12.10.11

Liberdade, religião e jasmins


Mesmo quem não viu Persepolis, um filme francês de animação da iraniana Marjane Ebihamis, estreado em 2007, conhece certamente excertos, tantos são os pequenos vídeos que circulam no Youtube.

Volta agora a ser notícia na Tunísia, desde que uma cadeia de televisão o exibiu na íntegra, traduzido para árabe tunisino. A sede da referida cadeia foi atacada no passado Domingo mas bem antes era já acesa a polémica, mesmo em meios considerados pouco extremistas, nas redes sociais e não só. Porquê? Porque a heroína «consome droga, bebe álcool, vive experiências sexuais e, sobretudo, se dirige a um Deus representado por um velho barbudo - um ataque à moral e à proibição de representar Deus no Islão».

Vale a pena ler um texto publicado em Rue 89, que resume bem a complexidade das muitas questões que estão em causa, no «mal-entendido das revoluções árabes», com «um fosso de incompreensão que vai revelar-se rapidamente entre os sonhos europeus de um mundo árabe liberto dos seus pesos tradicionalistas, aberto à pluralidade, e a realidade de uma sociedade maioritariamente conservadora».

A revolução foi feita contra a ditadura, não contra a religião, «falar hoje em nome de valores universais é um suicídio político», lembram algumas vozes insuspeitas, «foi a esquerda laicista que, ao organizar uma manifestação pela laicidade, em Fevereiro, desencadeou o reforço identitário», afirmam outras. Nas redes sociais, lêem-se comentários como estes: «a nossa liberdade não é como a deles, planificada e mediatizada por franco-maçons e judeus», «já não estamos no domínio da liberdade expressão, este filme é blasfematório».

Nessma TV, a cadeia que difundiu o filme, é considerada suspeita de «ter uma agenda estrangeira, ditada pelo sionismo e pelo imperialismo». Defende-se afirmando que, bem pelo contrário, é este o momento oportuno para debater o problema da liberdade de expressão, quando grupos extremistas muçulmanos tentam controlar a cultura» e porque «muitos tunisinos recusam que o debate sobre a identidade, a liberdade e o papel da religião no espaço social se encerre antes mesmo de ter começado». Mas não vai ser fácil!

As cenas continuarão nos próximos capítulos, tentarei segui-las, mas devo dizer que com pouco optimismo. Não só mas também por ter vindo recentemente de três países esmagadoramente muçulmanos, cada vez tenho mais enraizada a convicção de que democracia (com liberdade de expressão, como é óbvio...) e verdadeira laicidade são absolutamente indissociáveis e que não vale a pena adiar este problema nem escondê-lo debaixo de tapetes. Abater ditadores é condição necessária, mas não suficiente, para que não murchem rapidamente todos os jasmins do universo.


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5 comments:

Miguel Serras Pereira disse...

Bravíssimo, Joana!
Ainda mais pertinente porque estes tempos de crise parecem propícios às mais desvairadas proclamações de que a salvação só poderá vir de uma via e verdade acima das incertezas, dúvidas, audácias e ensaios da nossa razão de mortais, de que esta ou aquela igreja ou organização de fiéis é a depositária por excelência e fora da qual só há abominação, impiedade e erro. O que dizes do derrubamento das ditaduras instaladas como condição necessária, mas não suficiente, aplica-se mutatis mutandis ao combate à crise e ao regime que a alimenta e impõe. A questão religiosa e as suas metamorfoses continuam na ordem do dia.

miguel(sp)

Joana Lopes disse...

Também me parece, Miguel, que há um surto de «espiritualidade» religiosa, mesmo que ainda tímido, até onde menos se espera. Para já não falar da esperança depositada nas religiões para a «aliança» das civilizações.

Helena Araújo disse...

Parece-me que vamos ter de esperar sentados, por muito que nos custe.
São percursos que essas sociedades terão de fazer sozinhas. Não há dominó democrático que funcione.
Há tempos ouvi um tunisino dizer que democracia não é para aqueles países. Que o problema das ditaduras derrubadas era a corrupção (no que foram muito ajudadas pelo Ocidente, shame on us!), e que deviam ser substituídas não por uma democracia mas por uma mão (muçulmana) forte e justa.
Lembrei-me dos muitos portugueses que suspiram por "um Salazar que venha pôr ordem nisto".

Joana Lopes disse...

É isso, Helena, infelizmente julgo que é isso mesmo.

AEfetivamente disse...

Muito interessante e concordo. Sem laicidade não haverá verdadeira democracia. E estou apreensiva com a Tunísia, país de que gostava muito malgré tout. Vamos ver...