10.3.23

Não te farás de parvo

 

     JOÃO FAZENDA 

«Quando o cardeal-patriarca e o bispo José Ornelas disseram que a igreja não podia fazer muito sobre os padres abusadores porque tinha recebido apenas uma lista de nomes, várias pessoas entraram em acção e chamaram a ambos uma lista de nomes. Foi uma lição importante sobre o poder de uma lista de nomes. Outro momento interessante ocorreu quando, questionado pelos jornalistas sobre a hipótese de a Igreja indemnizar as vítimas, como já aconteceu no estrangeiro, D. Manuel Clemente respondeu: “Até acho isso um bocadinho, desculpem-me a expressão, insultuoso para as vítimas.” E, dizendo isso, foi um bocadinho, desculpem-me a expressão, insultuoso para as vítimas. É preciso ter muito azar para conseguir insultar exprimindo a intenção de não insultar. Pela minha parte, cheio de caridade cristã, disponho-me a compreender o sr. patriarca. Com efeito, quando olhamos para uma situação de abuso sexual, estou convencido de que o nosso primeiro impulso é considerar que uma compensação indemnizatória às vítimas é ofensiva. Há ali qualquer coisa muito feia, que nos repugna profundamente, e creio que é o vil metal. Não devemos acrescentar uma ignomínia ainda maior, como um reles pagamento, àquilo que já era ligeiramente problemático, que são os abusos sexuais. Proponho, aliás, que da próxima vez que, na eucaristia, uma daquelas beatas percorrer a plateia com o cestinho das esmolas, os fiéis se abstenham de contribuir para o peditório com imundo dinheiro e se limitem a apalpar a velha. É como diz o evangelho: “Quando deres esmola, não saiba a tua mão esquerda quem apalpa a tua mão direita.” Mal comparado, o princípio de não compensar financeiramente as vítimas faz-me lembrar outro impecável ditame que emanou de outra organização que, tal como a Igreja Católica, tem sido uma referência moral para todos: a revista “Playboy”. Em 2016, a “Playboy” decidiu que remunerar as mulheres que exibia nas suas páginas era ofensivo. Cito a irrepreensível carta de princípios da “Playboy” brasileira, publicada na altura: “Os ensaios não serão mais pagos com cachê porque o corpo da mulher não tem preço. Na nova ‘Playboy’ não haverá leilão sobre qual estrela foi mais bem paga, porque nenhuma mulher vale mais do que outra.” Palavra de são Hugh Hefner.

Além de Manuel Clemente e de José Ornelas, também o bispo de Beja falou com a comunicação social. D. João Marcos, recordo, foi o único bispo português que não foi entrevistado pela comissão independente porque se esqueceu de responder ao pedido de entrevista. Ouvindo-o esta semana, tive saudades do tempo em que ele se esquecia de responder a entrevistas. Disse ele: “Todos somos pecadores, todos somos limitados, todos temos falhas. Esta maneira de abordar as coisas não é muito católica. Na Igreja Católica existe o perdão. O perdão é um novo nascimento. Portanto, se realmente as pessoas estão arrependidas do que fizeram, e fizeram penitência, e repararam o mal que fizeram, não sei... Se há este novo nascimento que o perdão nos oferece, isso é importante, não podemos desvalorizar isso.” Ninguém pode acusar o raciocínio de não fazer sentido. Se os padres abusadores já fizeram penitência, que sentido faz metê-los na penitenciária? Creio que todos concordamos que é chover no molhado.»

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