2.11.24

Que belas casas!

 


Uma série de casas espelhadas, Arte Nova, todas com quatro andares. Antuérpia, Bélgica, 1913.
Arquitecto: Jacques De Weerdt (provável).

Daqui.

2 de Novembro no cinema: Visconti e Pasolini

 


Luchino Visconti poderia chegar hoje a uns mais que improváveis 118 anos, mas, infelizmente, morreu antes de completar 70. Foi sempre um dos meus realizadores de eleição e seria grande a tentação de recordar aqui muitos dos seus filmes. Limito-me a três, mais do que trivialmente óbvios.

Rocco e os seus irmãos (1960):





O Leoprado (1963)




Morte em Veneza (1971):




E foi também num 2 de Novembro, de 1975, que morreu Pier Paolo Pasolini. Com uma vida atribulada e mais do que polémica, e uma morte trágica, deixou-nos alguns belíssimos filmes, entre os quais «O Evangelho segundo S. Mateus», de 1964, certamente aquele que mais me marcou e de que me recordo melhor.

A surpresa generalizada com que este foi recebido quando apareceu, de um Pasolini marxista, ateu e anticlerical (até condenado anteriormente por blasfémia), mereceu-lhe o seguinte comentário: «Se sabem que sou um descrente, conhecem-me melhor do que eu próprio. Posso ser um descrente, mas sou-o com a nostalgia de não ter uma crença». O filme foi «dedicado à querida, alegre e familiar memória do papa João XXIII» que morreu antes de poder vê-lo.

Um belo Cristo, mais revolucionário do que pastor, que provocou a ira de alguns críticos e o entusiasmo de muitos outros.


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02.11.1919 – Jorge de Sena

 


Trump e a doença americana

 


«Os EUA são um grande país, mas estão doentes por dentro. Bastante doentes. Trump acaba de dizer que a “estúpida” e “pouco inteligente” (o insulto preparatório para coisas mais graves que ele hoje diz) Liz Cheney é uma belicista que devia experimentar ter várias armas a disparar contra a cara dela. O Politico, um site noticioso, interpretou essas armas a disparar como sendo um pelotão de fuzilamento, o que é talvez institucionalizar aquilo que é na frase de Trump um fuzilamento “informal”, chamemos-lhe assim, um assassínio.

Vai acontecer alguma coisa? Duvido, ele diz coisas destas todos os dias, e não perde, que se saiba, metade dos americanos como eleitores, nem que a máquina de minimização da importância do que ele diz funcione em pleno, até em Portugal, nas mais altas esferas do poder. Na direcção do PSD, no CDS e no Chega, há quem esteja “hesitante” se devia votar em Trump. O que significa que, se votassem, votariam.

É a doença dos EUA – sim, porque votar em Trump significa ser cego, surdo e mudo, cruel e violento, e não me venham com o aumento dos custos da mercearia, porque o voto em Trump transporta muitas outras coisas, e quem vota sabe.

Tudo isto é um bom exemplo de várias coisas que são muitas vezes polémicas no trabalho da história, no seu duplo sentido, no modo como funciona aquilo a que chamamos história; e nos debates dos historiadores sobre esse movimento dos acontecimentos a que chamamos história. As polémicas, já com séculos, sobre o modo como funciona a causa-efeito na história, sobre o papel dos ciclos económicos, sobre se os indivíduos — seja Napoleão, Hitler ou Trump, sejam as personagens carismáticas em geral (no sentido genuíno da muito abastardada classificação de carisma) — têm no movimento da história, ou se ela deve ser interpretada essencialmente por aquilo a que os marxistas chamam “infra-estrutura”. De Taine a Marx, isto sempre se discutiu.

Trump parece ser um exemplo de como os indivíduos moldam a história introduzindo um factor subjectivo na sua interpretação, e reforçando o papel do acaso na evolução da história. Não são “forças impessoais”, sejam as da teoria marxista da história, sejam outras interpretações hegelianas da existência de uma seta direccional, que define cada momento como uma etapa face a um fim último, que seria a “sociedade sem classes” ou, em autores cristãos como Teilhard de Chardin, o “ponto ómega”, ou seja, o fim do mundo e o julgamento final. A história terminaria aí, mas o sentido teleológico interpreta cada momento como um passo à frente ou atrás em direcção a esse fim. Quando Trotsky foi colocado no “caixote do lixo da história”, essa noção de que haveria um “lixo” tinha que ver com a distinção que todas as teorias com origem em Hegel implicam: há os que estão no curso do sentido da história e os que já perderam esse caminho para o futuro.

Em história, não acredito em qualquer sentido, muito menos “progressista” do seu curso. Considero que o factor do acaso é preponderante, e isso faz-me aceitar o papel das personalidades como “criadoras” da história. Sem elas, a história teria outra direcção, do mesmo modo como acontecimentos ocasionais que surgem de repente têm o mesmo efeito. A pandemia da covid-19 é um bom exemplo. Podemos saber, porque a história está cheia de pandemias, o que as causa e como funcionam socialmente, mas não sabemos quando aparecem e como a sociedade reage a elas.

O que torna Trump parecido com Augusto, Napoleão ou Hitler não é a comunidade de ideias, algumas sim, outras não, em tempos muito diferentes, mas a sua capacidade intuitiva de criar, de mudar os termos da sua evolução pela sua própria acção, de ser carismático.

As personagens carismáticas nunca foram boas para as democracias. Os gregos, que sabiam disso, exilavam à força, “ostracizavam”, os generais que ganhavam as batalhas e se tornavam famosos; logo, perigosos para a igualdade do povo que no Pnyx votava tudo, da guerra e da paz à justiça. As democracias actuais não “ostracizam” ninguém, mas também não deviam permitir que alguém que é um criminoso, que despreza as leis e a Constituição, que corrompe e é corrompido pela vaidade pelos inimigos da democracia como Putin tenha condições para se candidatar. Reparem que eu, como extremista da Primeira Emenda, não me refiro às suas declarações, mas aos seus actos.

A complacência com os crimes de Trump, o medo que ele inspira, os poderosos apoios interesseiros que fecham os olhos a tudo para ganhar dinheiro e poder manietaram a justiça americana e permitiram-lhe uma impunidade que ninguém deveria ter. Trump, que é contra a democracia, beneficiou das fragilidades da democracia, usando três coisas: a manipulação da política-espectáculo, hoje uma das maiores ameaças à democracia; o dinheiro para pagar uma litigância infinita e para corromper testemunhas e processos; e o medo da retaliação e vingança que ele promete como quem respira. Na minha interpretação da história, Trump é o mais importante, e o seu carisma “cria” os seus seguidores. Podemos interpretar mil e uma coisas sobre o que lhe dá apoiantes, mas, antes disso, está perceber porque aceitam tudo o que ele diz e faz, e isso está antes, modela os acontecimentos, cria o movimento MAGA.

Estou a escrever este artigo na Trumplândia, e não é preciso ir muito longe para ver o medo. Nas campanhas eleitorais anteriores, os jardins em frente às casas estavam cheios de cartazes apoiando um ou outro candidato. Agora, nada. Há medo de vandalismo, de todos os lados. Medo de americanos contra americanos.»


Alguma dúvida?

 


1.11.24

«Pão por Deus»

 


Em 1 de Novembro de 1756, exactamente um ano depois do terramoto que destruiu grande parte de Lisboa, a população, paupérrima, aproveitou a data para lançar, por toda a cidade, um grande peditório. Batia-se às portas e pedia-se: «Pão, por Deus».

Camilo Mortágua

 


«Com 90 anos, morreu agora Camilo Mortágua.

Camilo Mortágua, pai da atual líder do Bloco de Esquerda, foi um valente lutador contra a ditadura, participou no assalto ao navio mercante “Santa Maria”, no desvio do avião da TAP de Casablanca para Lisboa, no assalto ao Banco de Portugal, na Figueira da Foz, bem como em outras ações revolucionárias com as quais, como português e democrata, me sinto perfeitamente solidário e cuja execução lhe agradeço e louvo - e que isto fique aqui escrito, preto-no-branco, porque é preciso não ter medo de dizer as palavras justas.

Só uma ditadura que foi culpada por imensos mortos, por uma criminosa guerra colonial, por décadas de perseguições, torturas e prisões que arrasta no seu inapagável cadastro histórico, com a PIDE e a censura cobardemente a seu lado como mão executora, teve o desplante de qualificar como crimes comuns alguns atos justamente praticados, como hoje está mais do que provado, para enfraquecer o regime que iria cair de podre e de ridículo perante a História no dia 25 de Abril. E aproveito o ensejo para prestar também homenagem a essa outra figura de homem de bem que se chamou Hermínio da Palma Inácio, igualmente diabolizado pelos caluniadores anti-democratas.

Alguma direita portuguesa, que nunca conseguiu fazer o exorcismo do Estado Novo, vive ainda uma orfandade envergonhada desses tempos, disfarçada na proclamação da “honestidade” de Salazar, nas acusações comprovadamente falsas sobre um indevido uso das verbas do assalto na Figueira da Foz, numa miserável equiparação das ações da LUAR a delitos comuns - não tendo vergonha de recorrer precisamente à mesma linguagem que a PIDE utilizava. Aqui pelas redes sociais, como se irá ver nas caixas de comentários nos próximos dias, há ainda muito quem se sinta solidário com a narrativa da António Maria Cardoso. Gente que nunca entenderá que também foi graças a lutadores como Camilo Mortágua que hoje usufrui da liberdade que lhe permite escrever, com total liberdade e impunidade, aquilo que escreve. Como dizia o outro, "eles não sabem nem sonham".»

Francisco Seixas da Costa no Facebook.

Lisboa era assim até 01.11.1755

 


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O nacionalismo português é o pior, ou seja, o melhor

 


«O principal problema que se coloca aos nacionalistas portugueses é, provavelmente, o facto de o nacionalismo português ser de tão má qualidade. Noutros países, os nacionalistas são em maior número, têm mais influência, chegam a ganhar eleições. Em Portugal, no entanto, ninguém liga aos nacionalistas. A sua defesa dos portugueses não seduz os portugueses, o que é estranho. Em princípio, o amor a Portugal contaria com o amor de Portugal. Nos congressos internacionais de nacionalistas, imagino que os nacionalistas portugueses sejam populares. Os nacionalistas estrangeiros, que estão, como todos os nacionalistas, convencidos da sua superioridade, olham para os nacionalistas portugueses e confirmam-na. Mas, em território português, não deve ser fácil ser nacionalista. Os seus encontros de confraternização atraem menos gente do que um Varzim-Rio Ave — e com justiça, uma vez que o Dérbi do Mar costuma proporcionar bons espectáculos. O amor exacerbado a Portugal repele os portugueses. A culpa não é, evidentemente, de Portugal. É um país de qualidade muito razoável, com um clima convidativo, gastronomia excelente e uma língua belíssima. O problema é dos nacionalistas, que são fracos. Julgo que o natacionalismo, a crença de que a natação é superior aos outros desportos, consegue reunir mais adeptos do que o nacionalismo. Curiosamente, o facto de Portugal produzir nacionalistas pífios é um bom motivo de orgulho no país.

Nos últimos tempos, os nacionalistas portugueses têm andado entretidos a, em nome dos seus egrégios avós, interromper lançamentos de livros e cancelar colóquios. Não sei o que é que D. Nuno Álvares Pereira acharia destas actividades, mas não tenho a certeza de que ficasse propriamente orgulhoso. Vencer uma batalha contra um exército castelhano quatro vezes maior é uma coisa, fazer algazarra no lançamento da obra “O Pedro Gosta do Afonso” é outra. São proezas de dimensão ligeiramente diferente. Prova disso é o facto de, até agora, não serem ainda conhecidos planos para a edificação de um mosteiro comemorativo da interrupção do lançamento da obra “O Pedro Gosta do Afonso”. É muito evidente que os nacionalistas portugueses não querem trabalhar. Entre projectos de verdadeiro pendor nacionalista — como, por exemplo, reconquistar Olivença — e epopeias inconsequentes, como o cancelamento de obscuros colóquios, a escolha deles é clara. E é nessa altura, na verdade, que os nacionalistas portugueses prestam a maior homenagem ao país. Entre o heróico mas trabalhoso e o fácil mas inútil, eles escolhem sempre o fácil e inútil. Como qualquer bom português. Continuem a iluminar o caminho, rapazes.»


31.10.24

Carlos Drummond de Andrade, ainda

 


Nasceu num 31 de Outubro (1902).

E dão palco a esta gente

 



Carlos Drummond de Andrade

 


Nasceu há 122 anos.

Os tumultos e a lição de Isaltino

 


«Não tenho qualquer admiração política por Isaltino Morais. Acho, e já o escrevi várias vezes, sintomática da falta de exigência ética a sua reeleição, depois da condenação judicial de que foi alvo. Tenho inúmeras críticas a fazer à forma como governa Oeiras. Mas o texto que escrevo hoje é para elogiar o comportamento exemplar que teve numa crise que também bateu à porta do seu concelho. E não precisava. Oeiras tem o eleitorado mais abastados do país, ele nem precisa dos eleitores destes bairros.

Não estou a falar de declarações mais ou menos sóbrias, com valores que pessoas decentes partilham. Isso houve muitas, apesar de demasiado tímidas e temerosas. Estou a falar de uma tentativa empenhada e consequente de deitar água na fogueira. De ser realmente o anti-Ventura sem sequer o ter de o mencionar.

Perante as câmaras, Isaltino criticou o alarmismo mediático, explicou que a polícia não ia entrar nos bairros à bordoada, respondendo às provocações de uma minoria, porque o objetivo era pacificar não acrescentar violência à violência. E é interessante como, por pura autodefesa corporativa, o seu discurso pacificador e responsável, numa altura em que tudo podia ser uma acha para uma fogueira perigosa, incomodou mais os jornalistas que recolhiam o seu depoimento do que todos os incendiários que passaram pelos estúdios das televisões.

Já nem o comparo com Ventura, obviamente. A sua intervenção foi bem diferente da de Carlos Moedas, que fez paralelos com Paris e aproveitou o momento para voltar ao disparate de querer ser um xerife local, pedindo poderes que a polícia municipal não pode nem deve ter. Se funcionar tão bem como a recolha do lixo ou a generalidade dos serviços que tem sob sua alçada, ninguém dará pela diferença.

A diferença não resulta do nada. Isaltino Morais conhece o seu concelho como a palma da sua mão. Todos os bairros. Por isso foi o único que andou na rua enquanto outros comentavam ao longe. Só não entrou logo nos bairros porque a polícia, naturalmente, não deixou. Foi o único titular de cargo executivo a comparecer no velório de um cidadão que, seja qual for a conclusão do inquérito, foi morto pelo Estado. Isaltino até se deu ao luxo de fazer, na Assembleia Municipal, um minuto de silêncio por Odair Moniz sem temer o deputado municipal do Chega, que em mais uma demonstração de desumanidade, deixou-se sentado para mostrar quanto desrespeita aquela vida perdida.

A prova de que, ao contrário do que muitos pensam, isto vai para lá da esquerda e da direita, é ver o presidente da Câmara de Loures e líder da Federação de Lisboa do Partido Socialista, que, substituindo-se aos tribunais, aprovou uma recomendação do Chega para despejar quem tenha estado envolvido em tumultos, uma medida ilegal e inconstitucional (autarquias não se podem aplicar sanções acessórias que nem estão previstas na lei), como sabe quem nem sequer pretende mais do que a notícia para o voto fácil. E que penalizaria os familiares do criminoso.

A diferença é simples: Ricardo Leão, ao contrário de Isaltino Morais, é uma inexistência política. Tem de falar grosso e aliar-se à extrema-direita para as pessoas saberem que é autarca e, nas eleições, talvez votarem nele. É a diferença de quem lidera ou vai na onda. Lidera quem pode, vai na onda quem não tem outro remédio.

Isaltino não precisa da notoriedade construída na comunicação social. Vive de outra. Por mais crítico que eu seja dos seus métodos, não é do departamento de comunicação e da presença em tudo o que possa ser mediático que vem a sua popularidade. Vem de um trabalho que, mal ou bem, os munícipes valorizam. E vem do conhecimento profundo do terreno. Incluindo nos bairros, onde entra e o estimam. Aqueles munícipes não são umas personagens que vê na televisão ou lhe aparecem em relatórios. Não tenho parado de ouvir histórias de como aquele branco de charuto é estimado nos bairros mais pobres. Alguns põem o seu nome aos filhos. Também é seu presidente da Câmara.

Isaltino Morais não é lição em muitas coisas. Mas foi uma lição na semana passada. E até pode ser que isto resulte do facto de ser um cacique. Pelo menos, será cacique para todos, não ignorando uma parte da população. E será um cacique corajoso, não temendo ser próximo dos que são desprezados por boa parte da população.

Não estou apenas a dizer que se um político fizer um bom trabalho não precisa de cavalgar tragédias. Quem dera que assim fosse. Até porque, como disse, sou crítico de muitas das opções políticas de Isaltino. Estou a dizer que quando um autarca desenvolve relações de proximidade com as populações não precisa do espetáculo mediático. E, como sabe de quem fala, ganha o que faltou nestes dias: empatia. Isso estraga, claro está, o espetáculo mediático. Mas faz bem à sociedade.»


30.10.24

Não é fácil escapar a vasos

 


Vaso Papoila, cerca de 1905.
William Moorcroft para Liberty & Co.

Daqui.´

Valência hoje

 


E nós na esperança de que só aconteça aos outros...

Sou um privilegiado

 

«Num mundo tão desigual como aquele que habitamos, a mais dura das discriminações é aquela a que sujeitamos os mais pobres dos pobres, porque a esses apontamos a culpa da sua própria condição. Queremos acreditar, e fazê-los acreditar a eles próprios, que só é pobre quem quer. Repetimos por descargo de consciência: são pobres porque não estudaram, são pobres porque não querem trabalhar, são pobres porque querem viver à custa dos outros (RSI). Não ocorre à generalidade dos privilegiados que estes pobres que geram pobres, geração atrás de geração, são o fruto da sociedade que construímos. Esquecemos que a grande maioria dos pobres são trabalhadores e isso mostra-nos que a mão que tem o indicador apontando a culpa aos outros é a mesma que tem três dedos que se dobram apontando responsabilidades a nós próprios.»

Paulo Baldaia


Não tenham o desplante de dizer que Portugal não é racista

 


«Como quase todas as pessoas em Portugal, foi-me ensinado na escola, e em casa, que os portugueses fizeram um colonialismo “bonzinho”, o dos ingleses, franceses e espanhóis é que foi “muito malévolo”. Não me demorou muito a perceber que me estavam a mentir, e mesmo que se faça um ranking de atrocidades, não impede que sejam todas atrocidades.

“Não julgues o passado com os olhos do presente”, dizem muitos, faz sentido, até certa medida, mas que a verdade seja conhecida com ou sem julgamentos, e sabendo que em alguns casos ainda há muitas pessoas vivas, vítimas do passado recente é o mínimo que temos que fazer, estou-me a lembrar do massacre na aldeia de Wiriyamu, em Moçambique em 1972, em que o exército português executou cerca de 400 inocentes, não combatentes, mulheres e crianças, e demorou 50 anos, a reconhecer a sua culpa nesta carnificina, ou então da condecoração de Marcelino da Mata que queimou aldeias inteiras do seu país, Guiné-Bissau, passeava-se com um colar de orelhas de humanos que matou em nome do Estado português, crimes de guerra que o próprio admitiu, e foi o português mais condecorado de sempre, e ainda recebeu honras de Estado do Parlamento português aquando da sua morte há três anos. Imaginem-se familiares das vítimas destes massacres.

Em Portugal há poucos dados, porque queremos fingir que não aconteceu, mas sem memória, não há justiça nem reconciliação. Nós matámos, violámos, roubámos, traficámos seres humanos, tudo para alimentarmos a nossa insaciável ganância.

Há uns anos, fui ao museu da história afro-americana em Washington, museu incrivelmente bem feito, onde vi bem documentada a informação de que nós portugueses fomos os primeiros e fomos os últimos a traficar negros de África para a América do Norte, e que o fizemos mais do que todos os outros europeus juntos. E não estava ali contemplada a América do Sul, que acrescentaria dados ainda mais gritantes das maldades do nosso passado, quando 50% dos escravos morriam na travessia do Atlântico e mesmo assim era um negócio muito rentável.

Foram 500 anos da nossa história, na qual também há acontecimentos interessantes e construtivos, mas em que fomos dos povos mais racistas do passado recente, e tenho pena que muito pouco se faça para contar este lado da história.

Muitas pessoas acham que a definição de racismo é individual, mas não é. A frase “eu não sou racista” não faz sentido, embora se compreenda que se use no léxico comum. O racismo é um conceito social, cultural, político e económico em que um subgrupo de pessoas é discriminado pelo sistema de um país. E é por demais evidente que nós, portugueses, nós Portugal somos um país racista, até porque não se apagam 500 anos de história em algumas décadas.

O Instituto Nacional de Estatística, em 2023, concluiu: “Mais de 4,9 milhões de pessoas (65,1%) consideram existir discriminação em Portugal e 2,7 milhões (35,9%) já testemunharam esse tipo de situações. Grupo étnico, cor da pele, orientação sexual e território de origem constituem os factores mais relevantes na discriminação percebida e testemunhada.”

Apesar de todos nós termos genes africanos, e ter sido em África que “nasceu” o Homo sapiens (somos todos “trinetos de pretos”), vejam bem o que a concentração de melanina (pigmento que escurece a pele) faz na alteração do comportamento humano e na igualdade perante a nossa sociedade.

A investigadora e antropóloga na Universidade de Coimbra, Ana Rita Alves, analisou os dados dos indivíduos que foram mortos pela polícia entre 1996 e 2020, e concluiu numa tese de doutoramento, que uma pessoa negra tem uma probabilidade 21 vezes maior de ser morta pela polícia do que uma branca.

“O último European Social Survey (ESS) de 2018/2019, um dos mais respeitados inquéritos europeus, não deixa dúvidas: 62% dos portugueses manifestam racismo. O inquérito mede o racismo biológico com as perguntas: “há grupos étnicos ou raciais por natureza mais inteligentes? há grupos étnicos ou raciais por natureza mais trabalhadores?” e o racismo cultural com a pergunta “há culturas, por natureza, mais civilizadas que outras?”

Mais “dados da vergonha” numa análise gráfica e simples da SIC-N (a ler) , dos quais destaco: “29% dos afrodescendentes vivem, em Portugal, em situação de carência habitacional (residência sem chuveiro e sanita ou demasiado escura, com as paredes ou as janelas degradadas ou infiltrações no telhado). A média europeia é de 5%.”

Eu não sei se o polícia que matou Odair Moniz era xenófobo, eu não sei se a ameaça que ele sentiu justifica ter disparado a arma, como qualquer pessoa honesta, eu só quero que se apurem os factos e se faça justiça. E claro, nada justifica o vandalismo a que assistimos, até é contraproducente para a luta contra o racismo, ao contrário da manifestação pacífica da organização Vida Justa, no sábado, que foi uma lição de cidadania.

Tenho o máximo de respeito e admiração pelas forças policiais, em particular pelos que têm que policiar bairros altamente problemáticos, e que correm riscos, pela segurança do nosso país. Como médico trabalhei anos no INEM e entrei nos piores bairros do Grande Porto, sei o que isso é. Mas que ninguém tenha coragem de dizer que Portugal não é um país racista.

Negar o problema é a melhor forma de não o resolver. Educar, integrar, desconstruir o racismo, apoiar as comunidades mais vulneráveis, apoiar as associações que promovem cultura, artes ou desporto, uma vida digna e continuidade nos estudos, e vamos todos viver mais seguros e num país melhor.

Nós, portugueses, somos racistas, só assumindo podemos melhorar.»


29.10.24

Um belo vaso verde

 


Vaso de vidro com pássaros e folhas. Cerca de 1892.
Ludwig Moser.


Daqui.
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Catarina Martins

 


29.10.1936 – Chegada dos primeiros deportados ao Tarrafal

 


Há 88 anos, chegaram à Colónia Penal do Tarrafal, criada por Salazar alguns meses antes, os primeiros 153 deportados. Mais exactamente, desembarcaram no local onde eles próprios foram obrigados a construir o campo de concentração que os encarceraria. Durante a existência deste «Campo da Morte Lenta», por lá ficaram 36 vidas e os corpos de 32 só foram transladados para Lisboa em 1978.


Encerrado em 1954, devido a pressões internas e internacionais, o Campo foi reaberto em 17.06.1961, por Portaria assinada por Adriano Moreira, então ministro do Ultramar, e permaneceu ativo até ao 25 de Abril, com o nome de «Colónia Penal de Chão Bom», para albergar os lutadores pela independência de Angola, Guiné e Cabo Verde. 

1978 - transladação e cortejo para o cemitério do Alto de S. João, em Lisboa:


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29.10.1929 – Também era terça-feira e foi negra

 



Os invisíveis

 


«Há duas razões fundamentais para defender sem quaisquer hesitações que numa sociedade democrática são intoleráveis os protestos violentos.

A primeira decorre evidentemente do facto de termos decidido atribuir ao Estado o monopólio da violência. Essa é uma regra fundamental da estruturação de um Estado de direito sem a qual é impossível almejar a viver uma vida dita civilizada. E é bom que tenhamos consciência de que é particularmente perigosa a tentação de romantização de protestos violentos, mesmo quando julgamos justas as causas pelas quais se batem aqueles que os promovem. A admissão da violência “privada” ou da violência “justa” e desenquadrada das regras de um Estado de direito é sempre uma aceitação tácita da lei do mais forte. E a História está recheada de exemplos sinistros de lugares aonde nos levaram os caminhos trilhados em nome desse romantismo ingénuo. Reprimir todas as formas de violência exercida fora do monopólio estatal democraticamente legitimado é sempre, por mais contraintuitivo que isso possa parecer em face de injustiças concretas, a melhor forma de proteger os mais fracos de uma sociedade.

Mas há uma segunda razão, porventura ainda mais poderosa, para tornar intoleráveis os protestos violentos numa comunidade. É que se pressupõe que, numa sociedade democrática e aberta, não só todos têm forma de fazer ouvir as suas vozes por meios civilizados e legais, como também que esse exercício do direito à palavra e à cidadania é uma forma razoavelmente eficaz para garantir a todos um lugar ao sol no seu seio. Ou seja, pressupõe-se que o recurso à justiça e à violência “privadas” é, não só totalmente incompatível com a vida livre e civilizada, mas também gratuito porque absolutamente desnecessário.

A vida em sociedade implica, de facto, a adesão – explícita ou implícita – a um conjunto de pactos e regras – a civilidade, a urbanidade, o respeito pelo próximo e pela propriedade e, acima de tudo, a recusa liminar da justiça privada através da violência – sem os quais uma experiência comunitária seria virtualmente impossível. Ora, não é preciso viver no mundo efabulado dos filósofos contratualistas para reconhecer que a adesão a essas regras tem como pré-condição e contrapartida tácita que a sociedade, por seu turno, se estruture, não apenas de forma a garantir a nossa segurança, mas ainda de maneira a dar-nos voz, visibilidade e uma probabilidade razoável para que possamos, no seu seio, realizar anseios mínimos, razoáveis e legítimos.

Trata-se, antes de mais, de garantir a todos um lugar de pleno direito na pólis. Isso implica, claro está, o direito formal ao voto, mas deve pressupor bem mais do que isso. Deve pressupor a existência de mecanismos concretos que assegurem que todas as vozes se possam fazer ouvir e, dessa forma, participar efetivamente no debate público e político. E deve pressupor ainda a edificação de instituições que a todos garantam, na prática, vias concretas de acesso ao poder e uma capacidade mínima de influenciar políticas públicas. A vida numa sociedade democrática implica, assim, não apenas que todos sejam formalmente representados, mas que todos se sintam efetivamente representados. Não há comunidade nem pode haver cidadania plena sem consciência de representação e sem capacidade de, pelo menos ao de leve, influenciar a governação e os destinos da pólis.

Tão ou mais importante, trata-se ainda de conferir o direito ao futuro e à esperança. Não se trata, note-se, de garantir resultados. Mas trata-se de assegurar a existência de um quadro institucional – nas suas dimensões política, económica e social – que a todos confira razoáveis oportunidades para aspirar a um futuro melhor. Não se pode pedir plena adesão aos valores e às regras de uma comunidade se esta não for suficientemente plástica, se esta não garantir suficiente mobilidade no seu seio ou se esta for, pelo contrário, e na prática, sinónimo de condenação e de desesperança.

Ora, é precisamente aqui, neste pressuposto de que a sociedade cumpre a sua parte do contrato fundador a que aderimos quando implicitamente aceitamos abdicar de todas as formas de justiça privada, que o problema se torna mais bicudo. É precisamente aqui onde temos vindo a falhar coletivamente, nalguns casos de forma clamorosa.

Como voltou a ficar penosamente demonstrado por estes dias, a verdade é que são ainda muitos os invisíveis das nossas sociedades. São demais os cidadãos sem voz e são demais os cidadãos sem efetiva representação na pólis. São demais os cidadãos sem oportunidades. São demais os cidadãos prisioneiros, há várias gerações, de ciclos de pobreza que se perpetuam e que lhes negam, na prática, qualquer direito a ter esperança.

Em relação a todos eles falhamos nos mecanismos de representação, falhamos na garantia de efetivo acesso ao poder, falhamos na escola que deveria ser o primeiro garante de oportunidades iguais, falhamos na integração de minorias que são convenientemente remetidas para a sombra e para as franjas da nossa consciência, falhamos numa rigidez social que é excludente, falhamos, evidentemente, na criação de riqueza, mas falhamos também, há que assumi-lo, numa redistribuição que tem de ser absolutamente incompatível com a indignidade.

A constatação desse falhanço coletivo não deve servir, evidentemente, para que relativizemos a violência, para que abramos as portas a formas expeditas e perversas de realização de justiça pelas próprias mãos ou para que aceitemos afrouxar minimamente as regras fundamentais com que estruturamos a vida em sociedade. Que não sobrem quaisquer dúvidas sobre isso. O regresso a um qualquer “estado de natureza” seria sempre a derrota de todos. Até a derrota dos mais invisíveis. Mas estes periódicos choques com a realidade devem, isso sim, servir de alerta e de impulso mais concreto e sobretudo mais duradouro à ação política. Não é realista exigir eternamente a quem quer que seja a adesão a uma comunidade que reiteradamente exclui e que permanentemente condena à desesperança. Não há contratos que possam sobreviver para sempre à sua reiterada violação unilateral.

Se não for por empatia que acordamos, que seja por pragmatismo e por mero interesse próprio.»


28.10.24

Já se pode dizer que o Chega é de extrema-direita?

 


«Agora que apelou a assassinatos selectivos, já se pode dizer que o Chega é de extrema-direita? O problema já não é “normalizar” o Chega, porque o Chega já foi normalizado. O problema é normalizar as ideias do Chega e temer pelas consequências de não as seguir mais ou menos de perto. Não, a direita democrática nunca diria, como fez o líder parlamentar do Chega, “que se a polícia atirasse mais a matar o país estava em ordem”, nem saudaria, como fez o assessor do Chega, a morte de um homem — “menos um bandido” — nem haveria de sugerir, como fez Ventura, que o polícia que assassinou Odair “fosse condecorado”. Depois desta semana já podemos dizer que o Chega é de extrema-direita e que apela ao discurso do ódio? (…)

Agora que apelou a assassinatos selectivos, já se pode dizer que o Chega é de extrema-direita? o medo do Chega — e que um discurso em que fale em racismo nas polícias venha a ser aproveitado pelo Chega — capturou os maiores responsáveis políticos democráticos. Na direita democrática, a única voz razoável foi a do presidente da Câmara de Oeiras, Isaltino Morais.»

Ana Sá Lopes


Encerramento da V Conferência do Bloco de Esquerda

 



Uma cidade, uma democracia e uma lei de todos e para todos

 


«Tudo estava encaminhado para correr mal. A Câmara Municipal de Lisboa, por negligência ou pior do que isso, permitira que a marcha do Chega, marcada fora de prazo, acabasse no local já reservado pela “Vida Justa”. A PSP publicou, no antigo Twitter, um cartaz que não podia ser mais desadequado para a mensagem necessária para o fim de semana que vinha. Em vez de uma imagem civilista, que sublinhasse a diversidade da corporação, dois policias com capacetes, cara tapada, fundo negro e a frase "Pátria e Ordem", que os ativistas de extrema-direita partilharam como se fosse campanha sua.

A PSP entrou, como todas as corporações entram em momentos como este, em modo de autodefesa. Há tanta gente a dizer que temos da acreditar na palavra da polícia. Numa investigação deste género, não sei se é ingenuidade, se má-fé. Em democracia, todas as instituições são escrutinadas por outras exatamente porque não confiamos totalmente em nenhuma. Porque elas feitas por humanos.

Os humanos que dirigem a PSP lançaram dois jovens com pouco mais de 20 anos para um cenário inapropriado para a experiência que têm, sem taser e com medo e uma arma na mão. Basta ver as imagens dos dois polícias, quando não fizeram manobras de salvamento à vítima, para perceber o pânico e o choque. Que o diretor adjunto tenha dito que se têm treino básico podem estar em qualquer cenário diz bem da negligência como tudo isto é tratado. Na opinião da cúpula da PSP, a experiência não conta, ao contrário do que sucede em profissões com muito menor responsabilidade.

Também terão sido os chefes destes homens a achar boa ideia divulgar que Odair empunhara uma faca contra os policias e que deixaram que a tese o carro roubado corresse por mais de dois dias. E foi a cúpula da PSP que, depois dos acontecimentos de 2015, não percebeu que tinha de fazer uma revolução na esquadra de Carnaxide e, em vez disso, manteve os condenados ao serviço.

O jovem polícia pode vir a ser acusado e condenado, mas não deixa de ser uma vítima da incúria das cúpulas da PSP. E elas não deixarão de se proteger. Não hesitando, como já se percebeu, em mentir. E até em recorrer a uma retórica e uma estética que se esperam em partidos radicais, não em forças civis de segurança.

A “Vista Justa” mudou o destino da manifestação, mostrando ser a única organização responsável neste processo (talvez por ser a única que nada tinha a ganhar com a violência) e impedindo o encontro, na mesma praça, de militantes do Chega e aquelas a que chamam "rascaria". O facto de milhares jovens das periferias que tinham direito legal e prioritário ao uso da praça em frente à casa da democracia serem obrigados a ceder a o lugar a 200 militantes de um partido racista funciona como metáfora.

Estive na manifestação de sábado. Os jovens dos bairros organizaram a segurança, impedindo o contacto dos manifestantes com uma polícia em quem não confiam. Tirando um ou outro cartaz, o ambiente não podia ter sido mais sereno, exigindo justiça, não vingança. Da cidade que os pais constroem e as mães limpam, vieram os brancos que acreditam que o direito a ela é de todos. “Nu sta djuntu, nu sta forti” (“estamos juntos, estamos fortes”), gritado em crioulo, era repetido por brancos que nem falam a língua. Não, não esteve ali uma sociedade diversa e tolerante. As duas cidades misturaram-se, mas não se conheciam. Mas o encontro era político e, por isso, genuíno. Não em torno de uma proximidade artificial que não existe no quotidiano, mas de valores constitucionais e democráticos.

Graças à organização do “Vida Justa”, e só a ela e àqueles jovens, a manifestação chegou ao fim sem qualquer problema. E isto fez mais pela paz social, pela “ordem” ou até pela “pátria” do que qualquer competição de testosterona entre políticos. Porque a pedagogia da democracia é sempre autoministrada. É feita pela própria experiência democrática. Neste caso, de um protesto pacífico que mereceu o olhar de toda a comunidade através da comunicação social.

Até sábado, os que pouco ligaram à vigília no Bairro do Zambujal, ainda antes de qualquer tumulto, passaram dias atrás de caixotes de lixo que ardessem. Até no dia do funeral, o Presidente da República dedicou mais palavras ao pedido de serenidade do que às condolências. Morram, mas sem barulho. Diferente, em toda esta crise, esteve Isaltino Morais, que foi ao velório. No dia do funeral, sem qualquer perturbação, as televisões não resistiram a enquadrar os seus diretos com os restos dos tumultos. É uma adição a que não conseguem fugir.

Para a democracia vencer é preciso que todos sintam que é coisa sua. Que têm direito à cidade. Foi apenas um sábado, claro. Mas não foi só uma manifestação. Foi um momento histórico para quem ainda luta para ter acesso à democracia. Para quem luta pelo direito ao pequeno erro, aquele que é tolerado a todos os que enchem o peito contra a “bandidagem”, sem correr risco de ser abatido.

A lei é para todos. É para Odair Moniz, que não tinha de morrer por ter fugido a uma operação stop. É para o polícia que tirou uma vida sem que isso fosse absolutamente indispensável. É para os que feriram motorista da Carris. É para o Tiago, vítima inocente do vandalismo. É para os que nas redes sociais instigaram aos tumultos e que a PSP jura procurar. E é, como exigem mais de 120 mil cidadãos, para André Ventura, Pedro Pinto e Ricardo Reis, que instigaram ou fizeram a apologia do homicídio de cidadãos pela polícia. A lei tem de ser como a cidade: para todos.»


Fernanda Montenegro

 


27.10.24

Uma janela que faz inveja

 


Janela redonda do Palácio do Príncipe de Oldemburgo, Abecásia, Geórgia, 1902.
Arquitecto: I. K. Luceransky.

Daqui.

Um pouco mais de azul (16)

 





O Bairro dos Pobres

 

«Tive o privilégio de crescer em Leça da Palmeira, a 800 metros de um complexo habitacional a que todos chamávamos Bairro dos Pobres. A palavra bairro, nos anos 1970, já suportava uma certa carga dramática, parecida com a que alguns lhe atribuem agora. Como hoje acontece, as pessoas não moravam lá por acaso. (…)

Falhámos. E não é por continuarem a existir ricos e pobres, apesar de ser necessário fazer muito mais no sentido de reforçar as políticas de integração. O maior problema é que, cinco décadas depois do 25 de Abril, Portugal libertou-se da ditadura e ainda há cabeças amarradas e a amarrar à palavra bairro uma série de estigmas. (…)

Socorro-me de uma espécie de frase feita: “Podes sair do bairro, mas o bairro nunca sai de ti”. De certa forma, até pode fazer sentido. Talvez o facto de terem crescido lá os tenha ajudado a moldar o caráter de modo positivo e infinitamente mais digno do que o de muitos criminosos de colarinho branco, por exemplo.»


Isto vi eu, ninguém me contou

 


«Hoje percebi o poder dos meios de comunicação e como manipulam a informação de forma subtil, de modo a que os espectadores tirem conclusões que acreditam ser verdades absolutas e formem opiniões sobre temas externos às suas vidas e realidades. Instigam a polarização em debates televisivos com questões óbvias ou impossíveis de responder face aos dados, e hiperbolizam as ações que decorrem nos terrenos.

Eu sou morador do Bairro do Zambujal há uma década e vivi em vários outros bairros sociais na linha de Sintra. Por motivos profissionais, hoje viajo por todo o país e faço, em média, 100 voos por ano por todo o mundo. Conheço bem a realidade dentro e fora dos Bairros Sociais, e a verdade, de quem esteve presente, é a seguinte: Odair Moniz, de 43 anos, foi morto pela polícia na madrugada do dia 21. A polícia alegou que o carro onde Odair circulava sozinho era "roubado" (alegação já desmentida pela PSP) e que ele não terá respeitado uma ordem de paragem numa Operação Stop, o que resultou numa perseguição seguida de um despiste e abalroamento de vários carros na rua principal da Cova da Moura. Após ter resistido à detenção e "tentado atacar" os dois agentes presentes com uma arma branca (facto já desmentido pelos dois agentes envolvidos), estes viram-se na necessidade de recorrer à arma de fogo, disparando duas vezes sobre Odair, o que resultou no desfecho trágico.

O sentimento de revolta surgiu na comunidade após a divulgação destas alegações, que contêm informação errada (carro roubado) e duvidosa (atacou os agentes com uma arma branca), cruciais à investigação do caso. A isto juntam-se imagens nas redes sociais que pouco esclarecem a veracidade dos factos apresentados pela polícia. Odair, conhecido por Dá, era referenciado por ser alegre, trabalhador e pacificador, e era respeitado por várias comunidades etnicamente diversas que agora procuram respostas.

Fosse por dor e mágoa, para libertar a frustração de uma sociedade oprimida, por solidariedade ou porque queriam fazer parte do acontecimento, vários jovens fizeram o que acharam necessário para mostrar o seu desagrado face ao acontecimento trágico. Não concordo com atos de vandalismo, mas também não concordo com a violência policial e o abuso de poder que sofremos nos bairros sociais. Triste é dizer que os meios de comunicação vieram até nós e tivemos lugar de fala porque caixotes foram incendiados, e não porque um amigo faleceu.

Antes da intervenção policial no nosso bairro, eu e outros membros da associação de moradores “A Partilha” fizemos questão de trazer para dentro do bairro os meios de comunicação, que não foram mal recebidos, à exceção da CMTV, que teve de se retirar do local. Os depoimentos foram muitos, e os jornalistas tiveram a oportunidade de falar com vários membros da comunidade. Foi-lhes apenas pedido que não filmassem alguns grupos de jovens, o que alguns não respeitaram, causando momentos de tensão entre as duas partes. A presença dos meios de comunicação protege, de certa forma, a grande maioria da população externa aos distúrbios prepertados pelas forças policiais que, por esta ser considerada uma Zona Urbana Sensível (ZUS), ignoram a necessidade de diferenciar entre os causadores dos desacatos e os restantes habitantes, tratando todos de forma abrupta e agressiva, o que faz com que temam mais a polícia do que o vandalismo.

Sobre as atuações policiais, obviamente necessárias face aos desacatos causados no nosso bairro, existem alguns tópicos que devem ser esclarecidos. Em momento algum houve uma manifestação, e fizemos questão de desmentir essa informação várias vezes. Um grupo de pessoas a gritar em uníssono por si só não representa uma manifestação. É igualmente inaceitável afirmar que se usaram crianças como “escudo”. As crianças nos bairros sociais brincam na rua com outras crianças, como é habitual em aldeias e comunidades pequenas, e naturalmente aproximam-se destes focos de ação. A única pessoa que precisou de cuidados médicos foi agredida pela polícia e nada tinha a ver com os tumultos. A polícia invadiu duas vezes a casa de Odair, arrombou a porta e agrediu pessoas dentro de casa. Na segunda vez, foram forçados a recuar porque estavam na presença de câmaras de televisão e foram abordados por uma advogada, que corajosamente os impediu de avançar.

Resta dizer que o efeito mimético, gerado em diversas outras áreas de Lisboa, é o resultado de um problema comum, causado pela desumanização, segregação e racismo.»


Texto originalmente publicado em Bantumen