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16.10.21
16.10.1982 – 39 anos sem Adriano
Adriano Correia de Oliveira tinha apenas 40 anos quando morreu. Estudante de Direito em Coimbra, aderiu ao PCP na década de 60, foi activista na crise académica de 1962 e participou num elevado número de actividades culturais, sobretudo naquela cidade universitária.
«Trova do vento que passa», com poema de Manuel Alegre, gravado em 1963 no seu primeiro EP, viria a tornar-se uma espécie de hino da resistência dos estudantes à ditadura.
Muitos outros temas se juntaram, de um dos nossos mais célebres cantores de intervenção, antes e depois do 25 de Abril.
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Esquerda cativada
«Para falarmos de Orçamento temos de perceber em que ponto estamos. Durante a pandemia, entre o início de 2020 e junho de 2021, o Estado português teve uma despesa adicional discricionária de 5,6% do seu PIB. Nas economias avançadas, em que nos integramos, foram 17%. No mundo, quase 10%, nos EUA 25%. Ficámos próximos dos países emergentes e seremos dos últimos a recuperar. Segundo a OCDE, 30 meses depois do pico da queda, o PIB mundial estará 7% mais alto, o dos EUA 6%, o da zona euro uns medíocres 2% e o de Portugal 1%. É neste cenário, num momento decisivo e no último ano em que não temos o garrote dos limites ao défice, que o Governo propõe um Orçamento que tem como prioridade melhorar o saldo estrutural e em que os estímulos à economia correspondem a uns miseráveis 0,5% do PIB. Porque se fia no PRR, onde compensará mínimos históricos de investimento público. Em vez de um estímulo adicional, como se pretendia, Costa dá com o PRR o que Leão tira no OE.
É verdade que há alterações fiscais que tornam o sistema ligeiramente mais progressivo e há um reforço de apoios sociais. Mas veremos se haverá alterações na legislação laboral, sobretudo na caducidade da contratação coletiva. É verdade que Costa se prepara para atirar dinheiro para a saúde, mas veremos se mexe nas carreiras médicas e de enfermagem para estancar a sangria para o privado que matará o SNS. A pressão faz-se também fora do OE, porque BE e PCP sabem que nem este Orçamento de contenção é real. Há coisas acordadas com os partidos que se repetem há três Orçamentos sem nunca serem cumpridas. Voltaremos a ter um ano de promessas cativadas, que tiveram como última vítima visível a ferrovia e como vítimas silenciosas muitos serviços em rutura. O oposto de “contas certas”. O grito de Pedro Nuno Santos foi de quase todo o governo: os Orçamentos são anúncios que ficam na gaveta de João Leão. Perdeu-se a confiança.
Saltar da apresentação deste dececionante OE para crise política, ignorando o seu conteúdo, é esvaziar a negociação. Desde o fim da ‘geringonça’, o Governo tem usado a mesma tática: apresenta um Orçamento que ignora as propostas dos “parceiros”, cede com medidas que já tinha de reserva e acaba a fazer chantagem. Desta vez, o Presidente quis retirar força negocial ao PCP e ao BE e saltou logo para a última fase. Mas eles não devem negociar apenas este ou aquele apoio. Pôr a economia em lume brando é um crime pelo qual acabarão por ser responsabilizados. Os Orçamentos devem ser aprovados porque são minimamente satisfatórios, não por medo de eleições. Depois de Costa ter sido fundamental para forjar a ‘geringonça’, faz falta alguém que arrisque e aproveite as pontes criadas para reformas progressistas. O PS tem de perceber o que aconteceu nas autárquicas. Os próximos dois anos não se podem arrastar na dependência da propaganda da ‘bazuca’, da falta de alternativa e da chantagem para ter maioria. Ou a esquerda se descativa e o espírito da ‘geringonça’ se renova ou a mudança virá com uma direita aditivada pelo fanatismo da IL e o ódio do Chega, com quem o PSD se entenderá. O pântano agiganta crises políticas, não as evita. Está nas mãos do PS negociar a sério. Coisa que não perdeu um minuto a fazer, neste OE.»
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15.10.21
As Lavadeiras de Lisboa
As lavadeiras dos arredores de Lisboa traziam a roupa branca já lavada, distribuíam-na pelos clientes e carregavam nova encomenda. Reuniam-se em certas estalagens da capital (na Praça da Figueira ou Poço dos Negros, por exemplo), dormiam por vezes em cima das próprias trouxas de roupa e, pela manhã, partiam para casa e recomeçavam o ciclo.
Fotografia de Joshua Benoliel, início do Século XX, CML.
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A gasolina que enche o depósito do Fisco
«Os combustíveis, mesmo caros, não são um bem do qual os portugueses possam prescindir e o Governo sabe disso. Como sabe que a subida a que temos assistido vai refletir-se nos transportes públicos, na alimentação, no vestuário, etc. Este ano, o preço do gasóleo já subiu 38 vezes. A gasolina 30. E já nos avisaram que os aumentos não ficarão por aqui.
A culpa, dizem-nos os governantes, é da margem das gasolineiras. E também nossa. Nossa porque, dizem-nos também, poluímos muito. Andamos muito de carro. Passeamos muito. Levamos muito os filhos à escola e vamos de automóvel ao supermercado. Somos, portanto, aos olhos de quem gere o país, uns irresponsáveis. Temos de pagar por isso. E esse castigo está documentado na proposta de Orçamento do Estado, onde o Governo deixa claro que não alivia a carga fiscal para penalizar os combustíveis poluentes.
Percebe-se que seria um erro político favorecer os combustíveis fósseis. Mas também parece claro que estamos a pagar mais pelos combustíveis devido aos impostos.
O Governo tem um problema para resolver, até porque não estamos no Luxemburgo, onde, desde fevereiro do ano passado, os transportes são totalmente gratuitos e os bilhetes dos autocarros e dos comboios para a Alemanha, Bélgica e França ficaram mais baratos.
Também não temos a carteira dos noruegueses, que já têm metade da frota automóvel elétrica. Vivemos num país onde ter carro não é uma opção, mas uma obrigatoriedade. Dizer o contrário não é só ser politicamente correto. É desconhecer a realidade. De resto, basta recuar um pouco ao período da campanha eleitoral para as eleições autárquicas para perceber que a grande preocupação dos autarcas não foi reduzir a carga automóvel, mas sim resolver os problemas relacionados com o trânsito.
Acenar com a bandeira do ambiente para justificar o preço dos combustíveis não funciona, mesmo que a bandeira nos tape os olhos.»
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14.10.21
Os galegos em Lisboa
«Em 1800, os galegos imigrados em Portugal são já perto de 80 mil. Ao longo dos 100 anos seguintes, dedicar-se-ão sobretudo à venda ambulante de água pelas ruas de Lisboa. Estão por todo o lado: entre o Rossio e a Arcada do Terreiro do Paço, entre os ministérios e o cais, à porta dos armazéns, à esquina das ruas da Baixa, aos montes no Chiado, onde havia um largo conhecido por "Ilha dos Galegos".
Só aguadeiros, em Lisboa, são 3.454 por volta de 1830. Mas servem ainda para levar a trazer recados, para entregar encomendas ou fazer mudanças de casa. Dois galegos e uma corda podiam transportar quase toda a mobília de uma sala, dizia-se então.»
Marina Tavares Dias
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A corda demasiado esticada na saúde
«Os profissionais de saúde estão exaustos. As urgências voltaram a entupir-se com doentes não urgentes. Passado o pior da pandemia, os velhos problemas mantêm-se. Só que as atenções já não estão exclusivamente centradas na gestão de uma crise sem precedentes que obrigou toda a gente a pensar apenas em salvar vidas. E o momento da discussão de um Orçamento do Estado é sempre o mais apetecível para fazer pressão. Seja como for, a sucessão de gritos de alerta, de diferentes pontos do país, não pode ser ignorada por ninguém.
Na semana passada foi uma demissão em bloco de 87 directores de serviço e coordenadores no Hospital de Setúbal. Aqui, o presidente do conselho de administração assume que há um défice de recursos humanos, diz que as contas estão no vermelho, explica que há uns meses pediu para abrir 33 vagas para médicos, só lhe deram 13 e, mesmo assim, só conseguiu preencher oito. Neste hospital, os doentes são hoje obrigados a esperar seis meses por uma consulta quando há três anos esperavam quatro.
No Hospital de Vila Franca de Xira, antiga parceria público-privada que passou para a alçada do Estado, também faltam médicos. E há doentes em observação numa garagem que, durante a pandemia, foi transformada em enfermaria — era para ser temporária. Não foi.
Na terça-feira, as urgências do Hospital Distrital de Leira tiveram de fechar durante a noite. Falta de médicos uma vez mais. No mesmo dia, os sindicatos dos enfermeiros decidiram uma greve nacional. Os técnicos de emergência hospitalar também já fizeram o mesmo.
A greve de três dias convocada nesta quarta-feira pelas duas estruturas sindicais que representam os médicos é o corolário desta multiplicação de notícias que só pode deixar-nos inquietos quando estamos à beira do Inverno, sabendo nós que ele representa sempre, em qualquer circunstância, uma pressão extra sobre o SNS e não sabendo nós, ainda, o que mais nos reserva a covid-19.
O anúncio de um reforço significativo no Orçamento do Estado não convenceu quem está no terreno. A cereja no topo do bolo foi a proposta de que quem faça mais de 500 horas extraordinárias por ano será devidamente pago com um acréscimo de 50%. Questiona-se se um esforço desta dimensão não contraria o bom senso e não produzirá médicos ainda mais exaustos.
Num país onde tantos sonham ser médicos e tantos ficam de fora todos os anos das universidades por não conseguirem lugar, falta uma estratégia clara para garantir recursos humanos onde eles fazem mais falta e para os reter, para atrair jovens para o serviço público e para avançar com um regime atractivo de dedicação plena. Não resolve tudo, mas seria um bom princípio.»
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13.10.21
Os vendedores de gravatas
AVENIDA DE ROMA, LISBOA
Os primeiros vendedores ambulantes, nas décadas iniciais do século XX, eram chineses e, além de gravatas, vendiam diversas bugigangas. [E eu confirmo que sempre ouvi contar que até na província, por exemplo no Bombarral, isto era uma realidade.]
Esta imagem é de 1960, mas os vendedores já não eram chineses.
Fotografia Arnaldo Madureira, Arquivo Municipal de Lisboa
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Yves Montand, 100 anos hoje – seriam…
Yves Montand, de facto Ivo Livi, nascido italiano há um século e naturalizado francês, cantor e actor, formou um dos pares mais célebres do cinema francês quando se casou com Simone Signoret em 1951
Pretexto para recordar algumas das suas interpretações, entre muitas.
Paris, Paris:
Porque é tempo delas:
E, inevitavelmente:
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Fia-te no PRR e não orçamentes
«No último ano e meio de pandemia Portugal teve uma despesa adicional (tirando estabilizadores automáticos, como subsídios de desemprego e outros, medidas de liquidez e contabilizando despesa realizada e fundos comprometidos), em proporção ao PIB, de pouco mais de metade da média mundial e um terço das economias avançadas, em que nos integramos. Ficámos próximos dos países emergentes. Em 38 economias avançadas, só seis investiram, em despesa adicional discricionária, menos do que Portugal. Quase todos mais ricos do que nós, por isso com maior capacidade de resistência – Suécia, Eslováquia, Luxemburgo, Finlândia, Dinamarca e Coreia do Sul.
Esta suposta poupança, num país com as nossas fragilidades, terá um custo que acabará por se sentir, no futuro próximo, nas contas públicas: sairemos mais tarde da crise. Segundo as previsões da OCDE, o mundo demorará 12 meses a recuperar, a contar a partir do pico da queda da economia – no segundo trimestre de 2020. Foi uma queda sem precedentes, na sua profundidade, rapidez e sincronismo. E a recuperação será também relativamente rápida: demorará doze meses nos Estados Unidos, 18 no Japão, 21 na Alemanha, 24 na Grécia e em França, 27 em Portugal, Espanha e Itália. Mais importante: trinta meses depois do pico da queda, o PIB real mundial estará 7% mais alto, o dos EUA 6%, o da zona euro uns medíocres 2% e Portugal 1%.
É neste cenário, e no último ano em que não estamos submetidos ao irracional garrote dos limites burocráticos ao défice, que o Governo festeja crescimentos de quem acabou de cair no chão e propõe um orçamento que consegue a proeza de melhorar o saldo estrutural num dos momentos mais dramáticos da nossa vida coletiva. Mas a ideologia da austeridade está de tal forma instalada que se ouviram jornalistas, na conferência de imprensa de João Leão, a falar de um Orçamento expansionista. Instalou-se mesmo a ideia de que a austeridade nos tirará dos crescimentos anémicos desde que entrámos no euro.
João Leão garante que este orçamento, apesar de ser de contenção, é uma forte ajuda à economia. Ele próprio teve de se perguntar: como é que isso é possível? Pelo PRR. Ou seja, não é este orçamento. O estímulo contracíclico para além do PRR fica-se pelos 0,5% do PIB. É inexistente, quando pensamos no momento em que vivemos. O que o Governo se prepara para fazer é expansionismo por via do PRR, que corresponde a um determinado tipo de despesa que não resolve vários problemas urgentes que ameaçam tornar-se estruturais, e contenção no Orçamento do Estado. E parte do princípio que os partidos que sempre se opuseram a este tipo de estratégias falhadas da direita lhe viabilizarão o orçamento – provavelmente com razão.
Há coisas positivas neste orçamento, como é evidente. As alterações fiscais parecem tornar o sistema mais progressivo (apesar do maior beneficio se sentir em escalões mais altos) e não beneficiarão atividades meramente especulativas, sem funções sociais ou produtivas. Mas o englobamento é de tal forma tímido que o Estado ganhará dez milhões com ele. Há apoio às famílias com filhos pequenos, mas não se veem, ao lado, sinais de mudanças na legislação laboral para atacar um dos principais fatores de adiamento da vida dos mais jovens: a precariedade, em que somos campeões europeus.
É verdade que se aumenta a orçamentação para as escolas, mas despeja-se dinheiro em alguns problemas ignorando as suas razões estruturais: para travar a sangria de especialistas no SNS, é preciso mexer nas carreiras médicas. Mas há vantagem em continuar a prometer dinheiro para mais médicos se essas vagas ficarem por preencher: o dinheiro não será gasto e João Leão volta a fazer um brilharete. Num próximo governo de direita, haverá mais boas razões para ir privatizando parcelas do SNS, por ele ser incapaz de responder às necessidades do país.
Este Orçamento está longe das necessidades de um país que está a sair de uma crise brutal, com a economia e o Estado bastante debilitados e vários serviços e sectores em rutura. E este é o orçamento que é apresentado. Como sabemos, outro bem diferente é aplicado, porque João Leão tem-se encarregado de cativar despesa para fazer tábua rasa do que os deputados aprovam. E é por isso que os partidos de que o governo depende querem cada vez mais negociar temas paralelos, onde essa fraude é impossível. Sabem que as promessas do ministro não valem o papel onde são escritas. Nem sequer para os ministros do mesmo governo, quanto mais para partidos com que tem de falar uma vez por ano.
Com alguns aspetos positivos do ponto de vista fiscal e de apoios sociais, este é um orçamento de negação. Que deposita na capacidade de executar o PRR todas as esperanças do país. E que nega a situação explosiva em vários sectores do Estado, a começar pelo Serviço Nacional de Saúde. Este é o tempo para os economistas mediáticos irem à televisão dizer que é muito ou pouco, dependendo do que se devolve em impostos ou se dá em apoios àqueles para quem trabalham. No resto do ano, queixar-nos-emos de atrasos estruturais dos serviços públicos e da economia, atribuindo-lhes razões esotéricas ou ideológicas. Nunca as decisões que agora são tomadas.»
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12.10.21
OE2022, dia zero
Depois das reacções do Bloco e do PCP, só me vem esta à cabeça, desculpem lá.
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12.10.1960 - O sapato de Nikita
Quem já era gente em 1960 lembra-se certamente deste episódio cujas imagens deram volta ao mundo, quando este era muito mais sorumbático e politicamente respeitador do que hoje: durante uma agitadíssima Assembleia Geral da ONU, Nikita Kruschev tirou um sapato e bateu furiosamente com ele na sua bancada.
Ver AQUI, num post do ano passado, relato do incidente e um vídeo.
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Antes de responder perante Deus, um padre abusador responde perante a lei. E a Igreja cúmplice também
«Mais de 200 mil menores que estiveram sob a responsabilidade da Igreja francesa foram, entre 1950 e 2020, abusados sexualmente por dois mil padres e outros membros da hierarquia católica. No total, incluindo abusos cometidos por membros do clero e por leigos, são 330 mil vítimas e 2900 a 3200 abusadores. Não estamos a falar de casos isolados, excecionais, mas de uma violação em massa de menores. De uma cultura instalada. Se não uma cultura de abuso, uma cultura de silêncio e cumplicidade. Como escreveram os autores do relatório da comissão independente que investigou, durante três anos, denúncias de maus-tratos e violações na Igreja Católica francesa, falamos de “uma indiferença profunda, total e até mesmo cruel” por parte da igreja francesa.
A minha primeira reação a estes números é a de qualquer português: o que tem a Igreja católica portuguesa de extraordinário para que não se conheçam casos por cá? Tomou as medidas necessárias para que tal não sucedesse ou as medidas necessárias para que tal continuasse escondido? Ou vivemos numa sociedade demasiado temerosa para fazer investigar, fazer perguntas e tirar os nossos bispos da paz podre em que ainda se mantêm, longe de todas as mudanças a que assistimos no mundo ocidental? Neste momento, o que tenho a fazer é um elogio à coragem que existe em França e falta por cá.
Há, do meu ponto de vista, razões profundas para que isto aconteça com tanta intensidade na Igreja Católica. A relação dos padres com a sua própria vida sexual, a repressão violenta desse instinto humano, ajudará a explicar alguns comportamentos desviantes. Para o saber, seria preciso que a própria Igreja estivesse disposta a abrir um debate interno sobre a castidade celibatária, os seus efeitos psicológicos e as suas justificações religiosas. Nem o Papa Francisco, um exemplo raro de coragem no Vaticano, está em condições de iniciar essa mudança.
Mas o essencial é mesmo a cultura de segredo e de casta, que faz a Igreja acreditar que se regula a si mesma independentemente das leis dos homens. Foi isto que alimentou a impunidade e o crime continuado. E é por causa dela que a culpa perante todas as vítimas não é apenas dos abusadores, mas de toda a instituição. Nenhuma organização é responsável pelos crimes dos que dela fazem parte, todas são responsáveis pela proteção que dão a criminosos, oferecendo-lhes a impunidade que serve de exemplo.
Não vou entrar no debate começado por esta comissão sobre uma revisão do segredo da confissão, que levou o presidente da Conferência Episcopal francesa, Eric de Moulins-Beaufort, a defender que o segredo da confissão “é mais forte do que as leis” e o porta-voz do governo, Gabriel Attal, a responder que “nada é mais forte que as leis da República”. Todo o debate sobre o sigilo é complexo, envolve outras atividades – médicos, advogados ou jornalistas – e não deve ser aligeirado ao sabor de cada indignação, por mais forte e justificada que ela seja.
Os limites da liberdade religiosa são, eles próprios difíceis – só quando envolvem religiões minoritárias costumam ser simplificados, porque a maioria não se sente afetada. Não é porque este debate não seja relevante que me furto por agora a ele. É porque estamos a pôr o carro à frente dos bois. O problema não foi o segredo da confissão, foi a sua utilização por parte da hierarquia para ter uma razão formal para fingir que não sabia o que sabia. As informações que tinha nunca impediram a Igreja de mudar um padre de paróquia, quando a coisa se tornava mais evidente. Nunca impediram que lhe chegassem queixas de fiéis e vítimas. Só a impediu de entregar os criminosos às autoridades. O segredo só existia para fora da Igreja. Para proteger a própria Igreja.
Não é que o segredo da confissão esteja em cima da lei, é a própria Igreja que se julga acima da lei. Acha que a sua lei substitui a lei do Estado. Que é ela que a aplica perante crimes comuns. Que o clero continua a ser uma casta à parte, em sociedades laicas. E que os fieis lhe pertencem.
Um padre abusador pode responder perante Deus e perante a sua Igreja. Esse é um assunto da sua consciência da estrutura onde se integra. Mas, perante as vítimas e a sociedade, é à justiça do Estado que responde. Porque aqueles de quem abusaram não abdicaram (nem podem abdicar) dos direitos de cidadania no dia em que entraram numa Igreja.
A sociedade não tem de esperar por reformas da Igreja para que os abusadores que ela protege sejam punidos. E é por isso que, para além dos abusadores, todos os que sabem dos abusos e protegem os abusadores são cúmplices do crime. Como isto se coaduna com o segredo da confissão? Isso é uma questão que a própria Igreja terá de resolver. O que o segredo da confissão não pode ser é um alibi para uma proteção institucional, estrutural e sistemática de abusos em massa. Porque isso nada tem a ver com liberdade religiosa. A sincera vergonha do Papa Francisco não chega. É preciso que ela se transforme em redenção, através de uma mudança radical de cultura e procedimentos.»
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11.10.21
A ansiedade do futuro
A cada ano, por esta altura, fala-se da necessidade de alterar a forma de acesso ao Ensino Superior. A cada ano, reconhece-se que muitos concorrem a cursos com médias muito elevadas, não por vocação, apenas porque são empurrados a irem em busca de sucesso que todos parecem esperar deles. (…)
Quando acabei o Secundário e ingressei num curso superior, não senti pressão, por parte dos que me eram mais próximos, para fazer qualquer tipo de escolha. Vivíamos com o conforto de saber que devíamos seguir o caminho escolhido por nós, seguir aquilo em que seríamos mais capazes, em suma, que nos fizesse felizes. O Mundo mudou. Muito. E a vida em muitos aspetos tornou-se bem mais difícil.»
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OE2022 - Estado Social envergonhado!
«A encerrar a presidência portuguesa do Conselho da União Europeia, o Governo salientou que se orgulhava do forte compromisso social que imprimiu ao exercício dessa presidência, culminando na Cimeira Social com o objetivo de dar “impulso político à concretização do Pilar Europeu dos Direitos Sociais na vida dos cidadãos europeus…”. Foi um dos seus temas centrais a proteção social em que destacava a importância da atenção a prestar aos mais velhos.
“Ninguém fica para trás” foi o mote repetido vezes sem conta. A preocupação com os mais velhos foi sempre sublinhada em declarações de circunstância e nos objectivos da acção governamental com o Programa de Recuperação e Resiliência (PRR) à cabeça.
Apenas três meses decorridos, constata-se que essas “boas intenções” não passaram disso mesmo. A preocupação social deixa para trás os mesmos de sempre, os mais velhos, os que afastados do ciclo produtivo não têm poder reivindicativo a não ser no plano ético.
O crescente número de cidadãos com mais de 65 anos é útil para mostrar a evolução muito positiva da esperança média de vida em Portugal com base na excelência dos cuidados médicos e sociais. Contudo, é um entrave quando torna a sociedade portuguesa “envelhecida”. Pretende-se uma sociedade em que se viva mais anos mas “sem velhos”?
Há muitas declarações piedosas de preocupação social relativamente aos mais velhos que são depois esquecidas, desde logo, na política orçamental em que o Governo opta por não actualizar a generalidade das pensões, agravando a degradação do nível de vida de quem está na reforma.
Conhece-se a enorme percentagem de pessoas aposentadas, pensionistas e reformadas que continuam com rendimentos provenientes de pensões abaixo do salário mínimo nacional. É enorme o impacto que isso tem nos níveis elevados de pobreza de milhares de contribuintes que participaram, ao longo de décadas, na construção deste país e continuam a “viver” abaixo do limiar da pobreza.
A manter-se inalterada a Lei n.º 53-B/2006, de 29 de dezembro, mesmo pensionistas com pensões de valor médio estarão condenados à degradação continuada do valor da sua pensão e das suas condições de vida pelo que a revogação desta lei constitui um acto de elementar justiça social.
Mas também a APRe! reivindica políticas mais justas em outros planos como:
• A revisão dos escalões do IRS, já prometida mas sempre protelada, a qual será indispensável para não se perder uma oportunidade de introduzir alguma justiça fiscal nos escalões que abrangem as pensões de nível médio;
• A definição de um plano de reestruturação da rede de lares e sua sustentação em termos financeiros, sanitários e de recursos humanos qualificados;
• A dotação orçamental para uma articulação funcional entre as estruturas da Saúde e as ERPI (Estruturas Residenciais para Pessoas Idosas);
• A dotação orçamental para a formação de pessoal técnico das ERPI e centros de dia, bem como para aumento dos salários correspondentes à responsabilidade que lhes é atribuída;
O reforço da dotação orçamental para o Serviço de Apoio Domiciliário (SAD), que deve ser uma das valências mais incentivadas para a prestação dos cuidados às pessoas mais velhas.
Mais esperança de vida e vida com mais esperança!»
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10.10.21
Ainda havia rainha
A Rainha Dona Amélia preside à sessão de distribuição de prémios, promovida pelo Instituto de Socorros a Náufragos, na Sociedade de Geografia . 1907.
Foto de Joshua Benoliel.
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58 anos sem Edith Piaf
Uns dizem que morreu em 10 de Outubro de 1963, outros que foi no dia seguinte, poucas horas antes do seu grande amigo Jean Cocteau.
Piaf colou-se para sempre à pele da minha geração, como tantos outros cantores sobretudo franceses, quando este país era quase tão sombrio como os vestidos pretos que ela nunca largou. Mas acrescento uma nota pessoal: acabada de regressar de Portugal, onde tinha vivido a primeira parte da crise académica de 1962, eu vi-a e ouvi-a, em Lovaina, no mesmo dia (vim a sabê-lo algumas horas mais tarde) em que muitas centenas de estudantes foram presos na Cantina da Cidade Universitária de Lisboa. «L'hymne à l'amour» ficou para sempre associado, em mim, ao Dia do Estudante.
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O jornalismo é notícia
«Há uma regra não escrita nos jornais segundo a qual o jornalista não é notícia. O que nos leva muitas vezes a fazer uma interpretação extensiva e excessiva dessa máxima aplicando-a aos próprios problemas do jornalismo, omitindo o tanto que há para revelar e refletir no setor. Das matérias laborais à profunda crise dos média, são muitos os temas que merecem ser ditos, tal o impacto que essa omissão tem no direito constitucional de informar e ser informado.
"Não existe democracia sem liberdade de expressão", disse Berit Reiss-Andersen, porta-voz do comité norueguês, ao anunciar o Nobel da Paz 2021. Claro que há uma realidade específica dos jornalistas e ativistas Maria Ressa e Dmitri Muratov, um contexto podre em países em que os direitos e liberdades não estão garantidos. Mas não é abusivo perceber que este é o momento de discutirmos todas as ameaças à liberdade de expressão.
Ao contrário do que seria mais cómodo admitir, a liberdade de informar e o direito de ser informado não são limitados apenas por regimes totalitaristas, nem estão em risco em países longínquos. Das fake news aos monopólios no mundo virtual, são muitas as ameaças que colocam em causa a informação credível e a valorização que fazemos, enquanto cidadãos, do trabalho de quem verifica factos e fontes, pesquisa histórias, investiga versões oficiais e oficiosas.
A liberdade de expressão está ameaçada quando há falta de saúde financeira nas empresas de comunicação social. Não há verdadeira independência editorial sem independência económica e sem uma visão do papel crucial da informação que não esteja dependente da narrativa miserabilista da sustentabilidade financeira.
Temas como a literacia financeira, o financiamento da informação, a criação de condições para que os jornalistas trabalhem com tempo e recursos têm impacto em toda a sociedade. São direitos de quem informa e de quem quer ter acesso a informação rigorosa e verdadeiramente livre. E deveres dos poderes a quem cabe assegurar que a liberdade de expressão não é letra morta, mas palavra viva.»
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