30.11.24

Cálices

 


Cálice russo em prata dourada e esmalte cloisonné, São Petersburgo, 1908-1917.
Ivan Petrovich Khlebnikov.

Daqui.

Notre Dame

 


Trabalhadores que estiveram nos últimos cinco anos a recuperar a catedral de Notre Dame.

“Isto é gozar com quem trabalha”

 

«É discutível se Aguiar Branco devia ou não ter suspendido os trabalhos parlamentares na sequência de um acto por si classificado de “vandalização política”. É uma decisão difícil. Aceder ao pedido do PS e, assim, dar palco à “turma de repetentes” como tão bem lhes chamou Rui Rocha, líder da Iniciativa Liberal? Ou contribuir, com a passividade e tolerância democrática, para que a dignidade de um órgão como o Parlamento seja posto em causa?

É discutível, mas é preciso ponderar sobre onde está o limite. Onde está a consequência para os 50 deputados do Chega que sistematicamente têm um comportamento que não dignifica a Assembleia da República? Vale a pena pensar sobre isto.»

Entretanto, no Parlamento, Aguiar Branco aproveita

 


Hugo van der Ding no Facebook

A perda das duas culturas

 


«Este ano já fiz mais de cento e dez intervenções, inaugurações, debates, conferências, visitas guiadas, desde Monforte à Barragem de Picote, o que não é vida que se recomende a ninguém. É certo que é um ano especial, por causa do aniversário do 25 de Abril, mas, mesmo depois da data, continua, continua, continua. Há uma vantagem, talvez possa falar com algum conhecimento de causa sobre o que se está a perder, porque muitas dessas andanças foram conversas em escolas do ensino secundário onde contactei com milhares de alunos. Sim, milhares, em escolas de zonas pobres a colégios da elite, o que faz enorme e evidente diferença. Parte da conversa com este público, provavelmente o mais difícil de todos, foram perguntas minhas, por curiosidade e para saber o terreno que pisava. E, se já não tinha muita esperança de que soubessem quem era Aquiles ou Minerva, ainda não tinha a noção de que muitos não sabiam quem são Adão e Eva, e quando os nomes lhes diziam alguma coisa era como “os primeiros seres humanos”.

A questão é que há uma perda acentuada das duas fontes fundamentais da cultura ocidental, a nossa cultura. Podemos chamar-lhe o que quisermos se o termo “ocidental” parece inquinado, e, nesta época de ilusão multicultural, nomear outras “culturas”, submetidas, escravizadas, ignoradas, minimizadas, tudo o que se queira. Mas a “outra” continua a ser mais a nossa, a dos homens e mulheres, na sua maioria brancos, mas não só, europeus e americanos, que criaram uma “civilização”, outro termo ambíguo, que todos sabemos transporta enormes violências e iniquidades, mas sem a nomear como superior, nem lhe atribuir sentido valorativo, não deixa de ser a “nossa”. No modo como as coisas estão e o intenso policiamento da linguagem e do pensamento, bem podia prescindir desta introdução preventiva, que, aliás, não vai servir para nada.

A “nossa” civilização repousa em dois pilares culturais e históricos: a cultura greco-latina e a cultura bíblica, ambas com uma história comum. Ambas fizeram-nos como somos, moldaram as instituições como moldaram a nossa cabeça. Pode-se contestar que faltam outras componentes como a cultura da ciência, ou a cultura política da democracia, mas ambas entrelaçam-se de tal maneira na tradição “ocidental” que são produtos mais do que fundação.

Mas qual é o problema de não saber essas coisas “antigas”, cuja “utilidade” nos nossos dias é entendida como escassa ou estar substituída por outras “competências” ou “literacias”? Tudo e todo. Começa com a circunstância de que quem não conhece minimamente a mitologia clássica ou as histórias da Bíblia, em particular o Antigo Testamento, debilmente lê qualquer grande clássico da “nossa” literatura, de Shakespeare a Tolstói, ou em português de Camões a Eça. Verdade seja, que já hoje pouco se lê, mas, mesmo assim, há um enorme prazer, e uma enorme “ilustração” em ir um pouco mais além do que uma leitura pobre, que é quase sempre por obrigação e é esquecida no dia seguinte. Nós precisamos de histórias, de metáforas, de rimas, de poemas, de simples frases, de memórias, ou de imagens e iconografia, para vermos o mundo à nossa volta com algum acrescento e sermos melhores, mais capazes, mais senhores de nós próprios. A cultura não garante imunidade contra a crueldade, sabemos pelas bibliotecas de Hitler e Estaline, que eram homens cultos, mas mesmo do ponto de vista do mais comum dos homens mais vale tê-la do que não tê-la. A miséria é obviamente a grande inimiga da cultura dos homens comuns, que são duplamente pobres, mas, mesmo aí, as figuras que os anarquistas e outros rebeldes iam buscar para simbolizar a luta incluíam Espártaco ou o carpinteiro José e os pescadores apóstolos.

A miséria foi a grande inimiga da cultura, de toda, a antiga e a moderna, mas nos dias de hoje há outras formas em crescendo do obscurantismo, em particular as formas modernas de ignorância agressiva, ligadas à educação pelo lixo, pela cloaca das redes sociais, associada à perversão do tempo rápido, do ruído, da velocidade afectiva que gera o défice da atenção, que molda as crianças e os “jovens”, que vão até aos 35 anos, nos ecrãs pequenos, na absoluta presencialidade dos telemóveis, numa sociabilidade entre os likes e o bullying. A escola, que devia resistir, submete-se pelo facilitismo e pela moda.

Claro que assim Ulisses nunca chega a Ítaca, nem nenhum anjo trava a mão mortífera de Abraão. Qual é o problema? Na verdade, nenhum. Voltem para a cultura dos insultos nos comentários, a acreditar que há uma correlação entre os abortos e as tempestades, e que os haitianos comem os cães e gatos de companhia. Está visto que tudo isto não impede ninguém de ganhar uma eleição.»


29.11.24

Luzinhas bem necessárias

 


Candeeiro “Nenúfares”, Arte Nova, 1902-1903.
Daum, Nancy.


Daqui.

Foi você que pediu um xerife?

 



«Já não é a primeira vez que o primeiro-ministro aparenta estar entusiasmado com o papel de xerife. Só que, de cada vez que o faz, Montenegro esquece que, tirando no faroeste, não é essa a função de um chefe de governo (que, além do mais, não pode banalizar a solenidade das comunicações ao país) e que os portugueses que sonham com um xerife em São Bento preferirão sempre o original à cópia.»


𝐎 erro de Aguiar Branco

 


O PAR devia ter referido os penduricalhos do Chega em janelas de S. Bento, dito que ia entregar a questão às entidades judicias competentes, impedir imediatamente o debate e iniciar os trabalhos de votação do OE. Não podia? Ora…

Assim, deu – e continuará a dar – horas e horas de propaganda ao Chega e felicidade às TVs que não se calam. O vencedor foi André Ventura.

O Snoopy anda pelas redes sociais

 


Considerações sobre arte e bananas

 

«Durante a II Guerra Mundial, em resultado das restrições impostas pelo racionamento, os merceeiros do Reino Unido punham na janela um cartaz dizendo “Yes! We have no bananas” (“Sim! Não temos bananas”). Era uma referência a uma música muito conhecida, composta uns 20 anos antes, e pretendia contrariar, com alguma alegria, o infortúnio de não haver bananas. No entanto, por muita falta que as bananas fizessem, ninguém se lembraria de dar 6,2 milhões de dólares por uma, como acabou de fazer um empresário de criptomoedas. (Empresário é o nome que os jornais lhe dão. Eu chamo feiticeiro, porque não percebo o produto que ele transacciona nem o feitiço através do qual ele passa a ter valor. Os especialistas explicam que se trata de uma moeda digital com tecnologia blockchain criada através do processo de mining, o que significa que os especialistas também não sabem o que é.) Foi esse empresário que comprou a obra de arte que consiste numa banana colada à parede com uma fita adesiva cinzenta. Na verdade, ele não comprou exactamente a obra de arte. Ele comprou, digamos, a ideia da obra de arte. A troco de 6,2 milhões de dólares, ficou com um conjunto de instruções sobre o modo de expor a obra e um certificado de autenticidade que assegura que, sempre que ele colar uma banana à parede com aquela fita adesiva, essa será a obra verdadeira, diferente de qualquer outra banana que um de nós possa colar à parede com a mesma fita — que será apenas um objecto estúpido, a caminho de apodrecer e ir parar ao lixo. Ou seja, com dinheiro que não é bem dinheiro, ele comprou uma obra de arte que não é bem uma obra de arte. Parece-me apropriado.

Podemos considerar uma idiotice dar 6,2 milhões de dólares por uma banana, mas isso é ser insensível às qualidades da banana. 
Não contem comigo para ser insensível às qualidades da banana. A banana não é um fruto qualquer. A sua versatilidade, muito superior à das outras frutas, permite-lhe ser convocada para o universo humorístico, por causa da casca, para o universo sexual, por causa da forma, para o universo musical, por causa das suas três divertidas sílabas. Além disso, a banana é o único fruto que é também um insulto. Perante uma pessoa particularmente passiva ou cobarde, ninguém diz, pretendendo ofender: tu és mesmo umas uvas. Só a banana tem a potência necessária para ultrajar. A grande lição deste caso é esta: um banana comprou uma banana — o que acrescenta nova camada artística a uma obra já tão rica em significados.»


28.11.24

Luís Montenegro, 27.11.2024

 


Embrulhem!

 


«Além da abstenção do Chega (cuja proposta foi de atualização adicional de 1,5%), registaram-se os votos contra do PSD, do CDS e da Il, enquanto os restantes partidos votaram a favor, na Comissão de Orçamento, Administração Pública e Finanças.»


Montenegro: um tiro completamente ao lado

 

«O primeiro-ministro, que não se dirigiu ao país durante os tumultos que se arrastaram durante várias noites na Grande Lisboa depois da morte de Odair Moniz no Bairro do Zambujal, nem tão-pouco quando ficaram evidentes as falhas graves do atendimento do INEM, entendeu ser importante ir ao encontro das pessoas que “têm um sentimento de insegurança”, quando, na verdade, como reconheceu, “Portugal é um dos países mais seguros do mundo”.

Nada daquilo cola ou faz sentido em pleno horário solene das 20h. Por outras palavras, foi um tiro ao lado.»


Leva um amigo também

 


As perceções e os oportunistas que as aproveitam

 


«Segundo o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) de 2023, o último existente, houve uma subida da criminalidade face a 2022. Mas 2022 foi a terceira mais baixa desde 2014, atrás de 2020 e 2021. Três anos em que a criminalidade foi regressando para valores próximos da pré-pandemia. Os números da criminalidade violenta não andam longe disto. Depende sempre dos rankings, mas, segundo o Global Peace Index de 2023, Portugal é o 7º país mais pacífico do mundo, tendo subido uma posição em relação ao ano anterior. À frente, só a Islândia, a Dinamarca, a Irlanda, Nova Zelândia, Áustria e Singapura.

Num dos países mais seguros do mundo, os números da criminalidade de 2023 estão longe de ser preocupantes, quando olhamos para a década. Mas instituiu-se que, havendo a perceção de que vivemos num país cada vez mais perigoso, quem não se comporte como se essa perceção fosse verdadeira, confirmando-a pela sua adequação ao sentimento geral, é um irresponsável. Está a enfiar a cabeça na areia. Deixa o tema para a extrema-direita.

Foi pensando assim que o governo avançou com a campanha "Portugal Sempre Seguro". Seis semanas de operações policiais, não determinadas pelos responsáveis pelo combate e prevenção do crime, não resultado de qualquer avaliação de segurança, mas decididas pelo governo, com critérios estritamente políticos, numa das mais graves instrumentalizações políticas das polícias da nossa história democrática. Objetivo: "aumentar o sentimento de segurança dos cidadãos". A perceção, portanto.

Claro que esta operação não contraria a perceção de insegurança que os números não confirmam, mas que horas de diretos da CMTV alimentam. Reforça essa perceção. Quando vemos megaoperações policiais na televisão não achamos que vivemos num país onde há pouco crime. Pelo contrário.

Ontem, Montenegro pôs a cereja em cima do bolo, montando um espetáculo mediático, com uma reunião com ministros e forças policiais seguida de uma comunicação ao País às 20h00, sem nenhuma razão que não fosse a de se pendurar, de forma explicita, em buscas e detenções de uma investigação em curso. Na mesma declaração, juntou a investigação aos tumultos (que, a bem da separação de poderes, não lhe dizem respeito), o anúncio dos resultados da operação “Portugal Sempre Seguro” (que cabe a quem dirige às forças de segurança anunciar), e medidas do governo, como se atos que cabem à justiça estivessem no mesmo saco que o programa do governo.

Nunca, que me recorde, um governo politizou desta forma uma investigação ou assumiu a direção e comunicação públicas de resultados de operações policiais. É uma situação inédita na democracia portuguesa que devia merecer uma intervenção do Presidente da República. É urgente voltar a separar as águas, explicando que o primeiro-ministro não é xerife. Imaginem o que se diria se André Ventura fizesse, num governo, uma coisas destas.

O CERCO AO IMIGRANTE

A percentagem de condenados estrangeiros é de 16,7% (e não de 20%, como diz Ventura). Em 2013, era 15,4%. Segundo o RASI, e apesar do número de imigrantes ter duplicado de 2014 a 2022, a relação entre reclusos estrangeiros e portugueses tem-se mantido estável no mesmo período. Não é possível, portanto, fazer qualquer associação entre imigração e criminalidade.

Também não faz sentido acreditar que a imigração ilegal tenha grandes dimensões quando o que se andou a dizer foi que, com “a porta escancarada” aos imigrantes (o ministro da Coesão já veio dizer que, mesmo assim, faltam imigrantes para cumprir o PRR) garantido pela “manifestação de interesse”, toda a gente entra e fica legal.

Diz-se que é irresponsável deixar a extrema-direita sozinha neste debate, em vez de tratar a imigração como natural e desejável. Claro que são precisos cuidados para que, como qualquer outro fenómeno, a imigração não se transforme num problema político e social. Até por sabermos que os fluxos migratórios tenderão, com as alterações climáticas, a aumentar. Mas isto não significar que se aceitam os termos securitários com que a extrema-direita trata o tema. E foi isso que o governo fez.

Para não ter o Chega sozinho no terreno, uma das operações mais espetaculares da campanha "Portugal Sempre Seguro" foi o cerco à praça e ao centro comercial Martim Moniz, em Lisboa, para fazer a caça ao ilegal. Mais uma vez, o objetivo foi “o reforço da perceção de segurança no país, contrariando as informações descontextualizadas que criam a sensação de insegurança às populações”. Foi detido um único imigrante ilegal. Imaginem o que seria fechar o El Corte Inglês ou o Centro Comercial das Amoreiras durante horas, com clientes, lojistas e funcionários lá dentro, para transmitir “uma perceção de segurança”. O que se diria?

Claro que esta operação não muda o clima político que se anda a criar num país que precisa de reter imigrantes, não de os expulsar. Um país cuja economia, segurança social e Estado Social desabariam sem os imigrantes. Entre a perceção e os factos, escolhe-se responder à perceção.

DESVALORIZAR O CRIME QUE MAIS MATA

A violência domestica é o crime com mais denúncias e que mais mata. De acordo com o RASI, houve 23, 28 e 22 vítimas mortais (16, 24 e 17 mulheres) em 2021, 2022 e 2023, respetivamente. As participações têm-se mantido estáveis, desde 2019, andando próximo dos 30 mil, com uma ligeira queda durante a pandemia. Mas os dados provisórios indicam que já houve mais vítimas mortais até 15 de novembro do que em 2023 inteiro.

O que disse o primeiro-ministro sobre isto? "Muita coisa saiu do armário onde estava escondida. Eu não quero chocar ninguém, mas tenho consciência de que o aumento a que assistimos em alguns anos não significa um aumento real, significa um aumento de conhecimento. Já foi muito pior, desse ponto de vista".

O que os números dizem é que, nos últimos anos, há uma relação entre queixas e vítimas mortais. Luís Montenegro não se baseia em nada a não ser na sua própria perceção. Um “achismo” que, curiosamente, vai no sentido exatamente inverso às perceções a que tem reagido e que tem alimentado quando está em causa a criminalidade geral ou a imigração.

MANDA A TÁTICA

Num dos países mais seguros do mundo, Montenegro confirma a perceção popular e mediática, lançando uma enorme operação policial para fins políticos, dando assim força a essa perceção. Perante a perceção politicamente alimentada, que associa imigração a insegurança, monta um cerco a uma praça e a um centro comercial, impondo um clima de estado de sítio com resultados pífios, mas contribuindo para a criminalização pública dos imigrantes. Perante o crime que mais mata em Portugal, faz o oposto: explica que a perceção é ilusória, desvalorizando os números que, neste caso, dão razão a essa perceção.

Não acho que Montenegro não se preocupe com a violência doméstica. Acho que nunca deixa de fazer cálculos partidários. Não na forma como lida com a violência doméstica, mas na forma como lida com a criminalidade geral e com a imigração. Está a pensar no Chega, que esse, sim, se está nas tintas para a violência que não seja cometida por uma minoria ou por imigrantes.

As prioridades do Chega, que determinam as prioridades de Montenegro, têm muito a ver com a forma como a nossa sociedade olha para a violência doméstica e a distingue da restante criminalidade. Ela acontece na família. Não é cometida por "bandidos", mas pelos nossos vizinhos, amigos, familiares, colegas. Se é verdade que há uma lenta mudança cultural, que os números de violência no namoro e aceitação que ela parece ter entre os jovens obrigam a relativizar, o mais relevante crime violento em Portugal continua a ter um estatuto à parte. Não é um crime dos outros. Tem pouco uso político para quem viva do ódio. E é quem vive do ódio que determina as perceções e, com elas, as políticas públicas.»


27.11.24

Frascos… azuis

 


Frasco com tampa de vidro cobalto, Murano, 1920.
Vittorio Zecchin.


Daqui.

Militares nas casernas, Gouveia e Melo no bar

 


«Muitos projetam Henrique Gouveia e Melo como uma figura mística, visionária. Um impulsionador e um estratega que vai devolver a Portugal a glória marítima do passado: um almirante D. Henrique. Há quem veja um calmante no almirante, eu considero tudo isto alarmante. É uma alucinação sintomática de uma epidemia de negacionistas da ideologia, que não consideram inquietante o facto de desconhecermos as posições políticas de um candidato a Presidente da República. (…)

Se o Almirante virar Presidente, sabemos bem quem é o culpado: Francisco Ramos, o primeiro coordenador do plano de vacinação. Se não se tivesse demitido, hoje Gouveia e Melo frequentaria bares sem ser fotografado. (…) Portugal não quis eleger um militar do COPCON, vamos acreditar que não quer eleger um militar com quem se bebe copos.»


A triste realidade dos factos

 


A política entregue ao TikTok

 


«O crescimento da extrema-direita por toda a Europa e o reforço de forças nacionalistas e pró-Rússia no Leste europeu justificavam um olhar particularmente atento à primeira volta das eleições presidenciais na Roménia, que decorreu no domingo. O resultado trouxe, contudo, preocupações muito mais fundas e que escaparam a qualquer sondagem ou previsão. Vindo do nada, o candidato independente ultranacionalista Calin Georgescu conseguiu a vitória na primeira volta. O segredo? Uma campanha agressiva no TikTok, onde foi detetada uma atividade anormal em milhares de contas falsas antes da ida às urnas.

Embora em teoria a publicidade política paga não seja permitida pelos termos e condições daquela rede social, essa regra foi “amplamente ineficaz”, como alertou o Observatório Búlgaro-Romeno de Media Digital. Em Bruxelas multiplicam-se declarações de eurodeputados exigindo que o CEO do TikTok seja ouvido e que se investigue o financiamento da campanha.

Praticamente desconhecido, admirador de Putin e de antigos fascistas romenos, Georgescu esteve praticamente ausente dos meios de comunicação tradicionais, mas terminou a campanha com 298 mil seguidores e milhões de visualizações. Alguns dos vídeos, ao estilo do popular e misógino influencer Andrew Tate, mostravam o candidato a montar a cavalo com roupas tradicionais romenas ou a dar golpes de judo em adversários.

Enquanto na Roménia prossegue a corrida para a segunda volta das presidenciais, com legislativas pelo meio, é urgente o apuramento do que se passou no TikTok e sobretudo que se leve cada vez mais a sério a discussão sobre as consequências da radicalização e da desinformação. Algoritmos de redes sociais e bots em massa podem ser quanto baste para fabricar políticos instantâneos.»


26.11.24

É peixe e é azul

 


Peixe de cristal azul turquesa, cerca de 1912.
René Lalique.


Daqui.

Sebastianismo e provincianismo

 

«O Chega explora as chagas sociais que muitos anos de democracia não resolveram. É verdade que, à custa da corrupção de muitos políticos, muitos sentem que este país tem leis terríveis, impostos brutais, desigualdades inaceitáveis. Mas não há comparação entre o Portugal de Salazar e o de hoje. Se é certo que é preciso dar condições de vida a quem nasceu e vive cá, também é justíssimo que os que vêm de fora e nos ajudam em diversos planos do quotidiano sejam protegidos por um regime democrático que só pode fortalecer-se na mesclagem das culturas. (…)

Se a solução para a democracia é acreditar em salvadores da pátria, sejam eles novos generais, empresários do deus-dinheiro ou histéricos políticos especializados na mentira, onde errámos? Resposta: na educação. Resultado: não será difícil adivinhar o óbvio: em eleições livres todos votarão num Sebastião qualquer, até porque é mais fácil haver quem decida por nós.»


26.11.1967 – As cheias de Lisboa

 


Na madrugada do dia 26 de Novembro de 1967, a região de Lisboa foi palco da ocorrência de fortes chuvadas que terão originado entre 500 e 700  mortos, milhares de desalojados e a destruição de inúmeras habitações. 

A imprensa da época noticia a tragédia, mas com as limitações impostas pela censura. Transcrevo alguns excertos.

«Lisboa mais abastada seguia para o cinema ou refastelava-se na poltrona caseira, assistindo ao famigerado folhetim 'Gente Nova' da RTP, à espera de mais uma aventura do 'Santo'. A Lisboa menos favorecida estava no café para a bica, ou ficara no bairro suburbano, julgando que o seu fim-de-semana iria ser igual aos outros. Quando o Roger Moore chegou aos receptores, já os tectos humildes começavam a meter água, as ruas pareciam rios, as praças, lagos; e os cinéfilos, bloqueados nos engarrafamentos de trânsito haviam esquecido o Éden ou o S. Jorge e pensavam na melhor maneira de voltar a casa.

Há doze horas que chovia. Os colectores não davam vazão à enxurrada e, logo que a maré do estuário onde eles despejam as águas que vão correndo pela cidade atingiu a sua altura máxima, já não se sabia onde acabava o Tejo e começava Lisboa.» (Flama, n.º 1030, Edição Extra, 1 de Dezembro de 1967, pág. 4)

«Como aconteceu? Como aconteceu? Repete-se a questão. Foi na madrugada de 25 para 26 de Novembro, de sábado para domingo. Chovia. É normal, no Inverno. Poderia ter sido uma chuva benéfica, capaz de abrir em frutos novos muitos campos. Mas não foi. Para muita gente (demasiada gente) ela foi a desgraça ou a morte. Ninguém sabe exactamente a que horas aconteceu a tragédia. Os ponteiros de muitos relógios agora parados indicam vários instantes precisos para diversas localidades. Duas e cinco aqui, uma e cinquenta e três acolá, três e treze noutro lugar. Poderá ter sido bastante mais cedo: pouco antes de terminar a festa que para milhões de espectadores ainda é a TV.» (Flama, n.º 1031, 18 de Dezembro de 1967, pág. 40-41)»



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Demasiada roupa

 


«Sabiam que para fabricar uma simples T-shirt de algodão são necessários 2700 litros de água doce, a quantidade média que uma pessoa bebe em dois anos? Ou que, em 2020, o consumo médio de têxteis por pessoa na UE exigia 400m2 de terreno, 391kg de matérias-primas e 9m3 de água, provocando uma pegada carbónica de 270kg?

Este é o avesso invisível da roupa que compramos, por vezes em excesso, em função daquilo a que se chama “moda rápida”. Se estivesse escrito na etiqueta, pensaríamos duas vezes antes de levar mais uma peça, apenas porque está em promoção, a qual provavelmente se soma a várias que já temos no armário.

Será que podemos melhorar a sustentabilidade do consumo de vestuário? Proteger o clima exige seguramente acordos internacionais e cimeiras, como a COP29, que terminou na semana passada, mas depende também de muitas mudanças nos comportamentos individuais de todos nós.

Há várias iniciativas que podem contribuir para esse efeito. Maior reciclagem, considerando que, atualmente, apenas 1% das roupas usadas são recicladas, ou novos modelos de modelos de negócio que facilitem a reutilização.

Essa mesma circularidade também pode ser promovida pela indústria têxtil, como acontece em Portugal com a Têxtil Manuel Gonçalves, para dar um exemplo concreto de uma empresa com uma política de sustentabilidade ambiciosa, inovadora e responsável. É notável o esforço que fazem para usar fio reciclado, aproveitar os desperdícios e até rastrear a origem do fio, uma espécie de fio inteligente, garantindo princípios éticos e de sustentabilidade ao longo da sua cadeia de abastecimento.

Na Europa, todos os anos, as pessoas consomem, em média, cerca de 26kg de produtos têxteis e deitam fora cerca de 11kg, o que justifica que a União Europeia tenha desenvolvido um Plano de Ação, em 2022, para a economia circular, com um conjunto de medidas para tornar os têxteis mais duráveis, reparáveis, reutilizáveis e recicláveis, procurando que a “moda rápida” fique fora de moda. Nesse plano, entre outros aspetos, é criado um passaporte digital para os produtos e previstas medidas em matéria de resíduos.

Outra iniciativa relevante da UE é a do rótulo ecológico que pode ser usado pelos produtores europeus em produtos que respeitam os critérios de sustentabilidade. Esse rótulo dará aos consumidores a garantia de que o produto preenche critérios ambientais rigorosos e devidamente certificados, e que não foi apenas pintado para parecer verde (o chamado greenwashing).

Contudo, a principal ajuda com que cada um de nós pode contribuir é mesmo reduzir o desperdício, evitando comprar demasiada roupa e usando a que temos por mais tempo.»

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Vasco Lourenço

 



25.11.24

Sempre nesta data

 




Porque será?

 


Em 2021, o PSD absteve-se, em 2024 votou a favor.

25 de Novembro: BE na AR

 


Novembro?

 


Falhada a revanche, em 1975, derrotados de abril e novembro tentam a revanche, em 2024

 


«Mário Soares não tem, ao contrário de Sá Carneiro, o seu nome numa grande praça ou infraestrutura. Não teve direito a uma estátua semelhante à erguida a Sá Carneiro. Estive no Largo do Rato (que se deveria chamar Largo Mário Soares) a ver passar o cortejo fúnebre e fiquei desolado. Na sua dimensão, esteve a léguas da homenagem que merecia – semelhante à que Álvaro Cunhal recebeu. Soares morreu desrespeitado por boa parte da direita. Basta-me reler a crónica que eu próprio escrevi, em sua defesa, no momento da sua morte, para perceber que ambiente se vivia.

E, no entanto, é o espaço político que mais o vilipendiou nos seus últimos anos de vida que mais o tem na boca, apresentando-se como herdeiro do seu legado contra um PS supostamente radicalizado. E isso tem acontecido, com especial empenho, a propósito das extemporâneas comemorações do 25 de novembro, no seu 49º aniversário. Como se a recusa da equivalência com o 25 de abril fosse a recusa da própria data.

Em 49 anos, PS e PSD nunca instituíram este tipo de celebração oficial. Da mesma forma, nunca houve festa popular em novembro. Como recorda o artigo de Vítor de Matos, que devem mesmo ler, foi Mário Soares que, como Presidente da República, pôs fim a uma cerimónia anual no RALIS, concentrando tudo no 25 de abril.

Não foi por serem contra o 25 de novembro que não o comemoram, mas porque, até ao crescimento da extrema-direita, se achava que a equiparação com o 25 de abril nada tinha a ver com a defesa da democracia, mas com a agenda dos derrotados de abril e até, como explica Vasco Lourenço, um dos principais atores e atores de novembro, de parte dos derrotados de novembro.

Não é a resistência a este modelo de comemorações que rompe com qualquer tradição, é a direita que resolve usar o 25 de novembro para, no 50º aniversario de abril (e não do 25 de novembro), criar uma equiparação simbólica até hoje consensualmente recusada. E fá-lo como resposta ao crescimento de uma força política abertamente contrária do 25 de abril e claramente derrotada nos dias depois do 25 de novembro.

Ramalho Eanes disse, em 2015 (nos 40 anos da data): "O 25 de Novembro foi um momento fraturante e eu entendo que não devemos comemorar. Os momentos fraturantes não se comemoram, recordam-se e recordam-se apenas para refletir sobre eles. No caso do 25 de Novembro, devíamos refletir porque é nós, portugueses, com séculos e séculos de história, com uma unidade nacional feita de uma cultura distintiva profunda, porque é que nós chegámos àquela situação, porque é que chegámos à beira da guerra civil.” Eanes percebia que qualquer tentativa de equiparação com o 25 de abril apoucando a data que une quase todo o país e reabria feridas que estavam cicatrizadas. E que foram resolvidas pelos próprios autores do 25 de novembro.

Mais uma vez, como se vê pela a presença de Eanes nas comemorações que há dez anos recusava, a mudança não é dos que sempre fizeram a leitura que ele fazia em 2015, mas de um ambiente político determinado pelo crescimento do Chega, a que ninguém parece conseguir resistir. Não se celebra o 25 de novembro como não se celebra o 28 setembro e o 11 de março, quando aventuras da direita foram travadas, assim com as da esquerda o foram em novembro. Porque se considera que o 25 abril faz síntese. Não apenas o 25 de abril de 1974, quando a ditadura foi derrubada e conquistámos a liberdade. Mas o de 1975, quando o povo elegeu a assembleia que viria a escrever e aprovar a Constituição da República Portuguesa. E o de 1976, quando se confirmou, através das primeiras eleições legislativas, a democracia representativa prometida a 25 de abril e defendida em novembro.

VENCEDORES E VENCIDOS

Como bem tinha percebido Ramalho Eanes e Vasco Lourenço continua a dizer, é o 25 de abril que une. Na entrevista que fiz, Lourenço, que foi, simultaneamente, causa próxima da sublevação dos paraquedistas, por ter substituído Otelo no comando da Região Militar de Lisboa, e comandante militar do 25 de novembro, tendo como adjunto Ramalho Eanes, diz que os únicos vitoriosos claros do golpe ou contragolpe foram os chamados moderados, do grupo dos nove de que ele era líder militar e Melo Antunes líder político.

Foi derrotado o PCP, que acaba por recuar no próprio dia, confirmando a perda de controlo político da situação e evitando uma guerra civi. Mas Vasco Lourenço até o considera um “vencido vencedor,” porque consegue garantir os mínimos, mantendo-se ativo, legal e até presente no VI governo provisório. Até se livra da concorrência da extrema-esquerda.

É derrotada a extrema-esquerda, que , liderada por Otelo, levava a revolução para um processo vanguardista cada vez mais isolado da maior vontade popular. Utilizando uma expressão de Melo Antunes, no próprio dia 25 de novembro, o golpe “foi um abcesso que rebentou e era inevitável que tivesse rebentado”.

E são derrotados os setores da direita e da extrema-direita, liderados por homens como Jaime Neves, que, apesar de associados ao 25 de novembro, desejavam a ilegalização do PCP, o fim do pluralismo partidário e a interrupção do processo que levou à aprovacao de uma Constituição progressista. Vasco Lourenço diz que desejavam impor uma deitadura e um “novo 28 de maio”.

Lourenço disse, a 27 de novembro, a partir do Palácio de Belém, de onde comandara as operações: “Tal como no 11 de março, quando foi necessário travar uma escalada de um extremismo de esquerda, nos dias seguintes – foi mais difícil escalar travar essa escalada do que fazer frente ao ataque que o RALIS sofreu na altura –; neste momento, com a situação militar praticamente resolvida, temos a noção perfeita que as forças de direita estão a pretender aproveitar-se desta situação criada para deitar as garras de fora e tentarem que o processo descaia rapidamente para a direita. Posso garantir que estamos decididos a defender o espírito que nos levou a fazer o 25 de abril, transplantado para o programa do MFA.”

Dois dias antes, também no Palácio de Belém, Melo Antunes apontava para a vitória de um “projeto viável de esquerda”, falando de um corte definitivo com o capitalismo (o anacronismo destas comemorações ignora o que eram os equilíbrios ideológicos de então) ou de retorno a formas de organização autoritária.

A derrota de quem pretendia a vingança ficou clara quando Melo Antunes, o militar que esteve sempre do lado certo,sendo ideólogo do 25 de abril e do 25 de novembro, disse: “A participação do PCP na construção do socialismo [sim, os autores do 25 de novembro falavam de socialismo] é indispensável”. São os descendentes dos que o desejavam ilegalizar que, enganando a memória, puxaram o PSD para uma comemoração anacrónica, voltando a tentar transformar, 49 anos depois, o 25 de novembro no que ele não foi.

25 DE NOVEMBRO, MODO DE USAR

Como sempre acontece na instrumentalização política da histórica, os objetivos têm mais a ver com o presente do que com o passado. Parte da direita sempre teve uma relação complexada com o 25 de abril. Queixa-se dos que se acham donos da data, mas raras foram as vezes que não exibiu desconforto com ela e com os seus símbolos (ainda hoje, a maioria dos deputados de direita tem dificuldade em usar o cravo na celebração oficial). E procura, noutras datas, um papel que, por contingências históricas, não teve na revolução democratizadora.

Mas é mais do que isso. Ao querer equiparar uma ditadura de meio século com meses conturbados e contraditórios, quer-se equiparar o PCP ao Estado Novo, podendo, assim, normalizar a extrema-direita, da mesma forma que o PCP foi normalizado, para que, num futuro próximo, também possa contar para maiorias governativas. O querem dizer é o que Melo Antunes disse no 25 de novembro, mas em sentido contrário.

A pressa em, nos 49 anos do 25 de novembro, impor, sem o consenso que seria desejável, uma sessão solene anual, resulta do desconforto com o poder simbólico popular demonstrado na comemoração do 50º aniversário do 25 de abril, que juntou, em Lisboa, a maior manifestação desde o 1º maio 1974. Se assim não fosse, esperava-se por 2025 para este momento. A pressa denuncia o objetivo. Assim como a ausência de qualquer celebração do 11 de março e 28 de setembro denuncia o caráter divisivo e de fação desta celebração, que desvaloriza as ameaças contra a democracia que, naquele período, vieram da direita.

Esta não é a celebração da democracia, é a celebração de uma fação específica que participou no 25 de novembro. O olhar daqueles que Vasco Lourenço e Melo Antunes derrotaram, nos dias seguintes ao contragolpe. E essa é a ironia desta celebração: ela quer, 49 anos depois da tentativa de revanche política ter falhado, fazer a revanche simbólica. É promovida pelos que queriam que o 25 de novembro fosse outra coisa. Por isso têm Jaime Neves, que queria a ilegalização do PCP, e não o grupo dos nove, como símbolo. Esta é, nisso Vasco Lourenço não podia ter mais razão, a celebração de parte dos derrotados de novembro.

À vingança histórica do Chega e do CDS, derrotados de abril, março, setembro e novembro, juntam-se as guerras culturais de uma IL em crise de utilidade desde que Luís Montenegro venceu as eleições. E a uma cedência quase permanente do PSD a estas agendas. Aquilo a que assistimos hoje é, antes de tudo, a uma infantilidade política, sem qualquer ligação com a relação popular com estas datas. Uma tentativa reabrir feridas que os autores do 25 de novembro souberam sarar.

Não é por acaso que um dos principais autores e atores do 25 de novembro, seu líder militar, não estará presente na Assembleia da República. Como já defendeu Eanes, o 25 de novembro evoca-se e recorda-se, sem vergonha nem complexos. As celebrações máximas reservam-se para a data fundadora, que sintetiza o apego popular à democracia: o 25 de abril, nascido em 1974, confirmado na constituinte de 75 que levaria à aprovação da Constituição e consumado nas eleições legislativas de 1976. O resto, são trincheiras culturais de quem procura resolver no presente a falta de passado, fazendo-nos perder tempo para as batalhas do futuro.»


24.11.24

Rubi

 


Vaso de vidro de vermelho rubi, com duas pegas com encaixe metálico. Final do século XIX / início do XX.
Loetz, Boémia.

Daqui.

24.11.1906 – Rómulo de Carvalho / António Gedeão

 


Rómulo de Carvalho / António Gedeão foi um grande professor de Química, que os seus alunos do Liceu Pedro Nunes e do Liceu Camões nunca esqueceram, estudioso e grande divulgador da História da Ciência, razão pela qual se celebra hoje, data do seu nascimento, o Dia Nacional da Cultura Científica.

Também poeta, autor de numerosos livros e do texto que deu vida à inesquecível canção Pedra Filosofal. Um pretexto como qualquer outro para a ouvir de novo, com a beleza de sempre e oportuna, hoje como em 1969, quando Manuel Freire musicou o poema publicado em Movimento Perpétuo (1956).





Assim será?

 


A ética republicana não mora no Ministério da Saúde

 


«Com o inquérito da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) em curso às mortes associadas às falhas no INEM, do qual fez depender o seu futuro político, a ministra da Saúde passou esta inspeção-geral para a sua dependência direta.

A 8 de novembro, a IGAS abriu inquérito. Entretanto, o Ministério Público anunciou a abertura de sete inquéritos aos acontecimentos. Dia 11, a ministra retira às suas secretárias de Estado a tutela do INEM e da IGAS. Dia 12, no Parlamento, a ministra da Saúde omitiu decisão na audição parlamentar e sem qualquer explicação pública posterior.

É legítimo que se conclua que omitiu porque sabia que seria fortemente censurada por querer manter-se em funções até às conclusões de um inquérito de uma entidade que afinal tinha passado a tutelar diretamente na véspera! Se esta circunstância não pode consubstanciar um inaceitável conflito de interesse, então o que pode?!

Importa recordar que, horas depois de sair da audição no Parlamento, em visita ao instituto, a ministra anunciou que chamou a si a tutela do INEM, mas continuou a esconder que fez o mesmo à IGAS! No âmbito desta decisão, de objetiva desautorização das duas secretárias de Estado, referiu que o seu dia-a-dia passa a ser dedicado em “mais de 70% a resolver os problemas do INEM”. E que tipo de problemas quer a ministra resolver na IGAS que justificam passar esta entidade para a sua dependência direta durante um inquérito em curso, do qual fez depender o seu destino?

Há um padrão comportamental nas decisões da ministra da Saúde — expetativas elevadas (rapidamente frustradas), passar as culpas para patamares inferiores, demitir compulsivamente dirigentes e administradores, omitir e mentir. Foi assim com a demissão de Fernando Araújo, as medidas falhadas do Plano de Emergência, a crise no acesso às urgências no verão, o apagão da atividade do SNS no portal da transparência, a mentira sobre o concurso público dos helicópteros, a demissão do presidente do INEM e a negligência perante o previsível impacto das greves na emergência médica.

Lembramo-nos bem das declarações do Presidente da República que levaram à demissão de Marta Temido. Lembramo-nos bem da postura de Luís Montenegro que, na oposição, por muito menos, não esperou por conclusões dos inquéritos para pedir a demissão de ministros e secretários de Estado. O primeiro-ministro foi mais exigente com os outros do que é hoje com os governantes do seu próprio partido e, pelos vistos, consigo próprio. Decididamente, a ética republicana não mora no Ministério da Saúde.»