18.1.25

Pássaros e vinhas

 


Vaso Avallon, em vidro com pássaros opalescentes em vinhas com fruta. Cerca de 1927.
René Lalique.

Daqui.

18.01.1934 - Marinha Grande e não só

 


Em reacção à Constituição que Salazar começou a preparar desde que chegou ao poder, em 5 de Julho de 1932, e que acabou por ser promulgada em Abril de 1933, à criação da polícia política (PVDE) e à legislação que neutralizou as organizações operárias, fascizando os sindicatos, gerou-se um amplo movimento operário que, depois de alguns acidentes de percurso, culminou na convocação de uma «Greve Geral Revolucionária» para 18 de Janeiro de 1934.

Porque na véspera a PVDE prendeu alguns dos principais responsáveis e activistas, o impacto foi menor do que esperado. Apesar disso, explodiu uma bomba no Poço do Bispo em Lisboa, na noite de 17, e o caminho-de-ferro foi cortado em Xabregas, em Coimbra, explodiram duas bombas na central eléctrica e houve movimentações em diversos outros pontos do país (Leiria, Barreiro, Almada, Sines e Silves). A mais significativa deu-se na Marinha Grande, onde grupos de operários ocuparam o posto da GNR, os edifícios da Câmara Municipal e dos CTT.

Mas a repressão foi forte e uma das suas decisões concretizou-se na criação de uma colónia penal no Tarrafal, para onde acabaram por seguir, em 1936, muitos dos detidos do 18 de Janeiro. Nove acabaram por lá morrer.

Estes acontecimentos puseram fim a décadas de sindicalismo livre, apesar de todos os condicionalismos persecutórios. Além disso, o falhanço que constituíram e a repressão que se seguiu liquidaram a liderança do movimento operário pelo anarco-sindicalismo.



Conselho de leitura: Fátima Patriarca - O «18 de Janeiro»: uma proposta de releitura.
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Ary dos Santos

 


Deixou-nos há 41 anos.

Inesquecível ficou a vitória da «Tourada» no Festival da Canção de 1973. Juntaram-se grupos de amigos para assistir à final, com muito pouca esperança… Mas a canção venceu e as pequenas fintas vitoriosas valiam muito nessa época de triste memória. Foi uma pequena farpa espetada no agonizante marcelismo.
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Anos 30 do século XX e anos 20 do século XXI

 


«A propósito do “espírito da época” destes anos em que vivemos, há quem faça uma comparação com os anos 30 do século XX, e há quem se indigne com essa comparação. Os anos 30 do século XX são os anos de ascensão do nazismo alemão, já com o pano de fundo do fascismo italiano, dez anos antes e, de um modo geral, do crescimento do autoritarismo e do totalitarismo um pouco por toda a Europa, em particular em Portugal, que de 1926 a 1974 teve a mais longa ditadura europeia, com excepção da URSS. Em Espanha, a ditadura de Primo de Rivera, seguida da chamada “dictablanda”, e, um pouco por todo o lado, há um duro confronto civil entre os partidos da Internacional Comunista e movimentos protofascistas em França, na Alemanha, no Reino Unido. A URSS era a “ditadura do proletariado” e, até ao Pacto Germano-Soviético, apresentava-se como cabeça de uma frente antifascista, na Europa e no resto do mundo.

A década de 30 era muito marcada pelas sequelas da I Guerra Mundial, de 1914-1918, foi a da guerra civil em Espanha (1936-1939) e terminou na II Guerra Mundial iniciada em 1939. Os pontos comuns desses anos eram a crise das democracias que tinham sobrevivido aos anos 20 e o desaparecimento do centro político, da social-democracia, do conservadorismo e do socialismo democrático. Na realidade, o desaparecimento das democracias europeias que ficaram “encostadas à parede”. A capa da revista Ordem Nova, dirigida por Marcelo Caetano, publicada em 1926-27, retrata bem o “espírito da época” que se materializava nos anos seguintes.

Tenho usado a expressão “espírito da época”, Zeitgeist, fruto da capacidade filosófica de Kant, Hegel e Heidegger, os alemães são capazes de nomear abstracções que vão mais longe do que o vocabulário corrente. É o Zeitgeist dos nossos dias idêntico ao dos anos 30 do século XX? Sim e não.

Vamos já varrer o “não”. A sombra da I Guerra Mundial não existe nos nacionalismos humilhados, e os movimentos fascistas e nazis, Mussolini e Hitler, com a sua coreografia militarizada e na sua arregimentação das massas nada têm a ver, no seu impulso e mecânica, com os movimentos de extrema-direita do mainstream. Trump não é Hitler, nem Ventura e o Chega são fascistas. A utilização destas comparações e terminologia são um impedimento para se compreender as características dos movimentos radicais de direita ou, se se quiser, de extrema-direita dos nossos dias. Embora a genealogia da extrema-direita francesa, italiana e mesmo a alemã tenham raízes no fascismo italiano, no colaboracionismo francês e no nazismo alemão, esses movimentos ou se afastaram das suas origens ou são novos, como por exemplo no papel da RDA na Alemanha.

A outra grande diferença é que não há nada de parecido com o comunismo e os partidos comunistas nos anos 30. Do outro lado do Zeitgeist da extrema-direita há apenas ruínas do comunismo clássico, e as novas esquerdas alternativas que surgiram desde os anos 60 nada têm de comum com o comunismo, nem nos objectivos, nem na organização, nem na influência social. São movimentos que foram juvenis no passado, que nada têm a ver com a “classe operária” e que impulsionaram miríades de causas, como o feminismo, os movimentos LGBT, a ecologia, os “direitos” dos animais, a “ideologia de género”, e que pelo seu vanguardismo excessivo, e muitas vezes disparatado, ficaram como folclore urbano e intelectual, muita vezes ofensivo das pessoas comuns.

Mas há parecenças que podem justificar a comparação? Há, sem dúvida. A primeira das semelhanças é a indiferença face ao perigo da crise das democracias, a inconsciência dos partidos democráticos, como o PS e o PSD em Portugal, quanto aos riscos do presente. Podem identificá-los, e falar deles, mas não actuam com a intransigência e a dureza que se justifica. E como pano de fundo, uma grande maioria de europeus é dramaticamente indiferente, quando não transigente, quanto ao papel de homens como Trump ou preguiçosa e temerosa em relação a Putin, que invadiu militarmente um país europeu.

Há mais e, num certo sentido, pior: muito do que fez o Zeitgeist dos anos 30 está presente no actual Zeitgeist. Em Portugal, na Europa e nos EUA passou a haver o “outro”, neste caso os imigrantes, que suscitam uma forte identidade de risco, tanto maior quanto estes são “diferentes” na cor, no traje, na religião. A caixa de Pandora que o Governo abriu, relacionando imigrantes com criminosos, encontrou um terreno fértil para uma hostilidade crescente aos “outros” e isso tem precedentes históricos e acaba sempre mal.

O último discurso de Biden, que nos actuais costumes portugueses seria considerado um discurso comunista ou esquerdista radical, denunciando o papel da aliança entre o populismo, o extremismo do GOP-MAGA, com os oligarcas, ou seja, os grandes capitalistas (como os que se aliaram com Hitler), nunca seria hoje proferido em Portugal por alguém dos partidos do “arco da navegação”. Um, porque virou à direita radical, porque está convencido que essa viragem é irrelevante no plano político e serve apenas para ganhar votos; o outro porque anda para cima para baixo, para o meio e para o lado, com uma política errática, despassarado com os tempos de hoje. Ou seja, já foram domados pelo “espírito do tempo. Como nos anos 30 do século XX.»


17.1.25

Luzes

 


Candeeiro Arte Nova, em bronze e pasta de vidro. Modelo com duas túlipas gravadas «Libélula Vermelha».
Émile Gallé.

Daqui.

A palavra a quem sabe: o director da PJ

 



Françoise Hardy não chegou aos 81

 


O que aconteceria hoje, mas morreu há uns sete meses. Confessou que mais de um cancro transformaram a sua vida num pesadelo. Custou ler isto.

Seja como for, nós, «les garçons et les filles de son âge», ficaremos para sempre a dever-lhe memórias de ternura e de inocência. Voltar a ouvi-la, nos seus primeiros tempos, devolve-nos uma ingenuidade que parece hoje irreal.

Do seu álbum «Personne d’autre» de 2018:



Do álbum de 2012:



E, inevitavelmente, o início de tudo (1962), a canção ícone que ficou para sempre, com letra e música de sua autoria:


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Futuro

 


24 horas no serviço de urgência

 


«Por detrás das notícias que abrem os telejornais e que dão conta das longas horas de espera dos doentes nos serviços de urgência, existem histórias por contar. As dos profissionais de saúde, que trabalham horas intermináveis, as dos mais velhos, que sofrem nas desconfortáveis macas nos corredores, as dos dramas que levamos para casa, encerrados nos nossos silêncios.

Estou de urgência num turno de 24 horas. Falei há pouco com a colega de anestesiologia. O doente que estiveram a operar tinha acabado de falecer. O caso era complexo. O prognóstico mau, mesmo antes de começarem. Estão frustrados e desanimados. No entanto, o trabalho não acabou. Ainda temos mais 13h pela frente. Poucas pessoas conseguem entender o que isto é, todas as semanas.

Quando falam de planos e linhas telefónicas, despachos e decretos-leis, parece que estão a discutir mundos paralelos, afastados da rea¬lidade. O esforço físico é violento, mas as marcas psicológicas, essas ficam para a vida. E por isso, os mais novos tentam abandonar o serviço de urgência, assim que podem.

Valorizo os líderes que não têm medo de continuar as políticas que demonstram valor, que preferem os resultados em saúde às inaugurações de placas com o seu nome. E, nesse sentido, para quem não quer estar sempre a tentar reescrever a História, recordava os SNS Summit que a Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde (SNS) promoveu.

Formas partilhadas para atingir soluções concertadas, fóruns de discussão de boas práticas. Eventos projetados para promover a colaboração e o desenvolvimento de estratégias conjuntas. Um espaço vital para a troca de ideias, encorajando o desenvolvimento interpares de soluções inovadoras.

O primeiro ocorreu em março de 2023, e foi dedicado aos serviços de urgência (SU). Foram dezenas de profissionais que trabalharam num conjunto de consensos, traduzidos em 15 recomendações, que vale a pena recordar.

1 — Investimento em campanhas nacionais de promoção da literacia para o uso mais racional dos SU;

2 — Aumento da resposta ao doente agudo não urgente em contexto extra-hospitalar;

3 — Reforço do alinhamento de respostas entre hospitais e centros de saúde, através do alargamento do modelo unidade local de saúde;

4 — Atualização dos algoritmos de referenciação do INEM e Linha SNS 24;

5 — Implementação progressiva do modelo de urgência referenciada;

6 — Estabelecimento de equipas dedicadas no SU;

7 — Implementação de centros de responsabilidade integrados nos SU;

8 — Criação da especialidade de medicina de urgência;

9 — Alargamento do modelo de urgências metropolitanas;

10 — Implementação de um regime fiscal que garanta a contabilização para o tempo de serviço/reforma das horas extraordinárias realizadas em SU;

11 — Criação de uma rede de transporte inter-hospitalar de doentes graves;

12 — Definição de um modelo transversal de gestão de admissões /altas;

13 — Prioridade dos modelos alternativos à hospitalização clássica;

14 — Aumento da capacidade de resposta dos cuidados continuados e da segurança social aos doentes com alta clínica;

15 — Criação de um programa de investimento para requalificação das urgências hospitalares.

Em março fará dois anos sobre este plano, que pela minha vivência continua atual. Era importante perceber o que o país está a fazer para o concretizar.

Mais do que comunicados pintados com as cores do arco-íris, e do cumprimento exemplar de despachos, valeria a pena aferir se a realidade está a mudar.

O telefone toca. São 2 horas da manhã. O turno na urgência nunca mais acaba...»


16.1.25

Elogio da Raiva

 


Não abominem a raiva, porque dela brotam as ideias novas, a invenção do que há de vir, o perscrutar nervoso das possibilidades, ainda que incertas, ainda que raras, ainda que improváveis.


Mujica perto do fim

 


𝐂ML? Óptimo

 


Que o actual presidente da CML saísse já ao ataque era previsível. Que os direitosas de várias cores também o façam, com os mais variados argumentos, também. (Os que incluírem nesses argumentos o facto de ela ser gorda tornaram-se candidatos a saírem da minha lista de amigos no Facebook.) Outros, que se consideram de esquerda, passaram a elogiar timidamente Carlos Moedas, com fins tão óbvios que fazem sorrir.

Já eu considero que a aposta em Alexandra Leitão é óptima, se ela se entender com a esquerda da esquerda, para uma candidatura que pode correr com uma péssima gestão da cidade. Eu sei que Álvaro Cunhal houve só um, mas ainda espero que o PCP tenha juízo como teve no passado.

Go home?

 


Um dia feliz, a vitória de Trump e a fatura que virá

 


«O acordo de cessar-fogo em Gaza não é muito distante ao que Hamas queria, há meses. E isso diz-nos que poderiam ter sido poupadas milhares de vida. Porque há meses que se sabia que nenhum novo objetivo militar ainda poderia ser conquistado. O prolongamento da guerra resultou de interesses políticos de Netanyahu e da espectativa de ver Trump chegar à Casa Branca. E o Hamas não foi aniquilado, porque nunca poderia sê-lo, com esta ação. Foi o próprio Antony Blinken a confirmar que o grupo “recrutou quase tantos novos militantes quanto perdeu”.

Na primeira fase deste acordo, haverá cessar-fogo, com a retirada das tropas israelitas das zonas habitadas, mantendo-se em parte do território; o regresso dos refugiados palestinianos; a libertação de 33 reféns israelitas e de cerca de mil presos palestinianos, incluindo crianças. Falta perceber se, entre os libertados, está Maruan Barguti, uma possível liderança palestiniana, tal como foi pedido por Mahmoud Abbas. Apostaria que não. Isso seria retirar aos islamistas a liderança política da Palestina, coisa que Israel nunca quis, como já aqui documentei.

O cessar-fogo permitirá apoio humanitário a Gaza. Esta fase durará seis semanas, que podem ser prolongadas se as negociações para entrar na segunda fase demorarem mais tempo. A segunda fase corresponderá ao fim da guerra, retirada de Israel e libertação do resto dos reféns. A terceira fase, corresponderá à reconstrução de Gaza e entrega dos corpos dos refugiados mortos.

Mesmo que este acordo tenha sido construído por Blinken e tenha sido Joe Biden a dar a cara por ele, só a proximidade do dia em que Donald Trump chegará à Casa Branca que o permitiu. Porque a sobrevivência política de Benjamin Netanyahu depende do apoio do novo presidente. E porque o estilo destemperado de Trump é mais assustador do que o jogo do costume, dos democratas. Israel sabe que não pode fazer com Trump o que fez com Biden. E isso é triste. É uma vitória tremenda de Trump, para usar um termo que ele gosta.

Ou Netanyahu tem medo dos humores de Trump, ou foi-lhe prometida qualquer coisa para depois disto ou, provavelmente, as duas coisas. Sem pôr o carro à frente dos bois, quando apenas a primeira fase deste acordo parece fazível, podendo ser destruída a qualquer momento pelos dois lados, o futuro pode ser o reconhecimento das pretensões mais radicais de Israel para os colonatos, os territórios ocupados e Jerusalém. Pode ser o enterro definitivo da cada vez mais distante solução dos dois Estados. Em troca, Israel tem carta branca para lidar o Irão, única preocupação de Trump.

Para Trump, é importante recuperar a dinâmica dos acordos de Abraão, que desequilibraram os poderes no Médio Oriente, ajudando a enterrar os palestinianos na areia dos interesses e negócios das ditaduras árabes. Deixando os iranianos sozinhos a defender, por interesse próprio, o abandonado povo da Palestina. Transformar a causa palestiniana naquilo em que se tornou a causa curda: em vez de uma disputa territorial, a luta solitária e perdida de um povo sem Estado.

A solução trumpista para o conflito não é defender a causa palestiniana, é isolá-la e matá-la. O que não é difícil, tendo em conta a natureza ditatorial dos regimes árabes, distantes da opinião popular. O que quer dizer que se isolam os moderados e ficam os aliados de Irão. Mas, para chegar a isso é necessário pôr fim a um genocídio que não permite que qualquer país árabe converse sequer com Israel.

Mas isto é o futuro. Agora, é tempo para celebrar a interrupção do massacre, permitindo que o povo mártir de Gaza saia do inenarrável inferno em que vive há mais de um ano e receba o apoio humanitário que um mundo que se demitiu de todos os deveres lhe deve. É tempo para celebrar a libertação dos reféns criminosamente capturados pelo Hamas, que nunca estiveram nas prioridades de Netanyahu. Sabendo que a fatura virá a ser apresentada. Tem sido sempre. Não será seguramente diferente com Donald Trump.»


15.1.25

Está frio?

 


Não nos encostem aos extremos

 

«Foi pena o primeiro-ministro não ter ido à manifestação da Avenida Almirante Reis, mesmo que na qualidade de observador. Teria constatado facilmente, sobretudo se se sentasse numa esplanada para ver passar os manifestantes, que a sua grande maioria era constituída por gente moderada, muito distante dos extremos. (…)

Luís Montenegro, que tem assento à mesa do Conselho Europeu, poderia aprender alguma coisa com os seus pares. Foi ele que quis introduzir na agenda política a questão da segurança, ligando-a mais ou menos subtilmente aos imigrantes. Foi ele que começou por saudar o espectáculo dado pela polícia na Rua do Benformoso, declarando-se "atónito" com as críticas que suscitou imediatamente. Foi ele que decidiu dar "visibilidade" às acções da polícia, como esta, numa zona de grande concentração de imigrantes, sobretudo de origem indostânica. Foi ele que quis manipular a realidade, na crença de que "segurança" e "imigrantes" lhe permitem tirar votos ao Chega.»

Teresa de Sousa
Newsletter do Público, 14.01.2025

Martin Luther King Jr

 


Chegaria hoje aos 96.

Venezuela e Moçambique: a inconciliável duplicidade portuguesa

 


«Não conheço os verdadeiros resultados eleitorais na Venezuela e em Moçambique. Desconfio, com fortes fundamentos e muita companhia, que foram muito diferentes dos anunciados. Nos dois casos, não foram garantidas as condições indispensáveis para o exercício da democracia. Não tenho, não tem a ninguém, razões para confiar na independência das respetivas comissões nacionais de eleições. Em resumo, houve fraude.

Portugal tem, por razões diferentes, interesses nos dois países. Num caso, uma forte comunidade lusodescendente. No outro, uma relação histórica, cultural e económica, que se traduz na pertença comum à CPLP.

Apesar de não serem partidos únicos, o poder do PSUV e da FRELIMO já não resulta da vontade popular. Esse apoio, que outrora terá existido, foi perdido graças à forma como se governaram a si mesmos, longe dos interesses do povo venezuelano e moçambicano. Nos dois casos, a reação do Estado aos protestos populares foi de enorme violência.

O facto de não depositar grande confiança nas lideranças das respetivas oposições, que não me parecem estar grandemente preocupadas com os problemas das respetivas nações e nunca reconheceram resultados eleições, mesmo quando as que perderam, não muda o valor da democracia: só pode governar quem o povo quer que governe.

No caso da Venezuela, o governo português não reconheceu os resultados eleitorais. É verdade que, não tendo reconhecido a vitória de Nicolas Maduro, também não reconheceu, ao contrário do Parlamento Europeu, Edmundo González como novo presidente. Seria sempre, na minha opinião, uma decisão difícil, porque implica assumir resultados eleitorais de que não se tem prova material. É diferente assumir que houve fraude e saber o resultado concreto da verdadeira votação. Mas a AD fez um jogo duplo: ao mesmo tempo que o governo não reconhecia González, Sebastião Bugalho fez campanha, no Parlamento Europeu, por esse reconhecimento.

Paulo Rangel resolveu esta contradição, dizendo que a sua ausência "na dita tomada de posse" de Maduro "tem um significado claro". Assim sendo, é impossível não concluir que a presença na tomada de posse de Daniel Chapo tem um significado claro. O oposto do significado que tem a sua ausência na posse de Maduro: o reconhecimento dos resultados eleitorais, contrariando, ainda por cima, a recomendação aprovada pela Assembleia da República, por proposta da IL.

A ausência do Presidente e de uma saudação à eleição de Chapo, contrariada pela presença na tomada de posse, é a tentativa da quadratura do círculo, como foi o não reconhecimento de Edmundo González ao mesmo tempo que o PSD se batia por esse reconhecimento no Parlamento Europeu.

Havia duas formas de lidar com os dois casos: a de princípio, não reconhecendo presidentes que se sabe terem vencido com recurso a fraude eleitoral; a pragmática, mantendo as formalidades diplomáticas, tendo em conta a importância das relações com os dois países e os seus presidentes de facto. Afinal de contas, temos relações com chefes de Estado que, sendo ditadores, nem simulações eleitorais fazem. As duas posições contraditórias impedem o discurso de princípio, no primeiro caso, e pragmático, no segundo.

Na realidade, nunca se trataram de princípios. Na Venezuela, submetemo-nos aos interesses dos EUA e outras potências europeias. Em Moçambique, submetemo-nos aos interesses de quem governa o país. Usando, curiosamente, um argumento da forte comunidade portuguesa no país, que seria extensível à Venezuela. É sempre uma posição submissa. Nisto, justiça seja feita ao governo, não há grande novidade. Não temos política externa, temos submissões externas. Só não a mascarem com defesa de valores, por favor.

Nota final: não sei se quem diz a verdade é Paulo Rangel, quando garante que manteve contactos discretos para ajudar a resolver a situação em Moçambique, ou Venâncio Mondlane (em quem não tenho grande confiança), que o desmente, dizendo que nada fez e apenas procura estar na ribalta. Sei que quem faz contactos discretos não os divulga em entrevistas, a não ser que queira estar na ribalta. Certo, é que, com este bate-boca, dificilmente Portugal poderá ter um papel na mediação do conflito. Acontece a quem gosta de aprender.»


Alexandra Leitão pode mesmo ganhar Lisboa?

 



14.1.25

Mais um vaso

 


Vaso montado em bronze. Vidro Favrile, bronze patinado. Doros Collection, cerca de 1898.
Tiffany Studios.

Daqui,

A lenta agonia da Europa

 




Temos de ter uma conversa (2)

 




Montenegro não está a ser moderado

 


«O primeiro-ministro português faz parte daquele grupo de pessoas para quem não há nenhuma diferença entre um racista e um anti-racista. O primeiro-ministro português considera que as dezenas de milhares de pessoas que saíram à rua, no último sábado, em Lisboa, para defenderem valores cívicos, como o respeito pelo outro ou a igualdade de tratamento, e condenarem o racismo ou a discriminação, são tão extremistas quando os verdadeiros extremistas.

As declarações de Luís Montenegro são graves. O primeiro-ministro de um partido social-democrata, que tanto gosta de invocar Francisco Sá Carneiro, colocou ao mesmo nível quem defende a dignidade humana e a cidadania e quem a nega.

Estamos entendidos. Ficamos a saber que o primeiro-ministro deste país não vislumbra qualquer distinção cívica entre o SOS Racismo e o Habeas Corpus, que não encontra diferenças entre as organizações não-governamentais e os partidos democráticos de esquerda que percorreram a Avenida Almirante Reis e o Chega e o Ergue-te.

Ficamos a saber, também, que a Conferência Episcopal Portuguesa é extremista, na medida em que o seu presidente, José Ornelas, afirmou que a manifestação, na sequência da operação policial de Dezembro, na Rua do Benformoso, “foi uma forma bonita de dizer que ‘nós não nos resignamos’”.

Não. Montenegro, contrariamente ao que apregoou, não é um modelo da virtude da moderação. Dizer que os “extremos saíram à rua” significa que, para o primeiro-ministro, uma manifestação destinada a defender a democracia e o Estado de direito tem o mesmo valor de uma manifestação em que se propõe o contrário e se grita que “Portugal é nosso e continuará a ser nosso”.

A desvalorização da primeira só valoriza a segunda, aquela em que se fala em nós e os bandidos. Se uma se opõe a que se encostem imigrantes à parede por dá cá aquela palha, a outra sugere que se faça isso mesmo.

A verdade que transparece é que Luís Montenegro se dá bem com a imagem dos imigrantes encostados à parede, apesar de todas as reminiscências que isso inclui, embora admita que seja necessário melhorar a estética das operações. Um pormenor.

Montenegro tem razão quando diz que o país tem de continuar seguro para aqueles que cá vivem e para aqueles que cá querem investir. Só lhe faltou acrescentar que essa segurança tem de ser para todos, sem excepção, o que nem sempre fica claro nos seus discursos. Ainda nesta segunda-feira, voltou a falar em segurança, como se a insegurança urbana e a criminalidade fossem os maiores problemas do país e da população.

A sua insistência só nos pode levar a concluir que a instrumentalização da polícia pode continuar a ser um estratagema para manter à tona a mentirosa correlação entre imigração e criminalidade, à qual a rixa deste fim-de-semana prestou um favor oportuno, mas que não legitima aquela associação, paralisar uma esquerda bloqueada pelo tema e dizer "não é não" ao Chega em público e dizer "sim é sim" em privado.

Sempre tão parco em declarações, mimetizando a distância e altivez de Cavaco Silva, o actual primeiro-ministro passou a repisar o discurso da insegurança quando os assessores de comunicação foram chamados em socorro de duas ministras próximas do abismo, que ameaçavam a reputação do jovem Governo. A insistência tem alimentado percepções incendiárias, por puro cinismo, em nome de uma estratégia eleitoralista que nada tem a ver com o interesse do país, mas apenas para cavalgar uma onda global que, assim o julga, o fará crescer nas sondagens. É razão para ficar atónito.

Luís Montenegro e Carlos Moedas têm vindo a fazer um grande esforço, perante o silêncio partidário interno, para guinar o PSD na direcção do discurso do Chega. Ao lado de Miguel Pinto Luz, no Algarve, no início da campanha das legislativas, Pedro Passos Coelho inspirou a estratégia e o mantra segundo o qual quem ganha é quem reproduz com mais convicção a cantilena contra os imigrantes e a retórica da deportação ou da remigração. E não importa que o que se diz seja falso.

Montenegro quer-nos fazer crer que o Governo da AD é o meio-termo entre dois extremos reprováveis. Não é verdade. Carlos Moedas tanto insiste no aumento da criminalidade em Lisboa, que todas as estatísticas o negam, a ponto de o ter feito a despropósito no 5 de Outubro, que até nos faz crer que o presidente da Câmara de Lisboa gostava que isso fosse verdade.

Montenegro não é moderado porque não quer. Moedas, idem, aspas, aspas. A escolha é simples: ou o primeiro-ministro e o PSD se colocam ao lado de quem se predispõe a lutar por valores democráticos ou de quem os procura destruir. Ou escolhem o país ou escolhem as sondagens. É uma questão de dignidade.»


13.1.25

Palácios

 


O Palácio Mysore (ou Palácio Amba Vilas) é um exemplo deslumbrante do estilo indosarracênico de arquitectura, localizado em Mysore, Estado de Karnataka, no Sul da Índia. Foi concluído em 1912.

Daqui.

Dividir o Mundo às fatias

 



«Petit à petit l'oiseau fait son nid»

 


(Expresso, 12.01.2025)

A triste realidade

 


Expulsão de lisboetas pode determinar autárquicas. Aposta da oposição terá de ser forte

 


«Andamos, no espaço político e mediático, entretidos a discutir as eleições presidenciais. Mas, antes delas, teremos as autárquicas.

Elas são fundamentais para o PCP, que pode vir a sofrer um revés na margem sul do Tejo e no Alentejo, tendo em risco as duas capitais de distrito onde governa – Évora e Setúbal.

Elas são fundamentais para o PS, que precisa de um balão de oxigénio na oposição. Os resultados em Lisboa e no Porto são fundamentais. O número de câmaras também. E não é irrelevante se perder autarquias para o PSD e as compensar com conquistas ao PCP, porque isso corresponderia a uma deslocação autárquica para a direita.

Elas são fundamentais para o PSD, que tem uma minoria demasiado apertada para se poder dar ao luxo de ter uma segunda derrota eleitoral, depois das europeias.

Elas são importantes para o Chega, que precisa de se afirmar localmente à dimensão do peso nacional que ganhou. Não pode ser eternamente Ventura. Bloco, Livre e PAN não contam para mais do que vereadores.

Por razões simbólicas, mas não só, Lisboa tem uma importância central. É a câmara mais relevante em disputa entre os dois principais partidos, que esteja nas mãos de um deles, coisa que não acontece com o Porto.

Há quatro anos, ainda Fernando Medina presidia à autarquia da capital, avisei que perderia as eleições se não conseguisse travar a gentrificação da cidade. Que a expulsão dos pobres resultaria na derrota da esquerda. Alguma direita de raciocínio linear interpretou isto como a afirmação de que quando se acaba com os pobres a esquerda é derrotada. Se isso fosse verdade, os escandinavos não teriam sido governados pela esquerda durante décadas. Neste caso, não estamos a falar de acabar com os pobres, mas de os expulsar.

Essa é a perversidade das políticas urbanas: é que os autarcas que não se preocupem com a coesão social podem ser beneficiados por isso. Basta esperarem que o mercado imobiliário se encarregue de fazer a limpeza social os cadernos eleitorais, mandando os mais pobres para fora do concelho. Por isso escrevi que Carlos Moedas tem um projeto de classe para Lisboa que também é um projeto eleitoral.

Nem todas as pessoas mais abastadas votam no PSD ou na IL. Nem todos os eleitores destes partidos são abastados, como é evidente (no PSD até será uma pequena minoria). Mas a sobrerrepresentação destas forças nas zonas mais caras de Lisboa é facilmente verificável no mapa eleitoral. Em poucas cidades do país isso será tão evidente, aliás.

É por isso que, da mesma forma antevi o risco de Medina perder a Câmara por via da gentrificação, antevejo o risco da esquerda nunca mais ganhar a capital com o reforço acentuado desse processo. Arrisco-me a dizer, aliás, que esta será a última oportunidade para o fazer. Se nos quatro anos seguintes a expulsão (já não dos pobres, mas da classe média) continuar, Lisboa será um condomínio onde vivem endinheirados, alguns velhos e estrangeiros. Salpicado de bairros sociais, onde o presidente do momento tende a usar sempre o seu poder.

O “Público” chamou, recentemente, à atenção para as mudanças demográficas e o seu possível impacto eleitoral. Lisboa perdeu quase 17 mil eleitores entre as eleições de 2017 e as de 2021, enquanto a Área Metropolitana ganhava 20 mil. A tendência vinha de trás e acentuou-se ainda mais: entre as últimas autárquicas e as legislativas deste ano foram mais 11 mil embora. Desta vez, a queda é acompanhada pela AML, que perdeu dez mil. Os concelhos periféricos, como Mafra ou Palmela, ganharam eleitores.

O jornal, como qualquer pessoa atenta, relaciona esta perda demográfica com a crise da habitação. O que quer dizer que este movimento tem um forte peso económico. Como explica o geógrafo Luís Mendes, “quem está a ser expulso é essencialmente a classe trabalhadora e quem consegue viver na cidade é uma nova classe média endinheirada ou a classe média alta”, que quer dizer que a “a cidade se torna mais elitista, dual, fragmentada, e isso vai afectar os resultados eleitorais, que têm uma componente, do ponto de vista sociológico, muito forte”. Concluindo que “uma burguesia intelectual vai votar mais possivelmente na Iniciativa Liberal”. Eu diria que, neste caso, tenderá a votar na coligação de direita em que a IL deverá participar. Moedas tem sabido falar com este eleitorado, ao mesmo tempo que assiste à partida do restante.

Este movimento poder ter, aliás, impactos nas periferias. Da mesma forma que o PS foi conquistando câmaras ao PCP, na margem sul, à medida que a classe média baixa era expulsa de Lisboa e ia para os dormitórios da antiga cintura industrial proletarizada, o PSD tenderá a ganhar força à medida que a classe média, mesmo a remediada, também sai da cidade. Estaria com atenção aos resultados do Montijo e de Alcochete, por exemplo.

Moedas está, há três anos, a fazer campanha sozinho. Qualquer candidato terá, neste momento, menos notoriedade do que o presidente da Câmara em exercício. O trabalho de terreno, com a influência que Moedas tem nas televisões e as redes dominada pela direita, é essencial.

E a esquerda só ganha se for unida e para isso é preciso construir uma plataforma programática comum que possa incluir o Bloco, o Livre e mesmo o PAN. A decisão do PCP ficar de fora só não será suicida se a campanha for uma tal catástrofe para a esquerda que a vitória de Moedas se torne inevitável. Se a alternativa a Moedas for popular à esquerda, seria bom os comunistas repensarem a sua opção. Tudo isto só tem validade se a candidatura da oposição for realmente forte, mostrando o empenho do PS e seus potenciais aliados na eleição em Lisboa. Veremos, provavelmente, em breve.»


12.1.25

Um vaso diferente

 


Vaso com design Orivit, 1899. Recebeu a Medalha de Ouro durante a Feira Mundial de Paris em 1900.
Hermam Gradl.

Daqui.

Descubra as parecenças

 


Luís Vargas no Facebook.

Insegurança?

 




Os superegos da distopia

 


«A distopia entrou nas nossas vidas sem bater à porta. Os Estados Unidos têm dois presidentes, um eleito pelo povo, Donald Trump, que admite mandar avançar o exército mais poderoso do Mundo sobre o território de um aliado, e o outro, Elon Musk, líder de uma espécie de governo-sombra, apostado em derrubar o primeiro-ministro britânico. É uma amostra, porque o mandato ainda nem começou. Pode não passar de fanfarronice ou de mais um acesso de loucura diplomática, mas o desejo de controlo da Gronelândia, “à la Putin”, é a pior notícia possível para os ucranianos e para a comunidade internacional. Como poderá um governante defensor de doutrinas expansionistas exigir ou mediar o fim de um conflito que começou precisamente no dia em que a Rússia invadiu um país vizinho? Por absurdo, muitos do que levantaram a voz contra Putin, compreensivelmente, são os mesmos que não conseguiram esconder uma certa felicidade mesquinha pela derrota de Kamala Harris para o plutocrata que se prepara para assumir o poder na América, incompreensivelmente. Juntos, e veremos quanto tempo durará a convivência, os superegos de Trump e de Musk são dinamite incandescente no barril de pólvora em que se transformou a Terra nos últimos três anos. Sabíamos que eram racistas, machistas e homofóbicos, até fascistas, talvez, mas expansionistas ninguém estaria a contar. Como a Europa, o último bastião da decência, evolui anémica no seu emaranhado burocrático, é difícil encontrar um gatilho de mudança. Só mesmo o povo, como aquele que ontem saiu à rua em Lisboa, pode travar os saudosistas das ditaduras do século passado que conduziram a duas guerras mundiais, porque o tempo é outro, mas a ideologia é a mesma.»


Mr. Trump?