11.3.23

Café

 


Bule para café, jarrinho para leite e açucareiro, cerca de 1905.
Oleiro: William Moorcroft (para Tiffany & Co).


Daqui.
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11.03.1975 - O dia em que nasceu o PREC

 


Nesse décimo primeiro dia de Março de 75, pelas 11:45, o RAL 1 (mais tarde conhecido por RALIS), foi bombardeado por aviões da Base Aérea nº 3 e cercado por paraquedistas de Tancos, na concretização de uma tentativa de golpe de Estado, liderada por António de Spínola.

O que se passou durante o resto desse dia é resumido num documento do Centro de Documentação 25 de Abril e está parcialmente gravado nos vídeos (no fim deste post). Dia que acabou já sem Spínola no país: com a mulher e quinze oficiais fugiu de avião para Badajoz.

11 de Março marca o início do PREC, que viria a durar oito meses e meio – até ao 25 de Novembro. Quem já era adulto lembra-se certamente dos ambientes absolutamente alucinantes de tudo o que se seguiu, sobretudo a partir de 14 de Março quando foi criado o Conselho da Revolução e se deu a nacionalização da Banca e da maior parte das companhias de Seguros.

E não se julgue que foi só a chamada extrema esquerda a aplaudir essas medidas:
«As nacionalizações são saudadas à esquerda e não são contrariadas à direita. O PPD apoiou-as, embora prevenindo que "substituir um capitalismo liberal por um capitalismo de Estado não resolve as contradições com que se debate hoje a sociedade portuguesa".
Mário Soares mostrou-se eufórico, considerando tratar-se de "um dia histórico, em que o capitalismo se afundou". Disse num comício que "a nacionalização da banca, que por sua vez detém (…) a maior parte das acções das empresas portuguesas e, ao mesmo tempo, a fuga e prisão dos chefes das nove grandes famílias que dominavam Portugal, indicam de uma maneira muito clara que se está a caminho de se criar uma sociedade nova em Portugal".» (Adelino Gomes e José Pedro Castanheira, Os dias loucos do PREC, p. 28.)

Foi assim, por mais inverossímil que pareça a 48 anos de distância.

Para quem quiser conhecer ou recordar os acontecimentos:






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11 de Março – o Dia da Unidade

 


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Marcelo ou como rebentar o Governo com um sorriso

 


«Marcelo Rebelo de Sousa decidiu, na entrevista que deu ao PÚBLICO e à RTP por altura dos sete anos em Belém, desferir os mais violentos ataques ao Governo desde que se tornou Presidente. Tudo se passou sem levantar a voz, vestindo aqui e ali a velha farda nunca arrumada de analista político, num tom mais ou menos light e ameno. Mas o Presidente foi mortal para o Governo como nunca antes o tínhamos visto – exceptuando a comunicação ao país na sequência dos violentos incêndios de 2017.

É esta a entrevista do corte definitivo do Presidente com o Governo? Pode ser. É verdade que Marcelo garantiu que não dissolvia a Assembleia da República enquanto não houvesse alternativa de Governo (que assumiu ainda não existir), mas pôs evidentemente a dissolução na agenda. Ainda que o Presidente o tenha feito com palavras embrulhadas em papel fantasia (só em situações "patológicas"), a partir de agora António Costa tem uma espada de Dâmocles em cima da cabeça. E não são fontes de Belém – é Marcelo a dizê-lo com todos os "ésses" e "érres". Quando Mário Soares decidiu ameaçar Cavaco Silva com a dissolução, nunca o assumiu em público. Convocou muitos conselheiros políticos para o célebre jantar no restaurante Aviz e debateu com eles uma possível dissolução. Mas nunca a verbalizou de viva voz nem teorizou sobre a sua possibilidade.

O ano perdido da maioria absoluta "cansada", a comparação com a segunda maioria de Cavaco Silva que era a de um executivo em decadência, a governação ao dia, a baixa execução do PRR, o pacote habitação "sete anos depois", o caso TAP e a queda "do ministro mais importante do Governo a seguir ao primeiro-ministro", foi tudo dissecado sem o Presidente pôr a mão por baixo do Governo, condição de que a direita o acusa frequentemente.

Depois de ter acontecido a demissão do "ministro mais importante do Governo a seguir ao primeiro-ministro" (Marcelo só podia estar a referir-se ao PS, e à influência que o ex-ministro das Infrestruturas tinha no partido, porque Pedro Nuno Santos não ocupava nenhum lugar central na hierarquia do Governo), Marcelo pôs o ministro das Finanças quase a prazo, quando o desafiou a fazer um inventário do seu passado, para ver se não descobre alguma coisa que lhe venha a causar problemas. O que sabe Marcelo que nós não sabemos? É o passado de Fernando Medina enquanto presidente da Câmara? É enquanto vereador? Se a questão da TAP já tinha fragilizado o ministro das Finanças – foi ele que contratou Alexandra Reis para secretária de Estado do Tesouro sem conhecer a sua vida profissional recente, como afirmou –, o aviso do Presidente é um acto público de lançamento de suspeitas sobre o ministro das Finanças que o fragiliza ainda mais.

Marcelo afirmou que dissolveria se estivesse em causa "o regular funcionamento das instituições" – a expressão inscrita na Constituição que permite ao Presidente demitir o Governo. Para dissolver não precisa de arranjar justificações. Ficou célebre o discurso de Jorge Sampaio quando decidiu dissolver a Assembleia da República em 2004 e acabar com o Governo Santana Lopes por causa de… "episódios".

Depois de sete anos de intensa cooperação Presidente-Governo entrámos em terreno desconhecido. Com uma garantia: enquanto a alternativa não existir, o Presidente não corta. A menos que António Costa decida, em 2024, aceitar o cargo de presidente do Conselho Europeu que lhe pode muito bem vir a cair no regaço.

Como perder uma eleição é o livro da estrela do marketing político português, Luís Paixão Martins, que agora foi novamente chamado pelo PS para tentar inverter o processo de queda nas sondagens. Resta saber se a coisa se resolve com um fixer, ainda que talentoso.»

Ana Sá Lopes
Newsletter do Público (excerto), 10.03.2023
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10.3.23

Jarras

 


Jarra com pinheiros, cerca de 1900.
Émile Gallé.


Daqui.
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Contas certas?

 

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Boris Vian, 10.03.1920

 


Boris Vian faria hoje 103 anos e morreu antes de chegar aos 40. Escritor, engenheiro mecânico, inventor, poeta, cantor e trompetista, também anarquista, teve uma vida acidentada e ficou sobretudo conhecido pelos livros de poemas e alguns dos seus onze romances, como L’écume des jours e L’automne à Pékin.

Especialmente célebre ficou também uma canção – Le déserteur – , que foi durante muitos anos uma espécie de hino para todos os que recusavam participar em guerras, incluindo muitos portugueses. Lançada durante a guerra da Indochina, foi grande o seu impacto e acabou mesmo por ser proibida por antipatriotismo, na rádio francesa, pouco depois do início do conflito na Argélia.

Nunca esquecerei quando Le déserteur cumpriu a função da mais improvável das marchas nupciais, no casamento de um amigo, em Bruxelas, no fim dos anos 60.


(Serge Reggiani : Dormeur du Val, de Arthur Rimbaud, e Le déserteur de Boris Vian.)

Mais:




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É isto. Realmente...

 

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Não te farás de parvo

 

     JOÃO FAZENDA 

«Quando o cardeal-patriarca e o bispo José Ornelas disseram que a igreja não podia fazer muito sobre os padres abusadores porque tinha recebido apenas uma lista de nomes, várias pessoas entraram em acção e chamaram a ambos uma lista de nomes. Foi uma lição importante sobre o poder de uma lista de nomes. Outro momento interessante ocorreu quando, questionado pelos jornalistas sobre a hipótese de a Igreja indemnizar as vítimas, como já aconteceu no estrangeiro, D. Manuel Clemente respondeu: “Até acho isso um bocadinho, desculpem-me a expressão, insultuoso para as vítimas.” E, dizendo isso, foi um bocadinho, desculpem-me a expressão, insultuoso para as vítimas. É preciso ter muito azar para conseguir insultar exprimindo a intenção de não insultar. Pela minha parte, cheio de caridade cristã, disponho-me a compreender o sr. patriarca. Com efeito, quando olhamos para uma situação de abuso sexual, estou convencido de que o nosso primeiro impulso é considerar que uma compensação indemnizatória às vítimas é ofensiva. Há ali qualquer coisa muito feia, que nos repugna profundamente, e creio que é o vil metal. Não devemos acrescentar uma ignomínia ainda maior, como um reles pagamento, àquilo que já era ligeiramente problemático, que são os abusos sexuais. Proponho, aliás, que da próxima vez que, na eucaristia, uma daquelas beatas percorrer a plateia com o cestinho das esmolas, os fiéis se abstenham de contribuir para o peditório com imundo dinheiro e se limitem a apalpar a velha. É como diz o evangelho: “Quando deres esmola, não saiba a tua mão esquerda quem apalpa a tua mão direita.” Mal comparado, o princípio de não compensar financeiramente as vítimas faz-me lembrar outro impecável ditame que emanou de outra organização que, tal como a Igreja Católica, tem sido uma referência moral para todos: a revista “Playboy”. Em 2016, a “Playboy” decidiu que remunerar as mulheres que exibia nas suas páginas era ofensivo. Cito a irrepreensível carta de princípios da “Playboy” brasileira, publicada na altura: “Os ensaios não serão mais pagos com cachê porque o corpo da mulher não tem preço. Na nova ‘Playboy’ não haverá leilão sobre qual estrela foi mais bem paga, porque nenhuma mulher vale mais do que outra.” Palavra de são Hugh Hefner.

Além de Manuel Clemente e de José Ornelas, também o bispo de Beja falou com a comunicação social. D. João Marcos, recordo, foi o único bispo português que não foi entrevistado pela comissão independente porque se esqueceu de responder ao pedido de entrevista. Ouvindo-o esta semana, tive saudades do tempo em que ele se esquecia de responder a entrevistas. Disse ele: “Todos somos pecadores, todos somos limitados, todos temos falhas. Esta maneira de abordar as coisas não é muito católica. Na Igreja Católica existe o perdão. O perdão é um novo nascimento. Portanto, se realmente as pessoas estão arrependidas do que fizeram, e fizeram penitência, e repararam o mal que fizeram, não sei... Se há este novo nascimento que o perdão nos oferece, isso é importante, não podemos desvalorizar isso.” Ninguém pode acusar o raciocínio de não fazer sentido. Se os padres abusadores já fizeram penitência, que sentido faz metê-los na penitenciária? Creio que todos concordamos que é chover no molhado.»

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9.3.23

Floreiras

 


Floreira Arte Nova com interior em vidro, Alemanha, cerca de 1900.
WMF.


Daqui.
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A orquestra desafinou?

 

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TAP: quem é o quê

 

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Pelo crime de ser mulher e imigrante afegã, não pude terminar os estudos

 


«"Eu também trabalhava em saúde. Era enfermeira no serviço de urgência de medicina num hospital do meu país. Adorava o meu trabalho", disse-me, de olhos a brilhar. Mas depois, os olhos mudaram, como se se tivesse perdido, e acrescentou: "Mas agora sou apenas refugiada e estou metida neste campo."

Aquilo tocou-me fundo enquanto exercia medicina ali. A palavra "refugiada", dita daquela forma, tocou num ponto sensível, mas actual. Muitas vezes os refugiados são vistos como menos do que são e reduzidos a um rótulo que não é suficiente para serem livres. Muito também por culpa dos Estados europeus, que não cumprem com as suas obrigações para com as pessoas que nos chegam a fugir da opressão. É importante lembrar que são pessoas como nós, com histórias, sonhos, e que foram forçadas a fugir da violência do seu país. E nós, enquanto sociedade, podemos mudar a conotação com que é dita.

Podemos começar por conhecer as histórias de mulheres como ela, e questionar os nossos preconceitos, para que, enquanto sociedade, exijamos o tratamento digno e justo, de modo a que possam reconstruir as suas vidas. Deixo-vos a história de uma mulher extraordinária que conheci, sempre de sorriso no rosto, e uma palavra amiga. É a Masoumeh, que assina também este texto, e que hoje tem a coragem de partilhar a sua história abaixo, na primeira pessoa. Fica aqui o testemunho.

"Sou do Afeganistão, mas nasci no Irão. Pelo crime de ser mulher e imigrante afegã, não pude terminar os estudos, e fui sempre tratada como insignificante e discriminada. Ainda assim, tentei estudar e aprender inglês. Queria ter feito muitas coisas, mas não pude, pois era rapariga. Um dia, não pude ficar mais no Irão. Era inseguro, politicamente e religiosamente. Não podia estudar, trabalhar, escolher a roupa que queria vestir. Eu tinha um sonho, queria ser livre como os outros. Então, há quatro anos, comecei a jornada pela minha liberdade.

Cruzei fronteiras, enfrentei perigos. Fui a pé do Irão à Turquia, e de lá para a Grécia, num barco com 40 pessoas, durante nove horas. Demorei dois meses para chegar: fui assediada pela polícia turca, dormi à beira do rio, vivi na floresta. Cheguei a beber só meio copo de água por dia e comer um pedacinho de pão. Fiquei doente. Lesionei o meu joelho e tornozelo na travessia. Comigo havia tanta gente. Tinha de ser forte, continuar. Quando cheguei à Grécia, pensei que agora era livre, mas não. A polícia grega brutalizou-me.

Vivi quatro anos num campo-prisão, sem direitos. Tornei-me deprimida e solitária. Mas, apesar de todos os abusos, decidi reerguer-me.

Com a ajuda de um grande amigo, conheci a fotografia, que me deu forças para transformar tudo o que vi em imagens. Consegui expressar a dor das mulheres de quem ninguém quis ouvir a voz. A fotografia transformou-me. Já não sou a Masoumeh cansada e decepcionada, aquela que foi quebrada, que aceitou ser uma refugiada fraca que deveria viver toda a vida num contentor num campo de refugiados. A fotografia tirou-me da escuridão. Trouxe-me paz e poder para lutar contra os meus medos, ensinando-me que sou um ser humano cheio de capacidades. A fotografia tornou-se numa arma para transformar a minha dor e felicidade em imagens. Ajudou-me a mostrar os factos e permitiu-me comunicar com as pessoas sem ser por palavras. E, por isso, apesar de tudo o que vivi, quero dizer a todas as mulheres para se erguerem e lutarem pelos seus direitos. Não importa quão difícil seja o caminho. Devemos respeitar-nos e valorizar-nos, acreditar que conseguimos."»

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8.3.23

Portas

 


Porta Arte Nova do Castel Béranger, Paris, 1898.
Arquitecto: Hector Guimard.

[Sobre Hector Guimard, ler ISTO.]


Daqui e não só.
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Palmas para as primeiras divergências dentro da Conferência Episcopal

 



«A arquidiocese de Évora afastou cautelarmente um padre de funções e abriu uma investigação a uma denúncia de alegados abusos de menores pelo sacerdote, na década de 1980, no Seminário Menor da cidade.»

«A diocese de Angra, nos Açores, também suspendeu de funções dois padres que estão a ser investigados por alegados casos de abuso sexual de menores.»
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8 de Março – Sempre neste dia

 

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Conferência Episcopal – a miséria moral que pede Estado

 


«A Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de crianças na Igreja Católica Portuguesa (CI) constituiu-se após um convite dirigido a Pedro Strecht, no final de 2021, por parte de José Ornelas, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP). Sabemos que não foi fácil, sabemos que a Igreja foi empurrada para o inevitável, para aquilo que foi feito em tantos países.

A equipa é exemplar e a sua composição bem conhecida. Este grupo estava, como se viu, muito bem preparado para fazer aquilo que a Igreja nunca quis fazer, porque sabia o resultado e sabia do seu crime de encobrimento.

A CI centrou-se na vítima, usou metodologia qualitativa e quantitativa, apelou ao testemunho, cruzou dados, consultou arquivos da Igreja (quando não foi obstaculizado).

A Igreja sempre soube o método e o objetivo deste estudo seríssimo e ouviu sem emoção as conclusões que fizeram o país sangrar. O país sangrou, não por acreditarmos no milagre português que alguns pregavam, mas por vermos diante dos nossos olhos a verdade concreta dos suicídios, do silenciamento por sentimentos de vergonha e de culpa.

Soubemos do stress-pós-traumático, dos tratamentos psiquiátricos, soubemos que os abusadores no seio da Igreja são dados à repetição do comportamento, pelo que, nas palavras do relatório, “é fundamental ditar o afastamento de cargos ou atividades que impliquem contacto com crianças”. Soubemos que o próprio Direito Canónico tratou de proteger a Igreja “mantendo -se a Igreja como a principal vítima da ação do agente infrator”. Soubemos que “o debate interno por parte da Igreja Católica portuguesa relativamente às modalidades de abertura dos seus arquivos” levou ao que tem um nome: obstrução.

A maior percentagem de crianças foi abusada entre os 10 e os 14 anos de idade, sendo a média de 11,2 anos. Predominam as modalidades com manipulação de órgãos sexuais, masturbação, sexo oral e sexo anal, bem como cópula completa.

Os locais dos abusos são os seminários, a igreja sem outra especificação, o confessionário, a casa paroquial e a escola religiosa. Depois há os agrupamentos de escuteiros. Calcula-se que as 512 pessoas vítimas conheçam ou tenham estado em contacto com perto de 4300 outras vítimas.

Soubemos do poder de se ser sacerdote, da manipulação espiritual, da manipulação da vida material da vítima, soubemos da monstruosa arma da “purificação”.

Nas palavras do relatório, “os depoimentos testemunham o clima emocional de terror, de uma verdadeira atitude de “banalidade do mal”.

As vítimas querem apoio psicológico e psiquiátrico, um pedido de perdão e mudança da Igreja. Os abusos são passado e presente e serão futuro se não forem tomadas medidas sérias. Algumas daquelas pessoas abusadoras referenciadas ainda permanecem em atividade eclesiástica. A ocultação foi sistémica.

Perante isto, no dia 3 de março de 2023, a CEP foi o retrato do patriarcado instalado, gelado, sem empatia e cobarde. O mesmo José Ornelas que em 2021 dizia haver unanimidade quanto a tratar da descoberta da verdade e da ocultação, pediu desculpas sem convicção e ofendeu o trabalho da CI. Afinal, aquele relatório, que é exatamente o que tinha de ser, resultou numa “lista de nomes”.

Diz que é pouco, vai-se estudar, vejam lá que não há nomes das vítimas (?!) e já agora recorda-nos que isto também acontece nas famílias, não é? Enquanto ouvia aqueles homens pertencentes a uma Igreja que o relatório da CI demonstra não saber nada do que devia saber, pouco colaborativa e com o peso brutal de décadas e décadas de ocultação de crimes contra crianças como se o ofendido fosse “Deus” e a “Santa Igreja”, pensei nas vítimas encorajadas a falar anonimamente. Pensei na revivência monstruosa do trauma, na sensação de sacrifício inútil, na raiva, na impotência.

Será que José Ornelas acredita que não sabemos que os nomes enviados têm um contexto de análise cuidado que, precisamente, levou ao seu envio? Como é possível não afastar preventivamente (o que não é condenar) os alegados abusadores? Como é possível não avançar com o pagamento de indemnizações em nome da história secular de ocultação e promoção de crime hediondos? Não saberá a Igreja por esta hora que em cada decisão de ocultação e deslocação de um abusador promoveu novos crimes? Pensará a Igreja que as vítimas passadas e atuais sentirão confiança em comissões criadas pela Igreja ou que sentirão sequer vontade de respirar em qualquer espaço da Igreja? Manuel Clemente diz que indemnizar seria ofensivo para as vítimas. A sério? Assistimos a uma Igreja cobarde, ora citando o direito civil (vamos lá ver o que é encobrimento), ora citando o direito canónico.

É tempo de dizer basta a esta Igreja infame, perigosa e insistente numa moral sexual perversa sobre a qual já escrevi.

O primeiro passo para o fim da subserviência dos frágeis é o fim da subserviência do Estado. A Concordata tem de ser revista. As autoridades devem poder perguntar aos eclesiásticos sobre factos e coisas de que tenham tido conhecimento por motivo do seu ministério. Os direitos das crianças são direitos humanos e o Estado de Direito tem de cuidar deles, não permitindo coutadas de privilégio.

A autoridade eclesiástica define o conteúdo do ensino da religião e moral católicas, mas “em conformidade com as orientações gerais do sistema de ensino português”. Não podemos aceitar que se ensine uma moral sexual que castra, inflige dor e aliena. Tem de se acabar com a isenção de fiscalização, pelo Estado, do regime interno dos estabelecimentos de formação e cultura eclesiástica. A Igreja (e já agora a Universidade Católica) não podem continuar a beneficiar do regime fiscal paradisíaco previsto na lei. Sim, tudo isto é subordinação.

O Estado tem de intervir, tem de zelar pelo fim de espaços fechados perigosos para as crianças, tem de investigar penalmente os abusadores individuais e a Igreja coletivamente. O Estado tem de avançar com a comissão pedida pela CI e parar de permitir que a Igreja invada o seu espaço. Que é o nosso, de todos, dos crentes e dos não crentes. Fez bem a MJ em receber a CI e mostrar abertura ao alargamento do prazo de prescrição.»

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A França a ferro e fogo

 


Capa de Libération, 07.03.2023.
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7.3.23

Mais um decantador

 


Decantador do período Biedermeier, esmaltado e dourado de vidro cortado com Rubi. Século XIX.

Daqui.
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Contra Regra (6)

 

 
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Sobre pedofilia: audição obrigatória

 


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O fim da Igreja Católica como referência moral

 


«Se a conferência de imprensa da Conferência Episcopal Portuguesa já tinha sido a perda de uma importante oportunidade, as recentes declarações de Manuel Clemente levam-nos para um quadro de insensibilidade moral a rasar os limites da compreensão.

Ao remeter qualquer ação concreta para o cumprimento do estrito legalismo, o patriarca de Lisboa perdeu toda a essência do seu título, o pater familias, da sua função de grande pai protetor e referência de valores.

Quando uma instituição, que se arvora como a referência moral de toda uma civilização, se esconde atrás de processos legais, então ela perdeu a sua função social e, pior, a sua essência; passou de religião a escritório de advogados.

Se à mulher de César não bastava ser séria, à Igreja Católica não cumpre apenas o cumprimento da lei. A lei moral, e não é necessário ir buscar Kant, ou é imanente ou não é. Ou é superior aos factos e, por isso, não carece de demonstração ou perdemos toda a capacidade de nos guiarmos por modelos que julgamos os corretos.

A Igreja Católica, sejamos crentes ou não, é a principal referência que alimenta a nossa forma de ver o mundo. Nestes dias, os responsáveis por essa instituição milenar deram uma machadada profunda no contrato de confiança cimentado ao longo de muitas e muitas gerações.

Não admira que se somem as vozes vociferando contra esta estrutura, bispados e patriarcado, que perdeu todo o pudor perante a moral que ela mesma fundou.

São tempos sombrios aqueles que veem uma instituição como a Igreja Católica a abdicar da coragem de agir segundo a moral. Cada vez mais órfãos dessa referência, vemos os espaços vazios e o desalento para com a tradição herdada, geração após geração, serem ocupados por novas tradições. Não digo que uma ou outra seja a correta. Mas a Igreja Católica está a esforçar-se por passar o testemunho, abdicando de si mesma.»

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6.3.23

06.03.1927 – Gabriel García Márquez

 


Gabriel Garcia Márquez, «Gabo», faria hoje 96 anos.

Em rigorosa «peregrinação», fiz um desvio de dezenas de quilómetros para chegar a Aracataca, em 2012, sempre à espera de encontrar algum membro da família Buendía ao virar de uma esquina, um qualquer José Arcádio ou um dos muitos Aurelianos… Foi em Aracataca que se inspirou para criar a mítica aldeia de Macondo de Cem anos de solidão.

Mais informação num post de 2020 e num outro que escrevi na Colômbia, quando fui a Aracataca.
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Sim senhor cardeal, os tempos da Inquisição também foram há muitos anos

 


E nem por isso se justificam. Não tem vergonha por fazer estas afirmações?

«Segundo o cardeal-patriarca de Lisboa, "muitos dos casos em apreço" são de "há 50, 60, de há muitos anos", numa altura em que "a legislação não era nada disto, nem sequer era crime público, nem era um crime contra as pessoas, eram meros atentados ao pudor que eram tratados com boas palavras".

Daqui.
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Estado afunda-se nas greves sem fim à vista

 


«O ensino público está há meses perturbado pelas greves. O sistema judicial adia milhares de diligências por força da paralisação dos oficiais de justiça. As urgências médicas da Área Metropolitana de Lisboa tiveram de ser reduzidas por falta de meios, e em zonas como as que são servidas pelo Hospital Beatriz Ângelo, médicos, autarcas e utentes falam com saudades da parceria público-privada que o Governo descartou. No serviço de estrangeiros, desiste-se de emitir autorizações de residência por falta de capacidade de resposta. A CP desdobra-se em greves a cada semana e em atrasos impensáveis sempre que opera.

Há muito que a degradação dos serviços públicos está entre as maiores preocupações dos portugueses. O PÚBLICO lançou em Junho de 2022 um amplo debate sobre “o estado do Estado” e já na altura vários estudiosos apontavam para sinais de debilidade preocupante nos serviços prestados ou na qualidade das políticas públicas. Nas últimas semanas, essa percepção agravou-se. Os conflitos e os danos sociais multiplicam-se. Nada aponta para que se resolvam, seja pela negociação seja pelo endurecimento das posições do Governo. Os cidadãos sentem-se reféns e desesperam. O espaço de compromisso, fundamental numa democracia, reduziu-se.

Muitos dos problemas resultam, como se sabe, de anos de desinvestimento. Um país no marasmo económico há 30 anos perdeu as condições para valorizar salários e carreiras, para contratar pessoal qualificado ou para modernizar infra-estruturas. Durante a troika, porém, o Estado deu sinais de resistência. Nos anos da pandemia, a resposta de serviços cruciais foi positiva. Na actual crise, estes sinais rareiam. Os portugueses, principalmente os mais desfavorecidos, estão entregues a si próprios.

Não se vislumbram indícios de que a tempestade seja passageira. Os sindicatos radicalizaram posições. Não há margem para o diálogo nem para a negociação, onde todos cedem. O Governo tenta apaziguar o conflito e fica à espera de que a tempestade passe. Deixa andar. Age como se tudo fosse normal. Não é. A escola pública pode perder o ano. Os tribunais ficam mais caóticos. Os hospitais afundam-se. O apego à democracia dilui-se. O PRR não faz milagres num país fracturado.

O Governo adora o Estado, mas testemunha a sua pior crise. Não se espera que proíba greves. Não se espera também que prolongue esta atitude passiva. Tem uma missão espinhosa: cumprir a lei e defender o interesse colectivo. Há momentos críticos em que é preciso clareza e coragem. Este é um deles. Pior de tudo, é viver esta crise grave como se nada fosse.»

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Daniel Sampaio entrevistado

 


Muito importante, ouvir AQUI.
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5.3.23

Decantadores

 


Decantador, Chéquia, cerca de 1900.
Vidros Glass.


Daqui.
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Mário Zambujal, 87

 

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É verdade, sim

 


Basta, senhores Bispos!

 


«Não há outra forma de o dizer! A Conferência Episcopal Portuguesa e o Bispo José Ornelas devem estar a brincar com os portugueses. A conferência de imprensa de sexta-feira sobre os abusos sexuais sobre menores ficará na História como um dos pontos mais baixos, miseráveis mesmo, da Igreja em Portugal. A cúpula religiosa continua convencida de que, mais uma vez, o tempo funcionará como a esponja que absorve e apaga os seus pecados, como tantas vezes aconteceu no passado. Só que estes não são já os tempos da inquisição. Agora, a informação flui e a indignação não se abafa facilmente no perdão beato e gratuito.

Diz-se na política que há duas possibilidades para enfrentar um problema grave que se tornou público: ou se quer resolver a questão e se avançam com medidas musculadas e imediatas, ou se nomeia uma comissão de estudo para que tudo fique na mesma. Esta máxima tem, contudo, uma nuance: a comissão a nomear deve ser controlada pelo incumbente.

No caso dos abusos sexuais da Igreja, a Comissão Independente liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht chegou a conclusões e destapou a dimensão quantitativa de um fenómeno que se sabia existir há muitos anos. Nada ficou na mesma, pela simples razão de que a Comissão não era controlada pela Igreja. Os portugueses devem um agradecimento enorme e sentido a este grupo de pessoas, por se terem disponibilizado para uma tarefa de grande exigência, que executaram de forma competente e corajosa, nunca sucumbindo à tentação do protagonismo mediático.

Com a divulgação dos 512 casos validados - sublinho, validados - e a estimativa dos quase cinco mil abusos perpetrados ao longo das últimas décadas, que todos intuímos serem apenas a ponta do iceberg, a Igreja apressou-se a reagir. O que prometia ser uma boa notícia resultou num ultraje. A montanha pariu um rato, confirmando a estratégia de sempre: desproteger as vítimas em nome da salvaguarda da instituição Igreja Católica Apostólica Romana.

A conferência de imprensa da Conferência Episcopal foi um exercício cínico, onde sobrou em estratégia de sobrevivência o que faltou em responsabilização perante as vítimas.

Quando se esperava ação, a Igreja anuncia a criação de uma nova comissão - interna, porque a independente já fez o seu trabalho - para fazer diluir no tempo a investigação.

Quando se esperava o afastamento imediato dos padres, ainda no ativo, sinalizados pelas vítimas, sem prejuízo do seu direito à defesa, a Igreja recusa-se a fazê-lo e relativiza o valor das denúncias.

Quando se esperava o fim do encobrimento, a Igreja anuncia que vai remeter os casos para as Dioceses, devolvendo o assunto às teias locais de cumplicidades.

Quando se esperava a assunção de indemnizações às vítimas, a Igreja oferece um Memorial, como se não pudesse vender um par de edifícios, de entre os milhares que detém isentos de impostos, para compensar os abusados e as suas famílias.

Tenho ouvido em surdina que os abusadores sinalizados terão de ser protegidos, porque, se começam a falar, vão denunciar muitos outros, nomeadamente figuras na estrutura mais alta da hierarquia da Igreja. Terá de ser provado, mas não me surpreenderia.

Perante esta tragédia, que apelidei de "Holocausto escondido" numa outra crónica neste mesmo espaço, estranho o silêncio ensurdecedor da sociedade civil. Fazem-se manifestações contra tudo, mas a Igreja parece ter um escudo protetor. Até quando?»

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