tribunal de excepção, à pena de vinte e dois meses de prisão correccional, acrescida da perda dos «direitos políticos» pelo período de dez anos!

Ao longo de todo tempo que mediou entre o fim de 1945 e o 25 de Abril de 1974, conspirei sempre contra a ditadura. De forma especialmente activa, a partir da campanha para a Presidência da República do general Humberto Delgado, durante a qual comecei a preparar, com Piteira Santos, Varela Gomes e outros, um movimento insurreccional que pusesse fim à ditadura.

Estive envolvido, com o grupo inspirado por Fernando Piteira Santos, no «12 de Março» de 1959. Mas, dessa vez, não fui referenciado na polícia política.

Dois anos depois, no dia 1 de Janeiro de 1962, tomei uma parte muito activa no chamado «golpe de Beja», ocorrido na madrugada daquele dia, no Quartel de Infantaria Três, aquartelado na cidade de Beja. Depois daquele movimento ter abortado, fugi para o Algarve onde fui detido, em Tavira, na manhã desse mesmo dia, junto com Manuel Serra e o então capitão Eugénio de Oliveira. Pela minha intervenção nesse movimento fui condenado, em 1964, a três anos e oito meses de prisão maior e à perda do «direitos políticos» pelo período de quinze anos. Cumpri quatro anos de cadeia. Fui libertado no fim de 1965.

Aderi ao Partido Socialista, por intermédio de Mário Soares, em Setembro de 1973. Sou, portanto, um dos fundadores daquele partido.

No primeiro congresso realizado na legalidade, em Dezembro de 1974, fui eleito para a sua Comissão Nacional e, em seguida, para a sua Comissão Política. Fui integrado no seu Secretariado Nacional em 1975. Em 25 de Abril de 1976, nas primeiras eleições legislativas, fui eleito Deputado pelo PS. Exerci esse cargo durante onze anos. Em 1977/78, fui designado Presidente da RTP. Actualmente continuo no PS, mas como militante de base.

Ninguém na minha família escapou à repressão salazarista. O meu pai estreou comigo o Campo de Concentração do Tarrafal. Esteve ali, tal como eu, cerca de nove anos. Foi, reconhecidamente, o mais perseguido de todos os presos daquele presídio de má memória. É considerado o mártir do Tarrafal. Morreu no exílio, em França, dois anos antes do 25 de Abril. A minha mãe esteve detida durante longo tempo por ser militante do PCP. A minha irmã Gabriela, que fugira de Portugal para evitar ser detida pela sua actividade no âmbito do movimento estudantil, morreu em Paris, aos vinte anos, na emigração política. Um irmão meu, o João Ervedoso, foi assassinado no âmbito de uma manifestação estudantil, por um provocador ao serviço da polícia política, quando tinha acabado de completar catorze anos. O meu irmão Germano, o mais novo dos três, entretanto falecido, esteve detido durante três anos por envolvimento na preparação da tentativa insurreccional de Beja. A minha própria mulher, para não fugir à sina da família, também experimentou os cárceres da polícia política.»
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É a classe, estúpido!

 


«Trump ganhou entre os hispânicos porque eles se preocupam com a segurança, com a economia, com os temas de que se fala à volta da mesa da cozinha”, disse, no encerramento da noite eleitoral da CNN, David Urban, conselheiro de Trump na campanha de 2016. Van Jones, advogado de direitos cívicos e democrata, respondeu-lhe com as afro-americanas magoadas por não assistirem à vitória de uma delas, com os trans e com os imigrantes indocumentados. Disse, com razão, que não será a elite a pagar o preço desta eleição. Mas não concedeu na parte em que o republicano tinha razão: sendo brancos, negros, hispânicos ou homossexuais, os americanos que fizeram a diferença, votando em Trump ou ficando em casa, fizeram-no por causa da economia, dos salários, das contas para pagar. Aquilo de que a esquerda costumava falar.

Esta foi, antes de tudo, uma derrota dos democratas. Trump até perdeu 1,6 milhões de votos. Só que Kamala perdeu mais de 13 milhões. Desta vez, não são precisos cientistas políticos para explicar o resultado das eleições: 72% dos norte-americanos estão insatisfeitos com a situa-ção do país, dois terços dizem que a economia está mal e, destes, 70% votaram em Trump. Kamala ficou abaixo de Biden em todo o lado, perdeu voto negro e, acima de tudo, perdeu voto hispânico. Durante dois anos, a inflação superou o aumento dos salários. Apesar de isso ter sido, em grande parte, compensado nos dois últimos anos, com um aumento real de salários, a cicatriz ficou lá. Quase todos os governos democráticos foram castigados pela crise inflacionista. Assim como Trump foi castigado pela pandemia. Não sendo os números da economia maus, procuramos a razão do voto em erros de perceção dos eleitores. Mas de que andaram os democratas a falar, durante este tempo todo? Da democracia, com razão. Se ainda deram alguma luta foi por causa disso. E do que acham que interessa a cada nicho eleitoral em que pensam quando pensam em política. Porque teimam em seccioná-lo pela etnia, género ou orientação sexual para explicar um fenómeno que está nos velhos livros de política: a economia, estúpidos!

Diz-se que os democratas abandonaram os trabalhadores brancos, mas o que toda a gente ouve é a palavra “brancos”, não a palavra “trabalhadores”. Essa é a grande vitória do trumpismo. Como se viu pelo comportamento eleitoral, quando a condição social supera a identitária, trabalhadores hispânicos e negros votam como os trabalhadores brancos. E, no entanto, continuamos a falar como se o racismo e o sexismo de Trump fossem o maior segredo para a sua vitória. Quando, num debate, em 2018, o instalado congressista democrata Joe Crowley exibia o seu trabalho pelas minorias, Alexandria Ocasio-Cortez, a jovem de 29 anos que o iria derrotar, não lhe recordou que era uma mulher porto-riquenha. Disse-lhe: “O que está em causa não é a diversidade ou a raça, é a classe.” Só que a palavra “classe”, ao contrário de “etnia” e “orientação sexual”, passou a ter um peso ideológico que a tornou impronunciável. Esta é a derrota histórica que deu à extrema-direita a hegemonia na classe trabalhadora num dos países mais desiguais do mundo desenvolvido. De tal forma, que já nem compreendemos um fenómeno eleitoral que nada tem de extraordinário.

Nestas circunstâncias, Kamala até fez milagres. Em três meses, com baixa popularidade e sem ter ido a primárias, preparou um debate que venceu e fez campanha por todo um continente. E ainda teve mais votos do que Hillary, em 2016. O pecado original foi a recandidatura de Biden. Kamala só foi apanhar os cacos. Ainda assim, como é que Trump, depois do 6 de janeiro, consegue ser um dos dois republicanos que, desde 1988, vence no voto popular? Porque o sistema normalizou uma tentativa de golpe contra a democracia. Nisto, não há meios termos: ou era condenado e preso, ou um candidato como os outros.

Este não é o Trump de 2016. Controla a Presidência, o Senado e provavelmente a Câmara dos Representantes. O Supremo tornou-o inimputável, mudando a natureza do regime. Esmagou o partido republicano, que é um mero suporte institucional do movimento MAGA. E rodeou-se de gente ainda mais fanática e perigosa do que ele. Começa, em janeiro, uma nova ordem de bilionários tecnológicos que se sentarão na cadeira do poder político para moldar o mundo aos seus sonhos distópicos. As duas guerras que nos assustam seguirão para o seu epílogo trágico. Esta vitória vai-se disseminar por todo o mundo ocidental. E vai ser tudo demasiado rápido para nos prepararmos. Mas podemos, ao menos, perceber que as respostas que temos dado não resultam. Talvez as certas sejam as que esquecemos.»


Um pouco mais de azul (17)

 




7.11.24

Os bons velhos tempos

 

«Não é possível exagerar as consequências da viragem norte-americana. A Guerra Russo-Ucraniana confirmou que a Europa não é capaz de garantir a sua própria segurança sem os Estados Unidos e sem a NATO, e que os Estados europeus continuam a não ser capazes de se unir, se não puderem contar com a direcção estratégica e política do seu aliado indispensável. Por certo, os responsáveis políticos europeus estão há meses a preparar-se para a possibilidade da reeleição de Trump, mas parecem estar tão impreparados como no dia em que começaram a sua preparação. As três principais potências europeias estão divididas, o velho eixo formado por Berlim e Paris deixou de existir e não há sequer uma estratégia comum credível para preencher o vazio que a próxima retirada norte-americana vai deixar na Ucrânia.

Os Estados Unidos deixaram de travar as guerras dos outros – na Europa ou no Médio Oriente. A sua prioridade, numa linha de continuidade essencial, é conter a China e impedir a hegemonia chinesa na Ásia. A Europa e os aliados europeus são relevantes na exacta medida em que puderem contribuir para o objectivo central da estratégia norte-americana.»

Os bons velhos tempos chegaram ao fim.»


07.11. 1913 – Albert Camus

 


Um novo tempo de trevas

 


«O farol da democracia dos Estados Unidos apagou-se esta terça-feira e só os mais optimistas hão-de acreditar que a sua luz só está temporariamente perdida num nevoeiro fugaz. Na obscuridade, não haja dúvidas, haverá jornalistas, magistrados, servidores públicos, académicos, artistas e milhões de cidadãos a lutar pelo seu brilho e a seguir a iluminação dos seus avisos. Mas depois da onda de choque provocada pela brutal vitória de Donald Trump nas eleições de terça-feira, não há razões para se acreditar que está em causa um fenómeno passageiro. Os Estados Unidos e, muito provavelmente por efeitos de contágio, a Europa e o mundo estão de volta a uma ordem política. O sentido de progresso da Humanidade em direcção às Luzes que o Ocidente começou a construir há dois séculos entrou outra vez em recuo. As trevas estão de volta. A democracia sofreu uma das suas maiores derrotas de sempre.

Que a vanguarda desse movimento esteja no país mais desenvolvido, mais aberto, mais liberal do mundo diz muito do que está em causa. Não se trata da obra de um homem ou de um movimento com poder ou carisma para criar uma onda de choque numa sociedade subdesenvolvida e pouco esclarecida O que mudou radicalmente num curto espaço de tempo foram as pessoas, que perderam o sentido de comunidade, passaram a olhar os outros como uma ameaça e para o poder como uma redenção baseada na agressividade e no conflito. A mudança, clara e indiscutível, que milhões de americanos sufragaram livremente nestas eleições projecta uma nova ideologia. Uma nova forma de ver o mundo e uma nova proposta para o transformar. As suas raízes são antigas, encontram-se no populismo que odeia as elites, na catalogação de inimigos, no desprezo com que se encaram os adversários políticos.

Ao contrário do que aconteceu em outros momentos dramáticos da História, esta emergência do radicalismo da extrema-direita não ocorre num quadro real de dificuldades. Os Estados Unidos, ou a Europa, não vivem numa crise desgraçada como a que causou miséria no pós-I Guerra Mundial ou na ressaca da crise de 1929. Não há desemprego em massa, não há conflitos entre milícias extremistas nas ruas das grandes cidades, não há uma falência óbvia da lei, da ordem ou do Estado como nos tempos que determinaram as trevas dos anos 20 ou 30 do século passado. O que há são percepções, “storytellings hegemónicos”, para usar uma expressão do sociólogo João Teixeira Lopes, que desenterraram os instintos mais básicos e perigosos da humanidade. O propósito é conhecido: criar um quadro de ameaças que exige combate, primeiro, e eliminação, depois.

Sabemos muito bem o que originou esta terrível mudança, mas não sabemos ainda como a reverter. Essa é de resto a origem da grande angústia dos nossos tempos: como recuperar o consenso democrático? Sabemos que a estupidez da esquerda, que trocou as grandes causas, dos pobres, dos operários, das nações oprimidas, pelas múltiplas fatias das causas identitárias, é responsável pelo que está a acontecer. Sabemos que a incapacidade das democracias em travar a crescente e indecente desigualdade na partilha de rendimentos fomentou o ressentimento. Sabemos que a ausência de perspectivas para milhões de pessoas dos países ricos as levou para os braços do niilismo e da desesperança. Mas sabemos também que a aposta no fortalecimento da classe média, desde sempre o cimento da democracia, ou na inclusão dos temas do racismo ou da igualdade de género nos grandes programas dos partidos do centro do poder já não bastam para reverter a tendência.

Não são Trump, Orbán ou Ventura que justificam a maior preocupação. Eles são apenas o espelho e ao mesmo tempo o íman de uma vaga de fundo que começa a dominar as novas formas de ler o mundo. Claro que a estimulam. É evidente que sabem muito bem usar as novas ferramentas da era digital para a acelerar. Mas não haja ilusões: o que eles fazem é regar as sementes da frustração e do ressentimento que foram germinando nas sociedades livres ao longo das últimas décadas. O grande drama existencial dos democratas está exactamente nesta constatação. É fácil apontar o dedo e denunciar as patranhas da demagogia populista e extremista, mas é muito difícil encontrar argumentos, ideias e projectos capazes de mudar o sentimento de uma franja cada vez mais maior das sociedades da América ou da Europa.

Até porque, como já se percebeu, o recurso aos velhos argumentos da razão não funciona. A razão, a grande conquista da Europa e do Ocidente que promoveu o progresso, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, o Estado de direito, as constituições liberais ou a criação de instituições multilaterais como a ONU para regular as tensões geopolíticas, deixou de ser um bem percebido e partilhado por homens e mulheres livres.

A razão nos nossos tempos é lida como um privilégio das elites políticas ou intelectuais. Não é vista um utensílio mental para determinar posições éticas perante os problemas das pessoas ou das sociedades. É apenas um ardil para abrir portas à imigração ou promover as guerras culturais da esquerda. Para os eleitores de Trump ou de Ventura, a razão é o grau zero da política. Nada vale como argumento para a denúncia dos perigos do proteccionismo, da intolerância ou da tirania. Sem quadros de referência éticos ou filosóficos, os eleitores dos Estados Unidos ou, em número crescente, na Europa, estilhaçam todo o catálogo de valores que erigiram as sociedades democráticas. Regressam assim à regra onde os autocratas, a violência do poder e a ausência da liberdade vívida e consciente ditam as regras.

A extrema-direita, oleada por elites empresariais, por homens sem escrúpulos e pelo poder destruidor das redes sociais, chegou para durar. O novo farol dos Estados Unidos vai influenciar o futuro da política no Brasil e na Europa. Autocratas como Putin, Orbán ou Netanyahu serão reforçados – deixam de ser a excrescência do poder político e entram na galeria de estrelas da nova ordem política. A escuridão parece inexorável. As coisas vão piorar até que, num futuro próximo, a luz regresse. Oxalá não seja necessário, como em outros tempos, experimentar a guerra para que a ordem em curso se destrua e seja preciso construir uma nova. Mas nem isso podemos dar por garantido: ouçam-se os discursos de Trump com atenção para se perceber como palavras sensíveis e carregadas de História como “deportação”, “países de merda”, “vermes” ou “miseráveis” se pronunciam sem escrúpulo.

In God We Trust (Confiamos em Deus), diz o lema dos Estados Unidos que se lê nos dólares. Bem precisam.»


6.11.24

Lindo dantes e agora

 


Centro de mesa de cristal verde e donzelas, cerca de 1900.
WMF Alemanha.

Daqui.

06.11.1975 - «Olhe que não! Olhe que não!»

 


Nem os seus dois intervenientes, nem muitos dos que assistiram àquele que foi o mais célebre debate da nossa democracia, estão cá hoje para o recordar. Os outros nunca esquecerão o frente-a-frente entre Soares e Cunhal, em 6 de Novembro de 1975. Durou quase quatro horas – uma eternidade impossível de repetir nas televisões apressadas que hoje temos – e o país parou para ver e ouvir.

Há 49 anos, a poucos dias do 25 de Novembro, eram mais do que raros os pontos de acordo entre Soares e Cunhal. Dessa noite ficou para a história uma frase com que Cunhal respondeu a Soares quando este afirmou que o PCP dava provas de querer transformar Portugal numa ditadura: «Olhe que não! Olhe que não!»





Texto com alguns excertos do que foi dito:


Adelino Gomes e José Pedro Castanheira, Os dias loucos do PREC, Expresso / Público, Lisboa, 2006, pp. 382-383. 
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06.11.1919 – Sophia

 


A economia venceu a democracia

 


«Segundo a sondagem à boca da urna, da CNN, mais de metade dos eleitores de Donald Trump não confiava, ainda antes da votação, nos resultados eleitorais. Mais de 70% dos eleitores estavam preocupados com a violência depois das eleições. Ainda se votava e Trump já falava, preventivamente, de fraude em Filadélfia. Se perdesse iríamos ter molho.

A questão democrática não é, por isso, um espantalho agitado pelo partido democrata. E o voto em Kamala era pouco mais do que um voto contra Trump. Foi quem saiu na rifa para concorrer contra ele. Não venceu primárias e, tirando poder ser a primeira mulher Presidente, não mobilizou por razões positivas.

Se, de um lado, havia a democracia, do outro estava a economia. Segundo a mesma sondagem da CNN, 7% estão entusiasmados com o caminho que o país está a seguir, 19% satisfeitos, 43% insatisfeitos e 29% zangados. Ou seja, 72% não estão contentes. 58% desaprovam o mandato de Joe Biden.

Só era possível vencer isto se a defesa da democracia superasse a vida quotidiana da maioria das pessoas, coisa que raramente acontece. Segundo as mesmas sondagens, 35% valorizava a democracia, 31% a economia, 14% o aborto, (apenas) 11% a imigração e 4% a política externa. Era aqui que estava a esperança.

Os resultados económicos de Biden nem foram maus. Mas os mais castigados pela inflação foram os do costume. Aconteceu ao governo dos EUA o mesmo que aos governos de quase todas as democracias. A relação da inflação, que os salários não acompanharam, e do aumento do preço das casas com a votação salta à vista em qualquer análise do mapa eleitoral. E era previsível.

Neste cenário, Trump não se ficou pela presidência, em que, roubando eleitores democratas e reforçando a base republicana, conseguiu uma pouco habitual vitória de direita no voto popular. Garantiu o domínio do Senado e, à hora que escrevo, os democratas recuam na câmara de representantes.

Chegado o momento de contar os votos, os democratas descobriram o que acabaria sempre por acontecer. Ao transformarem o partido numa aliança de minorias e abandonarem a representação dos trabalhadores, prepararam o momento em que a identidade das minorias sucumbiria à pertença dessas minorias à maioria social dos trabalhadores. Na realidade, os mais pobres, mais castigados pela inflação, são negros e latinos. Parte deles fugiram para Trump.

Quando os democratas desistiram dos “deploráveis”, como lhes chamou Hillary Clinton, abandonaram o eleitorado branco trabalhador. Quando a inflação castigou todos, hispânicos e negros não agradeceram uma representação identitária que ignora a questão económica e social. Isso terá sido, em parte, compensado pelo voto feminino, que, um pouco por todo o ocidente, tem resistido à agressividade misógina e tóxica do populismo de direita. E que, com uma candidata mulher e uma nova centralidade do aborto no debate político, fez diferença. Mas não chegou.

Desta vez, não há grande exercício a fazer para explicar a vitória de Trump. Foi a “economia, estúpido!” Da mesma forma que Trump perdeu, em 2020, por causa da pandemia. Como aconteceu a tantos governos.

Nada disto é surpreendente ou merece, ao contrário de outros resultados da extrema-direita noutras latitudes, grande ciência política. O problema é que a questão democrática é, nas consequências destas eleições, muitíssimo relevante. Como se explica no Podcast de Gideon Rachman, colunista de assuntos internacionais do Financial Times, numa conversa com Ivo Daalder, ex-embaixador na NATO, Trump tem um perfil fascizante. Este não é o Trump de 2016. Está lá o mesmo narcisismo doentio, exigindo a total lealdade à sua pessoa. Mas o partido republicano já não está lá. Quem venceu as eleições foi a MAGA (Make America Great Again). Na última convenção republicana, não havia um ex-presidente, um vice-presidente ou alguém que tenha concorrido a esses cargos. À volta de um Trump, que já não será apanhado impreparado pela vitória, está gente mais fanática do que ele.

Donald Trump define-se pelos seus inimigos externos e internos. Os externos são os imigrantes que invadem o país e, expressão com sonoridade sinistra, “envenenam o sangue” dos EUA. Os internos são os opositores políticos. Não hesitará em usar o Estado para a sua agenda de vingança. O novo Presidente Trump terá o poder da inimputabilidade dado pelo Supremo, que mudou, com esta decisão, o regime democrático nos Estados Unidos. As implicações desta vitória para todo o mundo serão brutais e a elas dedicaremos análises dramáticas nas próximas semanas. Por agora, os americanos voltaram a pôr um autoritário, hoje mais perigoso do que em 2016, no poder. E fizeram-no pela razão mais habitual que a política conhece: o seu bolso não gostou dos últimos quatro anos. Ser contra Trump não chegou.»


5.11.24

Ainda se cheira rapé?

 


Caixa para guardar rapé (diamante, ouro e prata), primeira metade do século XX. Terá pertencido à Princesa Margaret,
Fabergé.


05.11.1941 – Art Garfunkel

 


Art Garfunkel nasceu em 5 de Novembro de 1941 em Nova Iorque. Chega hoje portanto aos 83 este este cantor americano, neto de judeus que emigraram para os Estados Unidos no início do século XX. E ainda não parou, tem concertos anunciados para 2022.

É quase indissociável de Paul Simon, naquele que foi um dos duos musicais, que mais significativamente marcou várias gerações. Conheceu Paul na escola, quando ambos participaram em «Alice no país das maravilhas», na festa de encerramento do 6º ano do ensino básico, e continuaram colegas até ao fim do Secundário.

Em 1963, apresentaram-se oficialmente como «Simon and Garfunkel», publicaram um primeiro álbum no ano seguinte, mas foi em 1965 que emergiram para o mundo com The Sound of Silence. Continuaram juntos até 1970 e decidiram então seguir cada um o seu caminho, curiosamente depois do maior sucesso de sempre: Bridge over Troubled Water.

Reapareceram episodicamente, como em 1981 no famosíssimo concerto no Central Park de Nova Iorque, numa série de espectáculos «Old Friends», em 2003 (nos EUA), seguida por uma outra, internacional, que culminou no Coliseu de Roma com cerca de  60.000 espectadores.

Art Garfunkel também gravou muito sozinho, mas é com Simon que é geralmente recordado.









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Kamala Harris e Donald Trump são iguais?

 


«Alguém duvida que o seu eventual regresso à Casa Branca será mais aterrador do que o seu anterior mandato? Trump fará tudo para desmantelar as instituições democráticas, extirpar o Departamento de Justiça, desmontar aquilo que designa como o “Estado Profundo”, as instâncias que garantem o normal funcionamento federal, substituir milhares de funcionários públicos por followers, e ter tanto poder quanto um Vladimir Putin ou um Kim Jong-um.

O homem que gostaria de ser um Rei ou um Führer tem a vingança preparada e a ameaça da sua existência já tem os seus efeitos na autocensura.»


Liberdade de expressão e discurso de ódio

 


«A trágica morte de Odair Moniz, em circunstâncias ainda não esclarecidas, mas que todos lamentamos, e os acontecimentos que lhe sucederam, vieram reacender o debate sobre os limites da liberdade de expressão.

Quando o país fervilhava com declarações de responsáveis políticos, o novo procurador-geral da República interpelava a juíza portuguesa junto do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) sobre os limites da liberdade de expressão dos jornalistas em casos de violação do segredo de justiça. A pergunta denotou exigência face ao exercício daquela liberdade. A informação, no dia seguinte, de que já tinha sido aberto inquérito às mencionadas declarações, independentemente da anunciada queixa-crime de um grupo de cidadãos, só pode ser lida como um ato de coerência, numa magistratura hierarquizada.

Nos Estados Unidos, a liberdade de expressão é protegida pela Primeira Emenda como um ato de expressão privado que um Estado liberal deve proteger. Mesmo discursos racistas ou apologistas do ódio são protegidos. Esta visão essencialmente negativa da liberdade de expressão não predomina no continente europeu. É possível contrastar a perspetiva negativa da Primeira Emenda norte-americana com uma visão liberal positiva, predominante no espaço europeu continental, que reclama do Estado intervenções concretas para proteger a liberdade de expressão. A maior parte dos países europeus contempla alguma forma de censura ao discurso de ódio, pelo menos através da criminalização do incitamento ao ódio. A jurisprudência do TEDH, embora bastante generosa em matéria de liberdade de expressão, sobretudo no que se refere ao seu exercício no domínio do discurso político, constitui um acervo importante que importa ter em conta. O TEDH já se referiu aos deveres e responsabilidades dos políticos no exercício dessa liberdade. Recentemente, o Tribunal sustentou que afirmações suscetíveis de desencadear um sentimento de hostilidade em relação a uma comunidade não são abrangidas pela liberdade de expressão. Problemas difíceis como as migrações devem ser discutidos evitando a apologia de discriminação racial e comentários vexatórios e humilhantes. Outro dado relevante é a importância do contexto: comentários feitos em contexto político ou social tenso podem ser considerados especialmente censuráveis.

Confesso-me adepta da tese norte-americana: não a da Primeira Emenda, mas a de Jeremy Waldron, autor do livro “The Harm in Hate Speech”. O discurso de ódio mina a igual dignidade de membros individuais de minorias vulneráveis, prejudicando a integração que todas as sociedades democráticas devem promover. Uma democracia madura não é aquela que protege a liberdade de expressão a qualquer custo: é aquela que garante, em simultâneo, nos estritos limites da lei penal, a liberdade de expressão e a dignidade de todos os membros da comunidade.»


É hoje...

 


4.11.24

Temos de voltar a falar de aborto?

 



O dia seguinte

 

«Da semana que passou, apesar das dezenas de especialistas convidados para falar sobre a morte do Odair e os consequentes incidentes, foi Claúdio Gonçalves “Tibunga” – modelo e morador do Bairro do Zambujal – que disse na televisão o mais óbvio e certeiro. Qualquer coisa como: “Quando mataram o meu amigo não quiseram saber, quando começaram a incendiar caixotes começaram a interessar-se”. (…)

No Bairro do Zambujal já se avista polícia a dançar de forma jocosa música africana – e não, não é um acto de policiamento de proximidade; enquanto noutros espaços, políticos assessores municipais ameaçam retirar financiamento a quem participe em protestos democráticos e por melhores condições de vida.

É este o dia seguinte para quem não os ouve mais, que é o mesmo dia de todos os outros de quem lá vive, até nova explosão.»


Para lá da nossa cidade, não há cidadão ou Constituição

 


«Ficámos chocados ao ouvir um deputado defender a condecoração de um polícia, só porque matou um cidadão. Por ouvir outro dizer que o País estaria melhor se a polícia atirasse mais a matar. Fui um dos que ajudou a fazer nascer uma queixa-crime contra dois dirigentes partidários. Mas esta é, infelizmente, apenas a imagem mais agressiva e caricatural da nossa violência social. No dia seguinte ao nosso choque a vida destes bairros continuou. Como, para além de umas tertúlias mediáticas, o país não pretende fazer qualquer reflexão séria sobre a violência policial, estes bairros ou o racismo, essa vida continuará ainda pior do que antes.

O dia seguinte já começou a ser contado por António Brito Guterres, que tem servido de porta-voz, porque nos traz a voz de quem não tem direito a ela: assessores municipais ameaçam retirar financiamento a associações que participam em protestos democráticos e pacíficos, há assédio de polícias e as carreiras de autocarros que servem bairros inteiros foram suprimidas, deixando-os coletivamente isolados.

Ao Expresso, um psicólogo que dirige a Academia Johnson conta que, há uma semana, apareceram oito polícias de shotguns num jogo de futsal numa escola local e pressionaram o árbitro para apresentar cartão amarelo a um jogador que celebrou um golo exibindo uma t-shirt patrocinada para UEFA onde se lê "No to racism", a que acrescentou o nome de Odair Moniz. A arbitrariedade é absoluta e suspeito que será ainda maior quando as televisões abandonarem definitivamente o tema – é sempre tão rápido. A invisibilidade é a maior aliada da arbitrariedade.

Como sabemos, o presidente da Câmara Municipal de Loures, líder recém-eleito da Federação de Lisboa do PS, aprovou uma recomendação do Chega para despejar quem seja condenado em tribunal por ter participado em tumultos. Uma recomendação que viola várias vezes a lei e a Constituição da República: ninguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo crime, sanções acessórias só podem ser decididas pelo poder judicial e o castigo nunca pode ser para todo o agregado familiar – no despautério da última semana, descobri que há quem ache que os filhos são responsáveis pelos erros de pais. Uma pessoa pode ser despejada por violar as regras do uso da casa que ocupa ou por usá-la para cometer crimes (lenocínio ou tráfico de droga, por exemplo), não por cometer um crime fora dela.

Rui Rio, que assinou um manifesto contra os abusos da justiça e do Ministério Público, escreveu que acha isto muito bem. O Estado de Direito é para ele, para políticos, para empresários e para gestores. O mesmo homem que se indignou, e bem, com as buscas abusivas a sedes partidárias e à sua casa defende que autarquias sejam tribunais. Quando chega aos bairros mais pobres, desaparece tudo o que defende para quem tem poder.

Indignei-me com a humilhação pública de Ricardo Salgado, mas descubro-me bem menos acompanhado (pelo menos na elite política e mediática) quando defendo o direito a uma justiça justa para quem mais precisa dela. Não estou, note-se, a escrever que não cometeram crimes e que não merecem punição. Estou a defender o Estado de Direito para todos. Uma Constituição para todos, veja-se bem. A começar, obviamente, pelos que mais facilmente são atropelados pela arbitrariedade do poder. Mesmo que sejam, como muito provavelmente é Ricardo Salgado, criminosos.

Como se o meu espanto não pudesse descansar, vejo o jornal que me habituou a ser defensor intransigente da democracia e do Estado de Direito (ainda antes das duas coisas serem realidade neste país) a dar, nos tradicionais “altos e baixos”, nota positiva a Ricardo Leão. Escreve-se que as suas declarações, que corresponderam à aprovação de uma recomendação inconstitucional, “mesmo que feridas de ilegalidade, têm um fundo de justiça”. A ilegalidade é, portanto, um pormenor. Para quem viva nestes bairros e cometa um crime, chega “um fundo de justiça”. A lei é para a cidade legitima, onde vivem os verdadeiros cidadãos que a Constituição protege.

Tudo isto é mais simples de explicar do que parece porque é muito mais antigo do que julgamos. A fronteira da legalidade está na porta daqueles bairros. Muitos julgam que a lei não existe para quem lá vive. Mas, na realidade, ela não existe, ali, para a maioria dos que lá não entram. Há séculos que assim é: a cidadania acaba onde acaba a cidade. A nossa. O Chega chama aos que têm direito à cidade e à lei “portugueses de bem”. Nós, mais polidos, somos menos explícitos. Apenas nos esquecemos que os outros são cidadãos.

É deste sentimento geral que nasce o abuso policial. É por isto ser assim que um polícia pensa mais tempo antes de tocar com um dedo num branco que fale bem e use gravata do que em disparar sobre Odair ou outro como ele. Este polícia não é pior do que nós. Nada disso. É, de certa fome, vítima do que esperamos dela. Apenas sabe que, aos olhos do País, não somos todos iguais. E que, por isso, as consequências do erro perante uns e outros serão diferentes. Apenas suja as mãos para responder ao nosso classismo, servindo-o.

NOTA: Pensei escrever sobre deputados que desrespeitaram, brincaram ou fizeram política com a morte do pai de duas pessoas com quem dividem o local de trabalho. Intriga-me como conseguirão voltar hoje ao Parlamento, tendo de se cruzar com elas, e não baixar a cabeça de vergonha. Depois desisti. Sou comentador político e o problema destas pessoas não é político. É serem, como seres humanos, uma miséria. Não merecem o nosso tempo.»

Daniel Oliveira

O moderado

 



3.11.24

E ninguém comprava online

 


Azulejos Arte Nova e porta de entrada. Leiden, Países Baixos, 1900-1906.
Arquitecto: W.C. Mulder.

Daqui.

Os americanos que o digam

 


100 anos de regressão

 

«Um estudo de há dias revelou que 40% dos americanos entre os 16 e os 29 anos, a nova geração, recolhiam toda a informação de que dispunham do TikTok: têm as melhores universidades do mundo, uma imprensa de referência, museus espantosos, um cinema e uma literatura de vanguarda, mas, para metade deles, basta-lhes as redes sociais para saberem do mundo. Por isso, os milionários entre os milionários, como Musk ou Zuckerberg, controlam as redes sociais e metade dos jovens que votam escolhem Trump.»

Miguel Sousa Tavares


Inconsciência ambiental

 


«A tragédia que inundou Espanha nos últimos dias despertou-nos para os efeitos catastróficos das alterações climáticas. Centenas de vidas perdidas, um registo incontável de desaparecidos, um quadro medonho de destruição que deixou a Comunidade Valenciana mergulhada num cenário de guerra. Quase sem darmos conta, passamos de simples sinais e alertas validados cientificamente para as consequências trágicas destes fenómenos extremos. Choveu tanto num dia como num ano inteiro. E sabemos que voltará a acontecer, cada vez com mais frequência. Ainda assim, meio Mundo ignora as evidências, ridiculariza as lutas de jovens inspiradoras como a sueca Greta Thunberg, tantas vezes os mesmos que surgem depois, travestidos de especialistas, a clamar por mudança nas práticas que nos conduziram à emergência ambiental. Um problema de dimensão global não se resolve a atirar tinta para obras de arte ou na direção de políticos, é certo. Mas ignorar será sempre pior, gerando consequências ainda mais devastadoras. As novas gerações, imbuídas de uma consciência ambiental mais vincada, são a única esperança. Precisamos de ser mais produtivos, mas a exploração dos recursos naturais tem de evoluir em harmonia com o futuro da Terra, cujos gritos de sobrevivência são audíveis em tragédias como a de Espanha. Compete aos governantes, em particular, e à sociedade, em geral, comandar este processo e, definitivamente, encostar às cordas os negacionistas, que estão em todo lado, sobretudo associados a movimentos extremistas de direita. Apontemos a novas dinâmicas, otimistas e responsáveis, porque o tempo é tão curto como relativo, mas o espaço não tem limites. A margem para evoluirmos é inesgotável, ao contrário dos recursos do planeta, pelo que devemos ter isso sempre presente. A mudança depende de todos e começa em cada indivíduo, cabe aos políticos acrescentar-lhe escala.»