@Gui Castro Felga
Quantas vezes uma história não vale mais do que vinte parágrafos de explicações teóricas! É o caso desta crónica de José Vítor Malheiros no Público
de ontem (sem link).
«A cena passa-se em 1942. Messe de oficiais nazis no campo de extermínio de Auschwitz. Entra de rompante na sala um oficial de uniforme desalinhado, cabelo em desordem, olhar tresloucado.
“É terrível, é terrível. Espreitei pela janela do Edifício H e sabem o que eles estão a fazer? A gasear os judeus. A gaseá-los todos. E depois estão a queimar os corpos naqueles fornos... É horrível!”
Os oficias olham-no com um ar indiferente, alguns com um leve ar de troça.
“Temos de parar aquilo!... Imediatamente!”.
“Sim?”, diz finalmente um dos oficiais mais velhos, olhando-o sem se levantar, com um ar de autoridade. “Então como é que achas que os devíamos matar?” (Olha em volta para preparar os camaradas para um momento de diversão. Os presentes voltam-se para gozar a cena. Sorrisos irónicos.)
O olhar do oficial que acabou de entrar salta de cara em cara, com desespero, à procura de um gesto de simpatia.
“Não sei, mas isto é horrível, temos de parar com isto...”
“Com uma bala na cabeça? Matamo-los com uma bala na cabeça?..”
“Não sei, não sei, mas assim não...”
“Pois é... É que é muito fácil chegar aqui e começar a criticar, mas depois quando se pergunta qual é a alternativa não se avançam soluções...”
“Não sei qual é a alternativa, mas isto não... É horrível... É imoral… Não podemos...”
“Se os matássemos com uma bala demorávamos imenso tempo e era caríssimo. O gás é mais rápido e mais barato.”
“Mas temos mesmo de os matar?...”
(Um murmúrio percorre a sala. Alguns oficias deixam de sorrir.)
“Não sei... se calhar podíamos não os matar... todos...”
“E quê, libertávamo-los? E depois tínhamos de lhes devolver as casas, não? Já pensaste nisso? E temos de pensar na nossa segurança. É muito fácil dizer isso...”
“Se calhar podíamos prendê-los... Prisão perpétua!...”
“Isso é mesmo teu. Isso é de uma ingenuidade! É muito fácil dizer isso, mas e a alimentação? Pensaste na alimentação? E alojamento? E roupas? Pois é, não pensaste... ”
“Mas é horrível... não podemos fazer isto...”
“Então arranja lá uma alternativa, tu que achas que és mais esperto que os outros todos! Tu achas que nós não andámos a matar a cabeça para ver se encontrávamos outra maneira de fazer isto? Mas não há alternativa... Agora é muito fácil vir para aqui dizer que isto é horrível, que há maneiras melhores de fazer e mais não sei quê, mas depois quando te pergunto que maneiras melhores é que são essas, não sabes, pois não? E se achas que há outras soluções, tens uma oportunidade agora para dizer qual é. Arranja-me uma alternativa e eu vou já lá fechar o gás...”
“Então fecha... vai fechar o gás...”
“E depois o quê? É que não é só fechar o gás. É preciso arranjar uma alternativa. Arranja-me uma maneira barata e rápida de matar aqueles gajos todos e eu adopto-a logo...”
“Mas se calhar podíamos falar com eles...”
“É pá, há ali gajos a falar mais línguas que eu sei lá... Não dá para falar. Isto é a única solução. Tu achas que eu não acho isto horrível? Tu achas que se houvesse uma alternativa eu estava a fazer isto? A questão é que não há...”
“Mas é horrível... o cheiro do gás, aqueles gritos...”
“Ah, isso é diferente! Aí já te dou razão!... O cheiro realmente é horrível. Já disse que era preciso queimar uns ramos de pinheiro...”
“O ranger daqueles portões, nunca me vou esquecer do ranger daqueles portões! E os gritos...”
“Bom, também não se pode insonorizar aquilo tudo. Mas o ranger dos portões fizeste bem em chamar a atenção. Tás a ver? Isso já é uma crítica construtiva. Amanhã vou mandar pôr óleo nos portões. É assim, de boas ideias é que nós precisamos... não é de discursos bota-abaixo que depois não dão alternativas...”
“Mas não podemos fazer isto... não podemos...”
“Não há alternativa, pá... Para mais já temos isto tudo a andar. Vir para aqui criticar sem ter alternativas é muito fácil.”»
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