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25.6.22
25.06.1967 - «All You Need Is Love»
Foi há 55 anos que foi lançado All you need is love, dos Beatles. A BBC convidou-os a participarem no primeiro evento transmitido mundialmente via satélite, ao vivo e simultaneamente para 26 países. O programa terá sido visto por cerca de 350 milhões de pessoas e, vá lá saber-se por que milagre, quase no fim do reinado de Salazar, Portugal foi um desses países.
Dos estúdios Abbey Road, em plena guerra do Vietname, saiu a mensagem mais simples que imaginar se possa, propositadamente assim concebida para que pudesse ser entendida por todos os povos do planeta.
Avisados antecipadamente, reunimo-nos em casa de amigos e vimos e escutámos a emissão, comovida e quase «liturgicamente». Tempos pesados, mas de esperança. E de uma certa inocência.
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Moçambique – Há 47 anos, a independência
Nasci numa rua com acácias vermelhas que nunca esqueci.
Sem qualquer consciência do que significava ser filha de colonos, achando perfeitamente normal que o mainato Fabião estivesse sempre por perto, 24 horas por dia. Excepto durante algumas, poucas, nas tardes de Domingo, em que desaparecia, vestido de branco, através do canavial que separava os quintais das moradias nem sei exactamente de quê.
Sem estranhar que só houvesse meninos brancos na escola, a decorar nomes de estações e apeadeiros da linha do Norte de um Portugal desconhecido, também os afluentes do Dão, e com a árvore de Natal posta numa varanda mas enfeitada com flocos de neve. Com a Polana como praia civilizada e o Palmar ainda totalmente deserto.
Fui «retornada» bem antes do tempo de outros, odiei Lisboa – cinzenta, tacanha e suja – mas por cá fiquei, nem sei se para o bem ou se para o mal.
Hoje, a terra que vi quando cheguei a este mundo comemora 47 anos de independência. Carrega um passado e um presente duros. Espero que venha a ter pela frente um futuro bem melhor.
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Menos direitos do que as suas avós
«O que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos decidiu nesta sexta-feira mostra como algumas das liberdades individuais que damos como garantidas não o estão.
Em muitos estados, a interrupção voluntária da gravidez (IVG) passará a ser proibida ou fortemente restringida. Nalguns, as mulheres serão obrigadas a prosseguir uma gravidez, mesmo que essa gravidez tenha resultado de uma violação. Nalguns, uma menor que tenha engravidado de um familiar que abusou dela não poderá abortar legalmente. A IVG poderá passar a ser proibida mesmo em casos em que a gravidez represente uma comprovada ameaça à vida da mulher ou quando o feto sofra de graves anomalias.
Os três juízes democratas que não alinharam com a maioria no Supremo Tribunal, Elena Kagan, Sonia Sotomayor e Stephen Breyer vão directos ao assunto num texto em que explicam a sua posição (e que foi publicado na íntegra no The Guardian): “As jovens de hoje chegarão à idade adulta com menos direitos do que as mães delas e as avós delas.”
De acordo com um levantamento do New York Times, a nova legislação restritiva deverá entrar em vigor “imediatamente” em 13 estados. Arkansas, Kentucky, Louisiana, Missouri, por exemplo, são alguns dos que impedirão a IVG em casos de incesto e violação.
Poucos minutos após a reversão da decisão do caso Roe vs. Wade, o Missouri vangloriou-se por ser o primeiro a avançar. “Este é um dia monumental para a santidade da vida”, disse o procurador-geral do estado.
Jane Roe foi o nome pelo qual ficou conhecida uma jovem mulher pobre que à terceira gravidez quis abortar; Henry Wade foi o procurador que representou o Texas. O caso chegou ao Supremo Tribunal que decidiu, em 1973, que o estado não tinha o poder de proibir o aborto. Ficou assim consagrado o direito das mulheres norte-americanas a interromper a gravidez em certas circunstâncias.
A decisão de hoje não o anula automaticamente. Mas cada estado passa a poder decidir. Trata-se de sujeitar “a decisão mais intensamente pessoal que uma pessoa pode ter de tomar aos caprichos de políticos e ideólogos”, como disse o ex-Presidente dos Estados Unidos Barack Obama.
As vítimas são sobretudo as mulheres mais pobres, que não têm como pagar abortos clandestinos em condições mínimas de segurança, nem dinheiro para pagar uma deslocação até ao estado mais próximo que tenha uma legislação menos restritiva. E foi aberta uma caixa de Pandora – há estados a querer discutir os direitos à contracepção.
A violenta decisão do Supremo é um retrocesso histórico com impacto em toda a sociedade e com consequências imprevisíveis.»
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24.6.22
Do retrocesso em matéria de direitos humanos
«O Supremo Tribunal dos Estados Unidos reverteu a decisão que protegia o direito ao aborto no país, conhecida como “Roe vs. Wade”. Os seis juízes conservadores votaram a favor e os três liberais votaram contra.
O reconhecimento constitucional do direito de interromper voluntariamente a gravidez até à 24.ª semana de gestação tinha ocorrido em janeiro de 1973, com sete votos a favor e dois contra. A decisão ficou conhecida como a “mais controversa da história do Supremo”.
A inversão desta decisão permitirá novamente aos estados proibir o aborto. Dada a grande divisão geográfica e política sobre a questão, espera-se que metade dos estados, especialmente no sul e no centro conservadores, proíbam rapidamente o procedimento.»
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A estrutura dos problemas estruturais
@joãofazenda
«Intrigado com o caos nas urgências de obstetrícia, fui tentar saber mais sobre o fenómeno. A primeira ideia com que fiquei é que se trata de um problema estrutural, o que é óptimo. O problema estrutural é o tipo de problema cuja responsabilidade não pertence a ninguém. Se tivéssemos um euro por cada vez que alguém disse, nas últimas semanas, a frase “estamos perante um problema estrutural”, teríamos dinheiro suficiente para resolver o problema estrutural. No entanto, curiosamente, a falta de dinheiro não parece ser uma das causas do problema. O ministro das Finanças já disse várias vezes que não há falta de recursos financeiros no SNS. E há igualmente quem diga, apoiando-se em dados da OMS, que o problema também não é a falta de médicos. Sendo assim, a conclusão não é difícil: não havendo escassez de dinheiro nem de médicos, o caos nas urgências de obstetrícia só pode ser responsabilidade das grávidas. Faz sentido que assim seja. No auge da pandemia, os cidadãos isolaram-se em casa, para não sobrecarregar as urgências respiratórias. Do mesmo modo, é agora óbvio que as grávidas, antecipando este problema, se deviam ter isolado em conventos, para não sobrecarregar agora as urgências obstétricas. Conseguimos que o SNS resistisse à pandemia de covid, agora é preciso tentar que ele sobreviva à epidemia de bebés, que são muito mais prejudiciais à saúde.
Em defesa das grávidas, talvez seja importante dizer o seguinte: mesmo que elas quisessem e pudessem fazer o esforço de aliviar o caos nas urgências optando por ir ter os seus bebés ao estrangeiro, em princípio teriam de enfrentar o caos no aeroporto — problema que, se não estou em erro, é estrutural. Para resolver ambos estes problemas estruturais vai ser necessário, evidentemente, empreender uma reforma estrutural. Com esse objectivo, será fatalmente criada uma comissão, que começará a elaborar estudos. Quando esses estudos estiverem prontos, o mais provável é que o caos nas urgências já tenha desaparecido das notícias, substituído por outro problema estrutural, como os incêndios, as cheias, ou os atrasos no início do ano lectivo. Seja como for, e sem querer parecer derrotista, o mais provável é que, no que toca a medidas estruturais, a montanha vá parir um rato. Mas, como é evidente, se for esperta não o vai parir em Portugal.»
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23.6.22
Boris Vian morreu num 23 de Junho
Boris Vian morreu com 39 anos, vítima de crise cardíaca, em 23 de Junho de 1959. Escritor, engenheiro mecânico, inventor, poeta, cantor e trompetista, teve uma vida muito acidentada e ficou sobretudo conhecido pelos livros de poemas e alguns dos seus onze romances, como L’écume des jours e L’automne à Pékin.
Célebre ficou também uma canção – Le déserteur – que foi, durante muitos anos, uma espécie de hino para todos os que recusavam a guerra – incluindo muitos portugueses. Lançada durante a guerra da Indochina, foi grande o seu impacto e acabou mesmo por ser proibida por antipatriotismo, na rádio francesa, pouco depois do início da Guerra da Argélia.
(Serge Reggiani : Dormeur du Val , de Arthur Rimbaud, e Le déserteur de Boris Vian.)
Mas não só. Ficam mais duas:
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A saúde do Estado que temos
«O Governo tomou posse em março. O Orçamento do Estado para 2022 foi apresentado e discutido entre abril e maio deste ano. A guerra na Ucrânia já durava, os avisos sobre a escalada de inflação que alarmaram as economias da União Europeia também já davam sinais desde o ano passado, bem como o anúncio de que o Banco Central Europeu deixaria de cobrir o financiamento da dívida soberana portuguesa, que é a terceira mais elevada da UE.
Sabia-se também da insatisfação dos portugueses com o serviço prestado pelo Estado social em áreas como a Saúde e a Educação. Também não é de ontem haver cada vez mais investidores a apostarem em novos colégios e hospitais privados. Fazem-no porque sabem que há procura e acreditam no retorno do investimento. E há procura porque as famílias têm hoje novas expectativas e necessidades, para as quais não encontram a resposta que esperam.
A realidade é que hoje muitos trabalhadores que podem suportam dois serviços de saúde e dois serviços de educação. Pagam-nos através dos impostos, e depois através do rendimento que têm após os impostos que pagam.
Mais violento. Para quem não pode sobra o Estado que temos, que vai enfraquecendo porque também médicos, enfermeiros, técnicos de diagnóstico têm hoje oportunidades de carreira mais aliciantes fora do Serviço Nacional de Saúde, desfalcando-o e empobrecendo-o.
Quando António Costa apresentou ao país a sua proposta de Orçamento esta realidade já existia. Os indicadores estavam todos lá. O país é o mesmo, com a diferença de que as pessoas ainda não sentiam a dor dos sintomas.
O Orçamento aprovado este ano foi, por assim dizer, um ato de fé de que Portugal e o Mundo eram os mesmos de 2015. Mas não são.
Se uma maioria absoluta não serve para encarar e agir sobre esta realidade, então para que serve?»
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22.6.22
PS/Governo e SNS
Que novo significado terá passado a ter a palavra «PLENITUDE» na língua portuguesa para ser utilizada por PS/Governo para caracterizar a «dedicação» de médicos ao SNS, por oposição à EXCLUSIVIDADE que os partidos à sua esquerda sempre reivindicaram? Trata-se de uma «dedicação» que permite que se acumule trabalho no sector público e no privado. Mas chamam-lhe «PLENA» porquê?
(Ainda hoje a expressão voltou a ser usada por António Costa no debate quinzenal.)
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Que mundo!
Aeroporto de Heathrow, em Londres, durante o último fim de semana, devido a um problema técnico. Foi necessário cortar 10% no número de voos no dia 20 de Junho para tentar restabelecer a normalidade.
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Equivalências históricas
«Mohammad Al Attar, um jovem dramaturgo sírio refugiado na Alemanha, chamou-me a atenção para a intervenção militar russa na Síria como teste de equipamento e treino da aviação na identificação de alvos inimigos e destruição de cidades. Ele considera que a guerra na Síria é o equivalente da guerra civil em Espanha (1936-1939), onde o apoio nazi às tropas nacionalistas funcionou como preparação da Segunda Guerra Mundial.
O raciocínio tem fundamento, embora a escala de intervenção seja diferente. 16.000 alemães participaram na guerra civil do lado nacionalista espanhol como pilotos, artilheiros, condutores de tanques e instrutores militares. Os nazis exportaram enorme quantidade de material militar para Espanha, testando tanques e aviões. Treinaram 56.000 militares nacionalistas. A Legião Condor participou em numerosas batalhas, tendo sido decisiva na destruição de cidades resistentes, aviões e navios republicanos. A vitória nacionalista deveu-se em parte ao apoio nazi e fascista, que forjaram ali a sua aliança.
A ocupação da Crimeia por tropas russas ocorreu em fevereiro de 2014, seguida em abril pelas declarações separatistas no Donbass. A intervenção militar russa na Síria foi lançada em setembro de 2015. Em dois anos a força aérea desencadeou mais de 20.000 missões, enquanto 45.000 soldados e marinheiros adquiriram experiência de combate. Os russos obtiveram uma base militar e uma base naval permanente na Síria. O método de destruição de cidades e alvos civis, já ensaiado na Tchetchénia na guerra de 1999-2009, foi ali aperfeiçoado.
As equivalências históricas não ficam por aqui. A justificação da expansão nazi residia na unificação do povo alemão, supostamente oprimido na Áustria, nos Sudetas, em regiões tão distantes como o Volga. O tratado Molotov-Ribbentrop de 1939 previa a partilha da Europa de leste entre a União Soviética e a Alemanha nazi. A ocupação de parte da Polónia, da Finlândia, da Roménia, e das repúblicas Bálticas pela União Soviética foi feita de imediato.
A proteção das populações de origem russa tem sido a justificação de Putin para as sucessivas invasões da Geórgia, Chechénia e Ucrânia. O método de destruição de cidades para quebrar a resistência é semelhante. Surgem agora declarações de russos no Cazaquistão e noutras repúblicas independentes da ex-União Soviética que não querem ser “protegidos”. O preço a pagar é elevado: o recrutamento militar compulsório no Donbass e na Crimeia enviou para a frente de combate na Ucrânia milhares de jovens. A política extrativista russa passa pela apropriação de cereais ucranianos e pilhagem dos complexos industriais arrasados no Donbass.
O ressentimento nazi face à derrota na Primeira Guerra Mundial e ao pagamento de indemnizações de guerra tem o seu equivalente no ressentimento russo face à desagregação da União Soviética. Existe uma diferença: enquanto a Alemanha nazi via o seu futuro na expansão para leste, a Rússia vê o seu futuro na recuperação do passado imperial. A elite russa, criada no final dos anos de 1990 em resposta à transição radical para uma economia de mercado depois do colapso da União Soviética em 1991, está obcecada pelo passado imperialista herdado do tempo dos czares, reconstituído e alargado pelo regime comunista. Como bem definiu Masha Gessen, não existe visão de futuro para esta elite, que se apropriou das grandes empresas estatais e estabilizou a economia russa na base da exploração de matéria-primas. O futuro está no passado, isto é, na recuperação de territórios coloniais que garantam a expansão da política extrativista, enquanto a política de guerra permite a perpetuação desta elite que estava em declínio político.
Contudo, a diferença de projetos imperiais nazi e russo não parece ser absoluta. O delírio de domínio da Europa está presente nos debates da televisão estatal russa, onde a ameaça nuclear e a invasão dos países ocidentais são temas invocados com frequência. A ideia nazi de espaço vital é repetida.
A transformação do regime russo numa ditadura é visível nos últimos vinte anos. A estrutura económica é controlada por um segmento de grandes empresas com ligações estatais que não dá espaço à emergência de alta tecnologia, ao contrário do que acontece na China. A oposição tem sido arredada do sistema político, com detenções em massa daqueles que protestam, política complementada pelo assassinato de opositores políticos, como Boris Nemtsov, e de jornalistas independentes (200 foram eliminados). O ensino das ciências sociais nas universidades, importantes para a criação de um espírito crítico, nunca ganhou raízes num universo universitário que está agora sob controlo político centralizado. A censura impede inclusive a referência à existência de guerra na Ucrânia. O universo da propaganda russa estabelece uma realidade paralela.
A ideologia nacionalista extremista é outra das equivalências históricas. A evacuação do internacionalismo operário e do apoio ao desenvolvimento de nacionalidades define a política de Putin, crítico de Lenine. A narrativa histórica que Putin absorveu é baseada no nacionalista Sergei Soloviev (1820-79) e no russo branco Ivan Iliin (1883-1954), monárquico, admirador do nazismo e do fascismo, que propunha o reforço do império. A russificação do Donbass, que está neste momento a decorrer, é feita com o envio de manuais escolares nacionalistas.
A rejeição do direito internacional revela continuidades. A invasão de países é uma forma extrema de violação do direito dos povos. A Ucrânia, na opinião de Putin, não tem direito a existir. A dignidade e integridade da pessoa humana, forçada a emigrar ou à perda de propriedade, não existe. O direito à vida, o primeiro de todos os direitos, é violado todos os dias nas condições desumanizadas de guerra. O desprezo total pelos direitos humanos faz parte desta política de submissão através da destruição e pilhagem. A arrogância anti-humanista identifica qualquer projeto totalitário.
A última equivalência histórica tem a ver com o ódio visceral à democracia liberal. Os anos de 1920 e 1930 foram palco de uma poderosa ofensiva contra o regime parlamentar, visando a instalação de regimes ditatoriais com formas corporativas de representação ou eleições fraudulentas. As eleições na Rússia seguem a mesma linha de exclusão da oposição e de manutenção do país amordaçado pela censura e ameaça de detenção. A regra democrática básica de respeito pela diversidade de opinião ameaça regimes totalitários.
As equivalências históricas, para as quais Richard Evans tem chamado a atenção, não significam repetições. Concentrei-me aqui nas equivalências entre a Alemanha nazi e a Rússia de Putin dada a partilha da ideologia nacional-imperialista, mas poderia ter alargado a análise à absorção dos métodos de guerra dos americanos no Vietname ou no Iraque. É a ideologia nacionalista e o projeto totalitário que estão de novo em jogo ao fim de cem anos da emergência fascista/nazi. É este projeto que atrai os servidores voluntários ocidentais de Putin.»
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21.6.22
Solstício
Já lá vão alguns anos, mas nunca esquecerei que vivi o dia mais longo da minha vida bem ao Norte, na belíssima cidade norueguesa de BERGEN. As casas, o verde, a água, a luz, as cores do mercado – tudo lindíssimo, nada destoa!
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Passaram três anos
Encontrei isto, hoje, neste blogue. Reclamava-se então por causa do fecho de uma das quatro Urgências nas maternidades de Lisboa, em cada dia, durante o Verão.
Passaram três anos.
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Qué viva Colômbia!
«Ao contrário do que querem fazer-nos crer os ideólogos do capitalismo tecno-financeiro global e hoje dominante (também chamado neoliberalismo), a História, obviamente, não acabou nem para. Por isso, alguns deles não escondem, agora, que o modelo deve ser imposto mesmo à custa de guerras e expansionismos, confirmando que, ao contrário (talvez) do "velho e bom liberalismo", o atual não gosta de pessoas (prefere robôs e algoritmos). Apesar de tudo, os desvalidos resistem e, de vez em quando, mostram que sonhar continua a ser possível.
O mais recente exemplo de que a História não terminou aconteceu no último domingo na Colômbia: pela primeira vez na história desse país latino-americano, um candidato progressista, Gustavo Petro, foi eleito presidente da República; ao mesmo tempo, e também pela primeira vez, uma mulher negra, igualmente progressista, Francia Márquez, foi eleita vice-presidente.
Ou seja, os "nadies" (zés-ninguéns) ganharam. A vice-presidente eleita resumiu assim esta inédita ocorrência, depois de mais de 200 anos de governos elitistas (cito de cor): - "Esta foi a vitória dos despossuídos, dos pés descalços, dos que nunca tiveram nada, dos "nadies", dos povos originários, do meu povo negro, das comunidades discriminadas de LGBTQ+ e de todos os colombianos!".
Insisto no seguinte detalhe: a vitória de Petro e Francia é particularmente notável, tendo em conta que a sociedade colombiana é, historicamente, das mais elitistas e conservadoras da América Latina. Ao assistir aos atuais acontecimentos, não pude deixar de evocar uma conversa que tive em tempos com a mãe de um amigo colombiano, uma senhora simpática e gentil, que me jurou que na Colômbia não havia (?) negros. Eu, que só via negros na seleção colombiana de futebol, calei-me, por uma questão de boa educação.
Mencionar o conservadorismo, o elitismo e o racismo das classes dirigentes colombianas talvez seja pouco. O escritor José Maria Vargas Vila, por exemplo, relatava que os ditadores da Colômbia molhavam o punhal em água benta antes de assassinar alguém. A verdade é que, ao longo de toda a sua história, o país foi governado por elites brutais e sanguinárias, responsáveis por um regime baseado no terrorismo de Estado, assim como na cumplicidade com o narcotráfico e a violência das milícias.
Os "nadies" e as forças progressistas sempre se rebelaram e tentaram mudar esse estado de coisas, inclusive com o recurso à luta armada, que, na última fase, durou mais de 50 anos. Esse substrato foi permitindo ao longo dos últimos anos o crescimento eleitoral da esquerda colombiana. Por outro lado, as elites (ditas conservadoras e liberais) que, durante mais de dois séculos, se foram alternando no poder, caíram gradualmente em descrédito, ao longo do tempo. Por isso, nas últimas eleições, o candidato considerado de centro-direita, Federico Gutiérrez, não conseguiu ir à segunda volta, tendo os conservadores sido representados por um magnata ("oligarca", para usar a palavra da moda) da construção, suposto D. Juan e admirador confesso de Hitler, Rodolfo Hernández.
Desta feita, os colombianos entenderam que estavam diante de uma "eleição transformadora" (expressão do analista brasileiro Mathias Alencastro) e que, por isso, não podiam perder tempo com um aventureiro. Gustavo Petro foi inteligente e conseguiu atrair centristas e conservadores prestigiados para o seu "Pacto Histórico". Mas a escolha de Francia Márquez para vice-presidente foi um tiro na mosca: no Caribe e no Pacífico colombianos, regiões de grande concentração de populações afrodescendentes, a votação na dupla Petro-Francia foi acachapante.
O papel da nova liderança colombiana não será fácil. O país, além da desigualdade, da pobreza e do racismo, é marcado pelo crime e a violência. As relações com os EUA, que mantêm bases militares no território colombiano, são complexas. Impossível prever, pois, como será o futuro imediato. Mas o simples facto de ter ocorrido, torna a mudança eleitoral de domingo literalmente histórica.»
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20.6.22
O silêncio dos culpados
«A viragem do milénio deixou o mundo extasiado perante os efeitos da globalização económica, nos estilos e bem-estar da idade moderna. Escancararam-se as fronteiras para dar vida ao “laissez faire, laissez passer”, somaram-se as trocas e as missões empresariais aos mercados ditos emergentes. As empresas multinacionais, em asfixia concorrencial, corriam para os novos paraísos laborais cheios de gente desnutrida de condições sociais. As terras que ficavam para além da Taprobana tornaram-se o centro da produção industrial e do crescimento económico mundial. (…)
Mas estavam todos enganados. Por detrás do fervor mercantil e dos silêncios interesseiros, renasciam novos despotismos. Entre muitos outros exemplos, a Turquia, a Rússia e a China colocaram no topo do poder homens fortes, determinados a calar todos aqueles que os ousam desafiar. Engrossam-se as vozes, exaltam-se as nações e exibe-se o poder de fogo. As classes médias, destes países aburguesadas, também se acobardam, as bocas fartas perderam a vontade de falar.
Taiwan deixou de contar para o ocidente, tal como Hong Kong ou o Tibete. Pedaços de uma China imperial ávida de terras que só incomoda quando o tabuleiro do poder global se desequilibra. (…)
Na realidade, muitas são as contradições da política externa americana ao longo dos anos, não faltam maus exemplos, mas a perspetiva maniqueísta, das lutas de poder globais é um erro. Uns e outros são pautados pela lógica dos interesses, não há potências benignas e malignas, mas há umas melhores do que outras. Uma nova ordem internacional dominada pelos novos despotismos não será melhor do que a ordem internacional estabelecida. De um mundo mau, pode-se estar à procura de um mundo pior, como aconteceu tantas vezes na história.
Os tempos que correm estão fraturados entre uma parte que tem voz e outra silenciada; uma que pode erguer os punhos e outra onde estes são acorrentados. Esta é uma diferença fundamental, e não podemos ficar em silêncio na defesa dos valores em que acreditamos. Se permitirmos que a escuridão se sobreponha à luz, para além dos governos, também nós seremos todos culpados.»
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Num novo sistema tripartido, Macron napoleónico morreu
«Lembro-me dos debates, por essa Europa fora, e em Portugal também, em torno do apelo de Mélenchon na noite da primeira volta das últimas eleições presidenciais, quando ele ficou em terceiro. Ao dizer que nem um voto deveria ir para Marine Le Pen não teria sido suficientemente claro, dizia-se.
O sistema eleitoral para as eleições legislativas em França, de duas voltas em que podem passar mais do que dois candidatos, foi desenhado ao milímetro para favorecer o centro e afastar muitos franceses da escolha. Não espanta que tantos se vão abstendo, quando alguns dos partidos mais relevantes tinham uma representação marginal na Assembleia. Na passagem da primeira para a segunda volta, o movimento Ensemble!, de Emanuel Macron, teve uma grande queda face a 2017 – nos 577 círculos, passou de 518 na segunda volta para 420. A aliança Nouvelle Union Populaire Écologique et Sociale (NUPES, que junta a France Insoumise de Mélenchon, ecologistas, comunistas e socialistas) teve uma grande subida – passou de 146 para 390. Republicanos e democratas tiveram uma queda enorme – passaram de 300 para 75. E a extrema-direita de Le Pen uma subida: passou de 120 para 208.
Na campanha para a segunda volta das presidenciais, Macron e as principais figuras do partido criado à sua imagem e semelhança apelaram ao voto da esquerda em nome de uma “frente republicana” que partilha um conjunto de “valores comuns”. Chegada à campanha da segunda volta destas legislativas, os valores comuns passaram a ser, para os macronistas, entre os dois “extremistas”, sem distinção. Uma coligação que inclui socialistas e ecologistas foi mesmo chamada de “anarquista”.
O movimento de Macron recusou o apelo ao voto – mesmo que fosse pela negativa, como fez Mélenchon – genérico nos círculos onde não passou à segunda volta e era preciso vencer a extrema-direita. Incluindo a circunscrição onde a própria Marine Le Pen passou à segunda volta (o 11º círculo de Pas-de-Calais), enfrentando a ecologista Marine Tondelier, que concorreu pelo NUPES. Alexandrine Pintus, do Ressemble, foi eliminada na primeira volta e apelou ao voto em branco, favorecendo a eleição de Marine Le Pen.
A ministra da Transição Ecológica, Amélie de Montchalin, disse "aos republicanos da esquerda e da direita para bloquearem a extrema-esquerda no domingo", pois "o seu verdadeiro projeto é a desordem e a anarquia, o permanente questionamento das nossas instituições e dos meios de comunicação social". O ex-ministro da Educação, Jean-Michel Blanquer, disse que "a extrema-esquerda é um perigo tão importante como a extrema-direita". Há umas semanas, apelou ao voto da “extrema-esquerda” em Macron para travar a extrema-direita. A ministra do Desporto, Roxana Maracineanu, apelou "frente republicana", mas para travar a candidata da NUPES, Rachel Keke, uma trabalhadora das limpezas que liderou uma luta laboral com a Ibis. Uma perigosa anarquista comparável aos bullies neo-fascistas, portanto.
Uma das poucas exceções ao oportunismo absoluto do macronismo foi o ministro da Educação, Pap Ndiaye, que disse o óbvio: "o combate à extrema-direita não é um princípio de geometria variável". E a porta-voz do partido, que repetiu o apelo que mereceu tantas críticas a Mélenchon, nas presidenciais: "nem um voto deve ir para a União Nacional". O que foi pouco em Mélenchon foi extraordinário nas hostes de Macron.
Isto serve para recordar o que já devia ser óbvio para todos: os neoliberais, mesmo os que se dizem centristas, preferem a extrema-direita à esquerda. Ela não lhes levanta nenhum problema relevante nas suas políticas fundamentais e funciona como fantasma para exigir os votos daqueles com quem dizem, apenas quando lhes interessa, partilhar valores comuns. Como se viu nesta campanha, não acreditam nessa partilha. E talvez tenha razão para não acreditar. Por esse mundo fora, não faltam alianças entre neoliberais e extrema-direita, não encontram muitas com a esquerda.
A esquerda deve participar na resistência à extrema-direita sem hesitações. Porque os seus valores – os mesmos que a levam a combater Boris Johnson e o seu sinistro programa de envio de refugiados para o Ruanda – não lhe permitem o tipo de relativismo moral que o partido de Macron exibiu. Mas a melhor forma de combater a extrema-direita é disputar-lhe eleitores. É ser alternativa ao neoliberalismo, nunca sua aliada.
Depois de 25% na primeira volta (o mesmo que a NUPES), Emanuel Macron perdeu, ontem, a maioria absoluta. Precisava 289 deputados, ficou-se pelo pelos 246 (39%). Longe de conseguir o sonho de liderar o governo depois de estar tão próximo do seu estertor, a esquerda afirmou-se, graças à NUPES, como a principal força de oposição: 142 deputados (32%), 155 com o resto da esquerda. Se tivesse aceitado o papel de secundarização que muitos idiotas uteis defendem, seria a extrema-direita a liderar a oposição. Conseguiu romper o bloqueio de um sistema eleitoral feito para a deixar fora do parlamento – enquanto crescia fora dele – e conquistou um número de deputados histórico: 89 (17%). Este é o legado de Macron. Na sua governação e, nesta campanha, quando os seus candidatos normalizavam a extrema-direita, comparando-a à esquerda. A direita tradicional (LR e UDI) fica-se pelos 64 deputados (7%). Uma queda a pique que, no entanto, lhes dá a possibilidade de construir maioria com a Macron.
Neste momento, Macron tem três possibilidades. A primeira é governar com a direita tradicional, aceitando o sistema tripartido que se impôs (com ele, Mélenchon e Le Pen como principais figuras, o que pela primeira vez se traduziu em representação parlamentar, mesmo que distorcida) e fazendo pontes com o espaço político a que realmente pertence, libertando definitivamente o centro-esquerda. Os republicanos disseram, no entanto, que continuariam na oposição, mas “construtiva”. A segunda é tentar dividir o bloco dos partidos da esquerda, para voltar a ter Le Pen como única alternativa. Se socialistas e comunistas caírem na esparrela voltarão a namorar a extinção depois da NUPES os ter salvo. A terceira é esperar um ano, demonstrar a ingovernabilidade da nova situação, e dissolver o parlamento. Isto, quando se adivinha uma crise económica que dificilmente lhe será favorável. Uma coisa é certa: sem maioria nem aliados, o Macron napoleónico morreu e agora tem a liderar a oposição um campo progressista que julgava ter neutralizado há cinco anos.»
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19.6.22
Vítor Wengorovius
Chegaria hoje aos 85 e partiu demasiado cedo. Estive com ele dezenas ou centenas de vezes, mas não consigo recordá-lo a não ser a rir às gargalhadas ou a não ser capaz de parar uma intervenção prevista para cinco minutos e que já durava há mais de meia hora. Um ser maravilhoso.
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Parabéns, Chico
Chico Buarque nasceu em 19 de Junho de 1944. O tempo voa e o menino virou velho. E daí?
Cereja em cima do bolo: «Que Tal Um Samba?», publicado esta semana:
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Ignorar as necessidades de saúde de 100 milhões de deslocados não é uma opção
«“Ainda não encontrei uma forma de me manter calma. Sinto-me assustada a toda a hora. Pessoas como eu precisam de cuidados de saúde mental porque nos sentimos completamente desorientadas e perdidas. A minha mãe está na mesma situação - chora, vê as notícias no telemóvel e não faz ideia do que vai acontecer a seguir. A minha irmã mais nova também - não quer brincar ou socializar, só quer ir para casa”. Este é o testemunho de Olga, uma mulher ucraniana de 20 anos que acabou de regressar a casa e que descreve a sua experiência como refugiada.
Este mês assinalaram-se 100 dias de guerra na Ucrânia. Milhões de pessoas viram-se forçadas a deslocarem-se desde o início da guerra, sofrendo com o stress e a incerteza. Mais de 4,7 milhões de refugiados fugiram para países vizinhos e países de acolhimento. Milhões de pessoas estão desalojadas dentro das fronteiras do país. Tenho visto com os meus próprios olhos o impacto devastador na vida e na saúde da população quando visito a Ucrânia, a Polónia, a República da Moldáva e a República Checa. A Europa está a assistir ao maior movimento de refugiados dos últimos 75 anos.
Hoje é o Dia Mundial dos Refugiados. Hoje celebramos a força e a coragem das cerca de 100 milhões de pessoas que tiveram de fugir dos seus países de origem, o equivalente ao total da população da Alemanha e dos Países Baixos. Não satisfazer as suas necessidades de saúde não é uma opção no mundo interligado onde vivemos.
Neste momento, assistimos a uma necessidade crescente de serviços de saúde mental e de apoio psicossocial adaptados aos refugiados à medida que estes chegam aos países de acolhimento vindos da Ucrânia. A saúde mental e o bem-estar psicossocial destes indivíduos - a maioria deles mulheres e crianças - têm sido, em muitos casos, profundamente afetados pelas suas experiências, incluindo a exposição a eventos que ameaçam as suas vidas, deslocações, interrupção das ligações familiares e sociais, perda de casas e de meios de subsistência, falta de acesso a cuidados de saúde, educação e serviços sociais e receio pelos que permanecem em zonas de conflito.
Viver num cenário de conflitos armados, guerra, migração, separação familiar, testemunhar atrocidades e outros acontecimentos que ameaçam a vida pode ter consequências negativas imensas e muitas vezes duradouras para a saúde mental.
Na fase mais crítica, a maioria das pessoas vai experienciar sentimentos de angústia, ansiedade, tristeza, desespero, desesperança, dificuldade em dormir, fadiga e irritabilidade. São reações naturais e a maioria das pessoas vai melhorar com o tempo. No entanto, à medida que o conflito continua, o risco de desenvolver transtorno de stress pós-traumático aumenta drasticamente, especialmente se um indivíduo for diretamente afetado pela guerra, ou seja, se perder um ente querido ou sofrer ferimentos, por exemplo.
As crianças são especialmente vulneráveis neste contexto. Experiências altamente angustiantes podem influenciar o seu bem-estar psicológico, resultando frequentemente em problemas comportamentais e emocionais significativos.
É premente que os refugiados tenham acesso a cuidados de saúde de qualidade, incluindo de saúde mental e serviços de apoio psicossocial.
Isto aplica-se a todos os refugiados, independentemente da sua origem. Lembremo-nos que ninguém escolhe ser refugiado. São pessoas que foram forçadas a sair das suas casas devido a conflitos, perseguições ou catástrofes naturais.
O Escritório Regional da Organização Mundial de Saúde para a Europa está a apoiar países de toda a Europa e da Ásia Central a satisfazer as necessidades sanitárias dos refugiados, independentemente da sua origem, para complementar os serviços e apoios existentes.
Isto significa atender às necessidades sanitárias imediatas e ajudar os países a construírem sistemas de saúde adequados aos refugiados, que considerem as barreiras culturais e linguísticas. A OMS/Europa enviou peritos, logo após o início da guerra, para a Ucrânia e para os países vizinhos para iniciar o complexo processo de coordenação da saúde mental e apoio psicossocial, para informarem os refugiados que chegam com questões de saúde mental pré-existentes sobre onde obter ajuda - quer se trate de medicação psicotrópica ou de aconselhamento.
Temos de reconhecer o facto de que o grande número de refugiados que chegam tem impacto nos sistemas de saúde, mesmo em nações mais prósperas. A antecipação e preparação para tais situações é ainda mais necessária no mundo conturbado de hoje, contribuindo para a resiliência dos sistemas de saúde e protegendo o direito à saúde para todos - incluindo aqueles que, sem culpa própria, tiveram de fugir das suas casas e pátrias.
Vamos apoiar os refugiados em toda a Europa e em todo o mundo, convertendo a solidariedade em ações práticas e sustentáveis - agora e no futuro.»
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