«Andava eu ausente em partes incertas e destituídas de notícias quando me chegou aos ouvidos o rumor da notícia da compra da Gronelândia pelo Donald. Ou pela América do Donald, que inclui o conjunto de deploráveis da senhora Clinton, coisa mais ofensiva de dizer do que elogiar os supremacistas broncos, perdão, brancos, fine people, very fine people. Pois o Donald, sem mais nem porquê, achou que era um bom negócio. Já a compra da ilha de Manhattan aos índios se tinha revelado um bom negócio, pelo menos para ele, os índios saberiam lá construir arranha-céus e torres com os nomes em cima. Torre Águia Branca Voadora ou Torre Grande Touro Sentado, um disparate. Trump Tower é imbatível. E, já agora, experimentem a linha de bonés e acessórios de golfe das montras da dita, um mimo de merchandising.
Voltando à Gronelândia, aquilo é tudo gelo e mais gelo e uns esquimós gordinhos de que mal se vê a cara com as peles. E os cães dos trenós. O que aqui interessa ao Donald e à grande América dele são os recursos naturais por baixo do gelo e a exploração de novas rotas, as autoestradas do Ártico, uma bem-aventurança das alterações climáticas. Pois o Donald já tinha uns esquemas combinados com os filhos para pôr a terrinha a render. Uns prédios de família, com vistas glaciais sobre os ursos polares mortos e embalsamados, mostra museológica do passado, terraços com piscina aquecida, ginásio e hotéis para o sol da meia-noite. E uns casinos, uma meia dúzia. Já os índios americanos tinham ido nesta conversa e viviam agora nas reservas com os rendimentos dos casinos, que davam e chegavam para as suas bebedeiras e para a Kentucky Fried Chicken e o Big Mac. Eram todos uns psicopatas deprimidos. O que fazer com os esquimós? E os cães?
Gente com este aspeto esquisito e os olhos em bico, baixinhos, sem saberem falar um inglês decente, não pode ser usada como criadagem. Dá mau tom. E os CEO das multinacionais amigas, que iriam explorar os recursos naturais, incluindo a terra rara para lixar a China, não iriam apreciar criados anões e meninas de vida fácil com um metro de altura. Fora os olhos em bico. Os esquimós cheiram a óleo de foca e só servem para isso, caçar focas. Haveria que arranjar-lhes uma reserva e exterminá-los lentamente, de tédio e melancolia e decrepitude. Com os índios deu resultado. Iam desaparecendo. Quem dera que os mexicanos e os latinos todos pudessem ser metidos na mesma cena. Mas eram muitos, demasiados. Uns filhos da mãe que se multiplicavam como coelhos. Quanto aos cães, punham-se a render no turismo, voltinhas de trenó com os lorpas para cima e para baixo. Até caírem, iam rendendo. Como os cavalos.
A proposta foi bem apresentada à Dinamarca, com todo o protocolo Trump que se resume a uma twittada de madrugada, quando a digestão do hambúrguer e da Coca-Cola pesa, e quando o Donald está farto das loiras da Fox News, raparigas que já foram um dez mas agora não passam de um sete. Desde que correram com o Roger Ailes aquilo deteriorou-se espetacularmente. Quem quer apalpar aqueles estafermos? E andam a contratar jornalistas a sério, caramba, o filho do Murdoch estava doido. Num tweet de génio, como todos são, o Donald concluiu que o negócio se faria. A Dinamarca estava farta de gastar dinheiro em subsídios com os esquimós que não rendem um chavo com as focas deles. Seria justo e normal que os dinamarqueses dessem um salto de contentes por o Tio Sam os livrar do embrulho.
Pois os dinamarqueses, muito armados em marqueses, reagiram mal. Que era um absurdo, disse aquela primeira-ministra, nota quatro, loura desmaiada, não se admiraria o Donald se fosse lésbica, os nórdicos têm a mania das lésbicas no Governo, que era uma humilhação, e que ele, o Donald, era um desbocado. O Donald? O Presidente dos Estados Unidos da América? Não se diz ao Presidente da America Great que ele é absurdo. Bate-se a bola baixinho, aquilo é a América, não é a Europa. E o Donald cancelou a viagem de Estado ao país com a melhor qualidade de vida do mundo, apesar dos sanguessugas dos esquimós. E até estes oleosos entraram na conversa para dizer que não estavam à venda. Não senhor. Olhem, vão vender o vosso óleo de foca à China, que eles compram, compram tudo.
E já agora que falamos na China, o que andam os chineses a fazer senão a comprar meio mundo? Só que vão lá com falinhas mansas, fecham o negócio e chamam àquilo investimento estrangeiro. Um porto aqui, uma praia ali, mais os recursos naturais e as redes energéticas. Compram, tal e qual o Donald quer fazer, mas untam umas mãos e deixam os governos vendedores ficar bem na fotografia, as tretas da soberania nacional de que os falidos dos europeus tanto gostam.
A verdade é esta. Os ricos compram os pobres, sempre assim foi e sempre assim há de ser. Mas dantes, quando os países tinham colónias, uma pessoa podia comprar tudo e ninguém vinha com manias de independência, o índio vendia Manhattan ou o Alasca e empochava o dinheiro para gastar em álcool e drogas. Agora eram só paninhos quentes. E já que falamos do Alasca, o Donald também tem umas ideias, aquilo nunca foi suficientemente explorado e rentabilizado, e com o degelo havia que começar a extrair o petróleo e abrir as rotas aos navios. Esta cena do clima é uma bênção para a terra, embora o Donald ache que são tudo patranhas. Há dinheiro a fazer com o aquecimento. Muito. Dinheiro para o manter no poder por muitos e bons anos.
Daqui a uns meses ia repetir a proposta aos dinamarqueses. O Donald nunca se ofende, é um negociante. Deixá-los amolecer. No estado em que a Europa está, com aquele socialismo todo, seriam os europeus a pedir batatinhas. Oh, Donald, compra-me lá os esquimós que eu vendo barato. Com sorte, ainda metia no pacote uns casacos de peles para a Melania e a Ivanka, uma coisinha para usarem nas viagens de Estado à Rússia. O Putin é que sabia. Quando ele lhe disse pela primeira vez, já reparaste que a Gronelândia era um bom negócio para vocês, ele nem tinha reparado. Um bom negócio como? O russo explicou. E, no fim, disse, lixas os europeus. A Crimeia ficou-me caríssima em material de guerra. Devia ter comprado em vez de invadir. Com aquele sorrisinho dele, o russo era um génio.»
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