29.10.24

Os invisíveis

 


«Há duas razões fundamentais para defender sem quaisquer hesitações que numa sociedade democrática são intoleráveis os protestos violentos.

A primeira decorre evidentemente do facto de termos decidido atribuir ao Estado o monopólio da violência. Essa é uma regra fundamental da estruturação de um Estado de direito sem a qual é impossível almejar a viver uma vida dita civilizada. E é bom que tenhamos consciência de que é particularmente perigosa a tentação de romantização de protestos violentos, mesmo quando julgamos justas as causas pelas quais se batem aqueles que os promovem. A admissão da violência “privada” ou da violência “justa” e desenquadrada das regras de um Estado de direito é sempre uma aceitação tácita da lei do mais forte. E a História está recheada de exemplos sinistros de lugares aonde nos levaram os caminhos trilhados em nome desse romantismo ingénuo. Reprimir todas as formas de violência exercida fora do monopólio estatal democraticamente legitimado é sempre, por mais contraintuitivo que isso possa parecer em face de injustiças concretas, a melhor forma de proteger os mais fracos de uma sociedade.

Mas há uma segunda razão, porventura ainda mais poderosa, para tornar intoleráveis os protestos violentos numa comunidade. É que se pressupõe que, numa sociedade democrática e aberta, não só todos têm forma de fazer ouvir as suas vozes por meios civilizados e legais, como também que esse exercício do direito à palavra e à cidadania é uma forma razoavelmente eficaz para garantir a todos um lugar ao sol no seu seio. Ou seja, pressupõe-se que o recurso à justiça e à violência “privadas” é, não só totalmente incompatível com a vida livre e civilizada, mas também gratuito porque absolutamente desnecessário.

A vida em sociedade implica, de facto, a adesão – explícita ou implícita – a um conjunto de pactos e regras – a civilidade, a urbanidade, o respeito pelo próximo e pela propriedade e, acima de tudo, a recusa liminar da justiça privada através da violência – sem os quais uma experiência comunitária seria virtualmente impossível. Ora, não é preciso viver no mundo efabulado dos filósofos contratualistas para reconhecer que a adesão a essas regras tem como pré-condição e contrapartida tácita que a sociedade, por seu turno, se estruture, não apenas de forma a garantir a nossa segurança, mas ainda de maneira a dar-nos voz, visibilidade e uma probabilidade razoável para que possamos, no seu seio, realizar anseios mínimos, razoáveis e legítimos.

Trata-se, antes de mais, de garantir a todos um lugar de pleno direito na pólis. Isso implica, claro está, o direito formal ao voto, mas deve pressupor bem mais do que isso. Deve pressupor a existência de mecanismos concretos que assegurem que todas as vozes se possam fazer ouvir e, dessa forma, participar efetivamente no debate público e político. E deve pressupor ainda a edificação de instituições que a todos garantam, na prática, vias concretas de acesso ao poder e uma capacidade mínima de influenciar políticas públicas. A vida numa sociedade democrática implica, assim, não apenas que todos sejam formalmente representados, mas que todos se sintam efetivamente representados. Não há comunidade nem pode haver cidadania plena sem consciência de representação e sem capacidade de, pelo menos ao de leve, influenciar a governação e os destinos da pólis.

Tão ou mais importante, trata-se ainda de conferir o direito ao futuro e à esperança. Não se trata, note-se, de garantir resultados. Mas trata-se de assegurar a existência de um quadro institucional – nas suas dimensões política, económica e social – que a todos confira razoáveis oportunidades para aspirar a um futuro melhor. Não se pode pedir plena adesão aos valores e às regras de uma comunidade se esta não for suficientemente plástica, se esta não garantir suficiente mobilidade no seu seio ou se esta for, pelo contrário, e na prática, sinónimo de condenação e de desesperança.

Ora, é precisamente aqui, neste pressuposto de que a sociedade cumpre a sua parte do contrato fundador a que aderimos quando implicitamente aceitamos abdicar de todas as formas de justiça privada, que o problema se torna mais bicudo. É precisamente aqui onde temos vindo a falhar coletivamente, nalguns casos de forma clamorosa.

Como voltou a ficar penosamente demonstrado por estes dias, a verdade é que são ainda muitos os invisíveis das nossas sociedades. São demais os cidadãos sem voz e são demais os cidadãos sem efetiva representação na pólis. São demais os cidadãos sem oportunidades. São demais os cidadãos prisioneiros, há várias gerações, de ciclos de pobreza que se perpetuam e que lhes negam, na prática, qualquer direito a ter esperança.

Em relação a todos eles falhamos nos mecanismos de representação, falhamos na garantia de efetivo acesso ao poder, falhamos na escola que deveria ser o primeiro garante de oportunidades iguais, falhamos na integração de minorias que são convenientemente remetidas para a sombra e para as franjas da nossa consciência, falhamos numa rigidez social que é excludente, falhamos, evidentemente, na criação de riqueza, mas falhamos também, há que assumi-lo, numa redistribuição que tem de ser absolutamente incompatível com a indignidade.

A constatação desse falhanço coletivo não deve servir, evidentemente, para que relativizemos a violência, para que abramos as portas a formas expeditas e perversas de realização de justiça pelas próprias mãos ou para que aceitemos afrouxar minimamente as regras fundamentais com que estruturamos a vida em sociedade. Que não sobrem quaisquer dúvidas sobre isso. O regresso a um qualquer “estado de natureza” seria sempre a derrota de todos. Até a derrota dos mais invisíveis. Mas estes periódicos choques com a realidade devem, isso sim, servir de alerta e de impulso mais concreto e sobretudo mais duradouro à ação política. Não é realista exigir eternamente a quem quer que seja a adesão a uma comunidade que reiteradamente exclui e que permanentemente condena à desesperança. Não há contratos que possam sobreviver para sempre à sua reiterada violação unilateral.

Se não for por empatia que acordamos, que seja por pragmatismo e por mero interesse próprio.»


0 comments: