20.7.23

O cartoon também é (e bem) sobre Portugal

 


«O cartoon "Carreira de Tiro" que passou na RTP gerou celeuma. A Polícia de Segurança Pública (PSP) apresentou queixa-crime contra a RTP porque considera que “representa juízos ofensivos da honra e consideração de todos os profissionais da PSP que diariamente dão o seu melhor para garantir a legalidade democrática”. Por sua vez, o Ministério da Administração Interna (MAI), através do seu ministro José Luís Carneiro, vem a público mostrar o seu desagrado e dá ainda um puxão de orelhas à RTP, dizendo que esta não deve colocar “em causa a imagem e o prestígio das instituições”. O ministro vai mais longe e diz que as forças de segurança portuguesas garantem o cumprimento do princípio da igualdade.

Ora, se está tudo bem, porque temos, desde 2021, o chamado “Plano de Prevenção de Manifestações de Discriminação nas Forças e Serviços de Segurança (PPMD)”? Ter-se-ão esquecido da investigação do consórcio de jornalistas que revelou o discurso de ódio de 591 polícias? Como se pode passar uma esponja por cima do relatório da Comissão Europeia Contra o Racismo e a Intolerância (ECRI, 2018), que diz que a extrema-direita se infiltrou na polícia e que as pessoas negras e ciganas são alvo de violência policial, ou os relatórios do Comité Anti-Tortura (CPT) do Conselho da Europa que assinalam, não só que Portugal é um dos países com número mais elevado de casos de violência policial na Europa Ocidental e que estes tendem a ficar impunes, como que afrodescendentes e estrangeiros tendem a ser alvo de maus tratos pela polícia (2018 e 2020)? Ou ainda o relatório do Comité de Direitos Humanos das Nações Unidas (2020) que aponta que, em Portugal, as pessoas de origem cigana e afrodescendentes tendem a ser alvo de violência policial. Como se pode dizer que tudo vai bem, quando a esmagadora maioria das queixas de racismo contra as forças de segurança são arquivadas?

A liberdade de expressão é um direito fundamental da democracia e tem efetivamente limites, como o direito à igualdade e não discriminação. Mas criticar não é o mesmo que difamar; a polícia não é um grupo social e historicamente discriminado; também não é um grupo de pessoas, mas uma instituição do Estado e uma com o monopólio da violência legítima, aspetos que lhe trazem maior responsabilidade e escrutínio social.

É incrível que nestes discursos indignados só a defesa da “imagem”, “do bom nome”, “do prestígio” e da “honra” seja o horizonte quando se poderia aproveitar para dizer que o enviesamento étnico-racial da “Carreira de Tiro” se deve, sobretudo, a opções políticas e económicas a montante, que têm causado empobrecimento, segregação, reproduzido desigualdades étnico-raciais e feito com que as políticas de “segurança” substituam o que deveriam ser políticas sociais. O que mancha o bom nome da instituição são coisas como o artigo 250 do Código de Processo Penal e a política das Zonas Urbanas Sensíveis (ZUS), que contribuem para que agentes se relacionem com cidadãos de forma distinta, consoante se trate de um cidadão do bairro da Bela Vista ou da Lapa, de uma pessoa negra ou de uma pessoa branca. O que ameaça o prestígio da instituição é a não monitorização independente do racismo institucional na polícia e nas prisões.

Felicito a autora, Cristina Sampaio, a Spam Cartoon e a RTP pelo cartoon, achei importante e corajoso que a questão fosse abordada, porque o serviço público de televisão deve servir para a formação de uma opinião pública crítica, até mesmo sobre o Estado. Mas não posso concordar com o argumento de que o cartoon se dirige apenas à realidade francesa, posição que seria depois seguida pelo ministro da Cultura.

O cartoon poderá ter surgido a propósito do assassinato de um jovem de origem argelina, Nahel Merzouk, pela polícia francesa, contudo, é preciso não retirar de cena que o racismo institucional na polícia é uma das questões que mais têm suscitado debate público e mobilização política nos últimos anos a nível nacional, com casos como o da esquadra de Alfragide (2015), do bairro da Jamaica (2019) ou a agressão a Cláudia Simões na Amadora (2020), e internacional, de que o movimento Black Lives Matter/Vidas Negras Importam é exemplo.

Dizer que o cartoon nada tem que ver com a sociedade portuguesa é um desserviço ao combate ao racismo em Portugal e uma cedência, que não podemos fazer, ao medo.»

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