21.6.22

Qué viva Colômbia!

 


«Ao contrário do que querem fazer-nos crer os ideólogos do capitalismo tecno-financeiro global e hoje dominante (também chamado neoliberalismo), a História, obviamente, não acabou nem para. Por isso, alguns deles não escondem, agora, que o modelo deve ser imposto mesmo à custa de guerras e expansionismos, confirmando que, ao contrário (talvez) do "velho e bom liberalismo", o atual não gosta de pessoas (prefere robôs e algoritmos). Apesar de tudo, os desvalidos resistem e, de vez em quando, mostram que sonhar continua a ser possível.

O mais recente exemplo de que a História não terminou aconteceu no último domingo na Colômbia: pela primeira vez na história desse país latino-americano, um candidato progressista, Gustavo Petro, foi eleito presidente da República; ao mesmo tempo, e também pela primeira vez, uma mulher negra, igualmente progressista, Francia Márquez, foi eleita vice-presidente.

Ou seja, os "nadies" (zés-ninguéns) ganharam. A vice-presidente eleita resumiu assim esta inédita ocorrência, depois de mais de 200 anos de governos elitistas (cito de cor): - "Esta foi a vitória dos despossuídos, dos pés descalços, dos que nunca tiveram nada, dos "nadies", dos povos originários, do meu povo negro, das comunidades discriminadas de LGBTQ+ e de todos os colombianos!".

Insisto no seguinte detalhe: a vitória de Petro e Francia é particularmente notável, tendo em conta que a sociedade colombiana é, historicamente, das mais elitistas e conservadoras da América Latina. Ao assistir aos atuais acontecimentos, não pude deixar de evocar uma conversa que tive em tempos com a mãe de um amigo colombiano, uma senhora simpática e gentil, que me jurou que na Colômbia não havia (?) negros. Eu, que só via negros na seleção colombiana de futebol, calei-me, por uma questão de boa educação.

Mencionar o conservadorismo, o elitismo e o racismo das classes dirigentes colombianas talvez seja pouco. O escritor José Maria Vargas Vila, por exemplo, relatava que os ditadores da Colômbia molhavam o punhal em água benta antes de assassinar alguém. A verdade é que, ao longo de toda a sua história, o país foi governado por elites brutais e sanguinárias, responsáveis por um regime baseado no terrorismo de Estado, assim como na cumplicidade com o narcotráfico e a violência das milícias.

Os "nadies" e as forças progressistas sempre se rebelaram e tentaram mudar esse estado de coisas, inclusive com o recurso à luta armada, que, na última fase, durou mais de 50 anos. Esse substrato foi permitindo ao longo dos últimos anos o crescimento eleitoral da esquerda colombiana. Por outro lado, as elites (ditas conservadoras e liberais) que, durante mais de dois séculos, se foram alternando no poder, caíram gradualmente em descrédito, ao longo do tempo. Por isso, nas últimas eleições, o candidato considerado de centro-direita, Federico Gutiérrez, não conseguiu ir à segunda volta, tendo os conservadores sido representados por um magnata ("oligarca", para usar a palavra da moda) da construção, suposto D. Juan e admirador confesso de Hitler, Rodolfo Hernández.

Desta feita, os colombianos entenderam que estavam diante de uma "eleição transformadora" (expressão do analista brasileiro Mathias Alencastro) e que, por isso, não podiam perder tempo com um aventureiro. Gustavo Petro foi inteligente e conseguiu atrair centristas e conservadores prestigiados para o seu "Pacto Histórico". Mas a escolha de Francia Márquez para vice-presidente foi um tiro na mosca: no Caribe e no Pacífico colombianos, regiões de grande concentração de populações afrodescendentes, a votação na dupla Petro-Francia foi acachapante.

O papel da nova liderança colombiana não será fácil. O país, além da desigualdade, da pobreza e do racismo, é marcado pelo crime e a violência. As relações com os EUA, que mantêm bases militares no território colombiano, são complexas. Impossível prever, pois, como será o futuro imediato. Mas o simples facto de ter ocorrido, torna a mudança eleitoral de domingo literalmente histórica.»

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