«Mário Soares não tem, ao contrário de Sá Carneiro, o seu nome numa grande praça ou infraestrutura. Não teve direito a uma estátua semelhante à erguida a Sá Carneiro. Estive no Largo do Rato (que se deveria chamar Largo Mário Soares) a ver passar o cortejo fúnebre e fiquei desolado. Na sua dimensão, esteve a léguas da homenagem que merecia – semelhante à que Álvaro Cunhal recebeu. Soares morreu desrespeitado por boa parte da direita. Basta-me reler a crónica que eu próprio escrevi, em sua defesa, no momento da sua morte, para perceber que ambiente se vivia.
E, no entanto, é o espaço político que mais o vilipendiou nos seus últimos anos de vida que mais o tem na boca, apresentando-se como herdeiro do seu legado contra um PS supostamente radicalizado. E isso tem acontecido, com especial empenho, a propósito das extemporâneas comemorações do 25 de novembro, no seu 49º aniversário. Como se a recusa da equivalência com o 25 de abril fosse a recusa da própria data.
Em 49 anos, PS e PSD nunca instituíram este tipo de celebração oficial. Da mesma forma, nunca houve festa popular em novembro. Como recorda o artigo de Vítor de Matos, que devem mesmo ler, foi Mário Soares que, como Presidente da República, pôs fim a uma cerimónia anual no RALIS, concentrando tudo no 25 de abril.
Não foi por serem contra o 25 de novembro que não o comemoram, mas porque, até ao crescimento da extrema-direita, se achava que a equiparação com o 25 de abril nada tinha a ver com a defesa da democracia, mas com a agenda dos derrotados de abril e até, como explica Vasco Lourenço, um dos principais atores e atores de novembro, de parte dos derrotados de novembro.
Não é a resistência a este modelo de comemorações que rompe com qualquer tradição, é a direita que resolve usar o 25 de novembro para, no 50º aniversario de abril (e não do 25 de novembro), criar uma equiparação simbólica até hoje consensualmente recusada. E fá-lo como resposta ao crescimento de uma força política abertamente contrária do 25 de abril e claramente derrotada nos dias depois do 25 de novembro.
Ramalho Eanes disse, em 2015 (nos 40 anos da data): "O 25 de Novembro foi um momento fraturante e eu entendo que não devemos comemorar. Os momentos fraturantes não se comemoram, recordam-se e recordam-se apenas para refletir sobre eles. No caso do 25 de Novembro, devíamos refletir porque é nós, portugueses, com séculos e séculos de história, com uma unidade nacional feita de uma cultura distintiva profunda, porque é que nós chegámos àquela situação, porque é que chegámos à beira da guerra civil.” Eanes percebia que qualquer tentativa de equiparação com o 25 de abril apoucando a data que une quase todo o país e reabria feridas que estavam cicatrizadas. E que foram resolvidas pelos próprios autores do 25 de novembro.
Mais uma vez, como se vê pela a presença de Eanes nas comemorações que há dez anos recusava, a mudança não é dos que sempre fizeram a leitura que ele fazia em 2015, mas de um ambiente político determinado pelo crescimento do Chega, a que ninguém parece conseguir resistir. Não se celebra o 25 de novembro como não se celebra o 28 setembro e o 11 de março, quando aventuras da direita foram travadas, assim com as da esquerda o foram em novembro. Porque se considera que o 25 abril faz síntese. Não apenas o 25 de abril de 1974, quando a ditadura foi derrubada e conquistámos a liberdade. Mas o de 1975, quando o povo elegeu a assembleia que viria a escrever e aprovar a Constituição da República Portuguesa. E o de 1976, quando se confirmou, através das primeiras eleições legislativas, a democracia representativa prometida a 25 de abril e defendida em novembro.
VENCEDORES E VENCIDOS
Como bem tinha percebido Ramalho Eanes e Vasco Lourenço continua a dizer, é o 25 de abril que une. Na entrevista que fiz, Lourenço, que foi, simultaneamente, causa próxima da sublevação dos paraquedistas, por ter substituído Otelo no comando da Região Militar de Lisboa, e comandante militar do 25 de novembro, tendo como adjunto Ramalho Eanes, diz que os únicos vitoriosos claros do golpe ou contragolpe foram os chamados moderados, do grupo dos nove de que ele era líder militar e Melo Antunes líder político.
Foi derrotado o PCP, que acaba por recuar no próprio dia, confirmando a perda de controlo político da situação e evitando uma guerra civi. Mas Vasco Lourenço até o considera um “vencido vencedor,” porque consegue garantir os mínimos, mantendo-se ativo, legal e até presente no VI governo provisório. Até se livra da concorrência da extrema-esquerda.
É derrotada a extrema-esquerda, que , liderada por Otelo, levava a revolução para um processo vanguardista cada vez mais isolado da maior vontade popular. Utilizando uma expressão de Melo Antunes, no próprio dia 25 de novembro, o golpe “foi um abcesso que rebentou e era inevitável que tivesse rebentado”.
E são derrotados os setores da direita e da extrema-direita, liderados por homens como Jaime Neves, que, apesar de associados ao 25 de novembro, desejavam a ilegalização do PCP, o fim do pluralismo partidário e a interrupção do processo que levou à aprovacao de uma Constituição progressista. Vasco Lourenço diz que desejavam impor uma deitadura e um “novo 28 de maio”.
Lourenço disse, a 27 de novembro, a partir do Palácio de Belém, de onde comandara as operações: “Tal como no 11 de março, quando foi necessário travar uma escalada de um extremismo de esquerda, nos dias seguintes – foi mais difícil escalar travar essa escalada do que fazer frente ao ataque que o RALIS sofreu na altura –; neste momento, com a situação militar praticamente resolvida, temos a noção perfeita que as forças de direita estão a pretender aproveitar-se desta situação criada para deitar as garras de fora e tentarem que o processo descaia rapidamente para a direita. Posso garantir que estamos decididos a defender o espírito que nos levou a fazer o 25 de abril, transplantado para o programa do MFA.”
Dois dias antes, também no Palácio de Belém, Melo Antunes apontava para a vitória de um “projeto viável de esquerda”, falando de um corte definitivo com o capitalismo (o anacronismo destas comemorações ignora o que eram os equilíbrios ideológicos de então) ou de retorno a formas de organização autoritária.
A derrota de quem pretendia a vingança ficou clara quando Melo Antunes, o militar que esteve sempre do lado certo,sendo ideólogo do 25 de abril e do 25 de novembro, disse: “A participação do PCP na construção do socialismo [sim, os autores do 25 de novembro falavam de socialismo] é indispensável”. São os descendentes dos que o desejavam ilegalizar que, enganando a memória, puxaram o PSD para uma comemoração anacrónica, voltando a tentar transformar, 49 anos depois, o 25 de novembro no que ele não foi.
25 DE NOVEMBRO, MODO DE USAR
Como sempre acontece na instrumentalização política da histórica, os objetivos têm mais a ver com o presente do que com o passado. Parte da direita sempre teve uma relação complexada com o 25 de abril. Queixa-se dos que se acham donos da data, mas raras foram as vezes que não exibiu desconforto com ela e com os seus símbolos (ainda hoje, a maioria dos deputados de direita tem dificuldade em usar o cravo na celebração oficial). E procura, noutras datas, um papel que, por contingências históricas, não teve na revolução democratizadora.
Mas é mais do que isso. Ao querer equiparar uma ditadura de meio século com meses conturbados e contraditórios, quer-se equiparar o PCP ao Estado Novo, podendo, assim, normalizar a extrema-direita, da mesma forma que o PCP foi normalizado, para que, num futuro próximo, também possa contar para maiorias governativas. O querem dizer é o que Melo Antunes disse no 25 de novembro, mas em sentido contrário.
A pressa em, nos 49 anos do 25 de novembro, impor, sem o consenso que seria desejável, uma sessão solene anual, resulta do desconforto com o poder simbólico popular demonstrado na comemoração do 50º aniversário do 25 de abril, que juntou, em Lisboa, a maior manifestação desde o 1º maio 1974. Se assim não fosse, esperava-se por 2025 para este momento. A pressa denuncia o objetivo. Assim como a ausência de qualquer celebração do 11 de março e 28 de setembro denuncia o caráter divisivo e de fação desta celebração, que desvaloriza as ameaças contra a democracia que, naquele período, vieram da direita.
Esta não é a celebração da democracia, é a celebração de uma fação específica que participou no 25 de novembro. O olhar daqueles que Vasco Lourenço e Melo Antunes derrotaram, nos dias seguintes ao contragolpe. E essa é a ironia desta celebração: ela quer, 49 anos depois da tentativa de revanche política ter falhado, fazer a revanche simbólica. É promovida pelos que queriam que o 25 de novembro fosse outra coisa. Por isso têm Jaime Neves, que queria a ilegalização do PCP, e não o grupo dos nove, como símbolo. Esta é, nisso Vasco Lourenço não podia ter mais razão, a celebração de parte dos derrotados de novembro.
À vingança histórica do Chega e do CDS, derrotados de abril, março, setembro e novembro, juntam-se as guerras culturais de uma IL em crise de utilidade desde que Luís Montenegro venceu as eleições. E a uma cedência quase permanente do PSD a estas agendas. Aquilo a que assistimos hoje é, antes de tudo, a uma infantilidade política, sem qualquer ligação com a relação popular com estas datas. Uma tentativa reabrir feridas que os autores do 25 de novembro souberam sarar.
Não é por acaso que um dos principais autores e atores do 25 de novembro, seu líder militar, não estará presente na Assembleia da República. Como já defendeu Eanes, o 25 de novembro evoca-se e recorda-se, sem vergonha nem complexos. As celebrações máximas reservam-se para a data fundadora, que sintetiza o apego popular à democracia: o 25 de abril, nascido em 1974, confirmado na constituinte de 75 que levaria à aprovação da Constituição e consumado nas eleições legislativas de 1976. O resto, são trincheiras culturais de quem procura resolver no presente a falta de passado, fazendo-nos perder tempo para as batalhas do futuro.»