«O primeiro-ministro português faz parte daquele grupo de pessoas para quem não há nenhuma diferença entre um racista e um anti-racista. O primeiro-ministro português considera que as dezenas de milhares de pessoas que saíram à rua, no último sábado, em Lisboa, para defenderem valores cívicos, como o respeito pelo outro ou a igualdade de tratamento, e condenarem o racismo ou a discriminação, são tão extremistas quando os verdadeiros extremistas.
As declarações de Luís Montenegro são graves. O primeiro-ministro de um partido social-democrata, que tanto gosta de invocar Francisco Sá Carneiro, colocou ao mesmo nível quem defende a dignidade humana e a cidadania e quem a nega.
Estamos entendidos. Ficamos a saber que o primeiro-ministro deste país não vislumbra qualquer distinção cívica entre o SOS Racismo e o Habeas Corpus, que não encontra diferenças entre as organizações não-governamentais e os partidos democráticos de esquerda que percorreram a Avenida Almirante Reis e o Chega e o Ergue-te.
Ficamos a saber, também, que a Conferência Episcopal Portuguesa é extremista, na medida em que o seu presidente, José Ornelas, afirmou que a manifestação, na sequência da operação policial de Dezembro, na Rua do Benformoso, “foi uma forma bonita de dizer que ‘nós não nos resignamos’”.
Não. Montenegro, contrariamente ao que apregoou, não é um modelo da virtude da moderação. Dizer que os “extremos saíram à rua” significa que, para o primeiro-ministro, uma manifestação destinada a defender a democracia e o Estado de direito tem o mesmo valor de uma manifestação em que se propõe o contrário e se grita que “Portugal é nosso e continuará a ser nosso”.
A desvalorização da primeira só valoriza a segunda, aquela em que se fala em nós e os bandidos. Se uma se opõe a que se encostem imigrantes à parede por dá cá aquela palha, a outra sugere que se faça isso mesmo.
A verdade que transparece é que Luís Montenegro se dá bem com a imagem dos imigrantes encostados à parede, apesar de todas as reminiscências que isso inclui, embora admita que seja necessário melhorar a estética das operações. Um pormenor.
Montenegro tem razão quando diz que o país tem de continuar seguro para aqueles que cá vivem e para aqueles que cá querem investir. Só lhe faltou acrescentar que essa segurança tem de ser para todos, sem excepção, o que nem sempre fica claro nos seus discursos. Ainda nesta segunda-feira, voltou a falar em segurança, como se a insegurança urbana e a criminalidade fossem os maiores problemas do país e da população.
A sua insistência só nos pode levar a concluir que a instrumentalização da polícia pode continuar a ser um estratagema para manter à tona a mentirosa correlação entre imigração e criminalidade, à qual a rixa deste fim-de-semana prestou um favor oportuno, mas que não legitima aquela associação, paralisar uma esquerda bloqueada pelo tema e dizer "não é não" ao Chega em público e dizer "sim é sim" em privado.
Sempre tão parco em declarações, mimetizando a distância e altivez de Cavaco Silva, o actual primeiro-ministro passou a repisar o discurso da insegurança quando os assessores de comunicação foram chamados em socorro de duas ministras próximas do abismo, que ameaçavam a reputação do jovem Governo. A insistência tem alimentado percepções incendiárias, por puro cinismo, em nome de uma estratégia eleitoralista que nada tem a ver com o interesse do país, mas apenas para cavalgar uma onda global que, assim o julga, o fará crescer nas sondagens. É razão para ficar atónito.
Luís Montenegro e Carlos Moedas têm vindo a fazer um grande esforço, perante o silêncio partidário interno, para guinar o PSD na direcção do discurso do Chega. Ao lado de Miguel Pinto Luz, no Algarve, no início da campanha das legislativas, Pedro Passos Coelho inspirou a estratégia e o mantra segundo o qual quem ganha é quem reproduz com mais convicção a cantilena contra os imigrantes e a retórica da deportação ou da remigração. E não importa que o que se diz seja falso.
Montenegro quer-nos fazer crer que o Governo da AD é o meio-termo entre dois extremos reprováveis. Não é verdade. Carlos Moedas tanto insiste no aumento da criminalidade em Lisboa, que todas as estatísticas o negam, a ponto de o ter feito a despropósito no 5 de Outubro, que até nos faz crer que o presidente da Câmara de Lisboa gostava que isso fosse verdade.
Montenegro não é moderado porque não quer. Moedas, idem, aspas, aspas. A escolha é simples: ou o primeiro-ministro e o PSD se colocam ao lado de quem se predispõe a lutar por valores democráticos ou de quem os procura destruir. Ou escolhem o país ou escolhem as sondagens. É uma questão de dignidade.»
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