PUK, 1894
«Como os alemães não tinham acesso à borracha, cujas fontes de fornecimento se encontravam no Império Britânico, e como o bloqueio naval na guerra impedia o abastecimento da indústria alemã desse produto, inventaram uma borracha sintética que se tornou o ersatz mais famoso. A palavra ersatz acabou por designar os produtos de substituição, de um modo geral de pior qualidade do que o original.
A nossa desdita é que no dia de hoje o nosso discurso público, sempre muito débil, está cheio de produtos de ersatz, que vivem dos lugares-comuns e do escapismo, que trazem para o discurso uma dose de superficialidade logo à cabeça, e o resto é o que se imagina. Antes de aparecer uma ideia, aparece um lugar-comum, um divertimento, um produto de propaganda moderna a que chamamos marketing, uma rapidez verbal que funciona bem com a redução do vocabulário circulante e com a ausência do pensar.
Vários mecanismos acentuam este processo, que pode ser cómodo considerar etário, mas na realidade impregna tudo para baixo e para cima das idades. A sua principal consequência é que, ao pensar-se pouco e ao falar-se guturalmente, com um “saber” resultado dos fragmentos virais oriundos das redes sociais, as pessoas tornam-se fáceis produtos para a manipulação. E não tenham ilusões de que há especialistas nessa manipulação, através de notícias falsas, de manipulação de comentários e pontuações a empresas (restaurantes são o caso mais fácil de detectar), de utilização de “influenciadores” pagos, usando todas as redes sociais, o Facebook, o Instagram, o Twitter, o TikTok nas suas diferentes variantes conforme os países. Mas com dinheiro e recursos chega-se à imprensa, à rádio e à televisão. Não é nada de novo, como a gravura do Puck ilustra, mas então ainda se liam jornais e não apenas patetices divertidas.
O que se passa hoje é qualitativamente diferente dos seus antepassados. O mundo comunicacional é diferente, omnipresente, e mais obscuro do que nunca. Não se trata de produzir os Protocolos dos Sábios de Sião, trata-se de viver num mundo em que se respira esses protocolos. Como não há quase nenhum escrutínio destes processos, usados por serviços secretos, por agências de comunicação, ao serviço de governos ou de empresas, as pessoas são facilmente manipuladas em toda a sua vida, afectos, consumos, percepção do mundo, escolhas e votos. O que está em causa é a liberdade. A liberdade, já de si precária por muitas razões que têm a ver com a riqueza e a pobreza, com a cultura no sentido lato e com a fragilidade humana, é ainda mais posta em causa quando se torna fácil enganar-nos e, no fundo, mandar em nós.
Por exemplo, ainda ninguém me explicou qual é o trade-off que um jornalista ou editor de um jornal faz para publicar as notícias que chegam por via de uma agência de comunicação, sem qualquer critério jornalístico. Ou é só coincidência que as notícias nas páginas da imprensa económica, as escolhas dos entrevistados ou convidados para comentários, as notícias sobre escritórios de advogados ou sobre o sucesso de empresas ou sobre prémios de excelência ou outras variantes de prémios comprados, são de clientes dessas empresas, cujos serviços são exactamente estes. Se tivesse lá a indicação de “publicidade paga”, muito bem, mas não, são páginas temáticas iguais às outras.
Há muitos outros mecanismos deste tipo, nos parlamentos, nos partidos políticos, nas organizações internacionais, nas empresas, ou para promover pessoas ou grupos, ou para “despromover” a competição. Estes processos são facilitados pela crescente substituição da comunicação social como fonte de informação pelo sistema das redes sociais onde também actuam manipuladores profissionais.
A brutal simplificação do debate público, fruto da crescente “sociedade do espectáculo”, usando processos de superficialização como o “engraçadismo”, os “influenciadores”, o papel crescente de distracções antigas como o circo, agora o futebol, e modernas como o “pão”, ou seja, a comida, ocupa o precioso espaço comunicacional e retira aquilo “que não interessa a ninguém”.
O problema é que há quem se interesse, e muito, por “aquilo que não interessa a ninguém”, e quer ficar sozinho nesse interesse, pelo que as distracções são excelentes para os outros. E se pensam que isto é uma teoria conspirativa, olhem com mais atenção para as opções editoriais de jornais, rádios e televisão, para as suas escolhas de temas e comentadores para o horário nobre, para a crescente impregnação da antigamente chamada comunicação social “de referência” pelo “tabloidismo”.
O grande motivo não é tomar o poder, nem nenhuma conspiração obscura, mas ganhar dinheiro, por boas e más razões, mas há um resultado desse processo de superficialidade e de “puxar para baixo”, e esse, sim, pode tirar-nos liberdade e tornar-nos um rebanho que não conhece os seus pastores, mas que acaba por dar ou na tosquia ou no matadouro.»
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