«Segundo o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) de 2023, o último existente, houve uma subida da criminalidade face a 2022. Mas 2022 foi a terceira mais baixa desde 2014, atrás de 2020 e 2021. Três anos em que a criminalidade foi regressando para valores próximos da pré-pandemia. Os números da criminalidade violenta não andam longe disto. Depende sempre dos rankings, mas, segundo o Global Peace Index de 2023, Portugal é o 7º país mais pacífico do mundo, tendo subido uma posição em relação ao ano anterior. À frente, só a Islândia, a Dinamarca, a Irlanda, Nova Zelândia, Áustria e Singapura.
Num dos países mais seguros do mundo, os números da criminalidade de 2023 estão longe de ser preocupantes, quando olhamos para a década. Mas instituiu-se que, havendo a perceção de que vivemos num país cada vez mais perigoso, quem não se comporte como se essa perceção fosse verdadeira, confirmando-a pela sua adequação ao sentimento geral, é um irresponsável. Está a enfiar a cabeça na areia. Deixa o tema para a extrema-direita.
Foi pensando assim que o governo avançou com a campanha "Portugal Sempre Seguro". Seis semanas de operações policiais, não determinadas pelos responsáveis pelo combate e prevenção do crime, não resultado de qualquer avaliação de segurança, mas decididas pelo governo, com critérios estritamente políticos, numa das mais graves instrumentalizações políticas das polícias da nossa história democrática. Objetivo: "aumentar o sentimento de segurança dos cidadãos". A perceção, portanto.
Claro que esta operação não contraria a perceção de insegurança que os números não confirmam, mas que horas de diretos da CMTV alimentam. Reforça essa perceção. Quando vemos megaoperações policiais na televisão não achamos que vivemos num país onde há pouco crime. Pelo contrário.
Ontem, Montenegro pôs a cereja em cima do bolo, montando um espetáculo mediático, com uma reunião com ministros e forças policiais seguida de uma comunicação ao País às 20h00, sem nenhuma razão que não fosse a de se pendurar, de forma explicita, em buscas e detenções de uma investigação em curso. Na mesma declaração, juntou a investigação aos tumultos (que, a bem da separação de poderes, não lhe dizem respeito), o anúncio dos resultados da operação “Portugal Sempre Seguro” (que cabe a quem dirige às forças de segurança anunciar), e medidas do governo, como se atos que cabem à justiça estivessem no mesmo saco que o programa do governo.
Nunca, que me recorde, um governo politizou desta forma uma investigação ou assumiu a direção e comunicação públicas de resultados de operações policiais. É uma situação inédita na democracia portuguesa que devia merecer uma intervenção do Presidente da República. É urgente voltar a separar as águas, explicando que o primeiro-ministro não é xerife. Imaginem o que se diria se André Ventura fizesse, num governo, uma coisas destas.
O CERCO AO IMIGRANTE
A percentagem de condenados estrangeiros é de 16,7% (e não de 20%, como diz Ventura). Em 2013, era 15,4%. Segundo o RASI, e apesar do número de imigrantes ter duplicado de 2014 a 2022, a relação entre reclusos estrangeiros e portugueses tem-se mantido estável no mesmo período. Não é possível, portanto, fazer qualquer associação entre imigração e criminalidade.
Também não faz sentido acreditar que a imigração ilegal tenha grandes dimensões quando o que se andou a dizer foi que, com “a porta escancarada” aos imigrantes (o ministro da Coesão já veio dizer que, mesmo assim, faltam imigrantes para cumprir o PRR) garantido pela “manifestação de interesse”, toda a gente entra e fica legal.
Diz-se que é irresponsável deixar a extrema-direita sozinha neste debate, em vez de tratar a imigração como natural e desejável. Claro que são precisos cuidados para que, como qualquer outro fenómeno, a imigração não se transforme num problema político e social. Até por sabermos que os fluxos migratórios tenderão, com as alterações climáticas, a aumentar. Mas isto não significar que se aceitam os termos securitários com que a extrema-direita trata o tema. E foi isso que o governo fez.
Para não ter o Chega sozinho no terreno, uma das operações mais espetaculares da campanha "Portugal Sempre Seguro" foi o cerco à praça e ao centro comercial Martim Moniz, em Lisboa, para fazer a caça ao ilegal. Mais uma vez, o objetivo foi “o reforço da perceção de segurança no país, contrariando as informações descontextualizadas que criam a sensação de insegurança às populações”. Foi detido um único imigrante ilegal. Imaginem o que seria fechar o El Corte Inglês ou o Centro Comercial das Amoreiras durante horas, com clientes, lojistas e funcionários lá dentro, para transmitir “uma perceção de segurança”. O que se diria?
Claro que esta operação não muda o clima político que se anda a criar num país que precisa de reter imigrantes, não de os expulsar. Um país cuja economia, segurança social e Estado Social desabariam sem os imigrantes. Entre a perceção e os factos, escolhe-se responder à perceção.
DESVALORIZAR O CRIME QUE MAIS MATA
A violência domestica é o crime com mais denúncias e que mais mata. De acordo com o RASI, houve 23, 28 e 22 vítimas mortais (16, 24 e 17 mulheres) em 2021, 2022 e 2023, respetivamente. As participações têm-se mantido estáveis, desde 2019, andando próximo dos 30 mil, com uma ligeira queda durante a pandemia. Mas os dados provisórios indicam que já houve mais vítimas mortais até 15 de novembro do que em 2023 inteiro.
O que disse o primeiro-ministro sobre isto? "Muita coisa saiu do armário onde estava escondida. Eu não quero chocar ninguém, mas tenho consciência de que o aumento a que assistimos em alguns anos não significa um aumento real, significa um aumento de conhecimento. Já foi muito pior, desse ponto de vista".
O que os números dizem é que, nos últimos anos, há uma relação entre queixas e vítimas mortais. Luís Montenegro não se baseia em nada a não ser na sua própria perceção. Um “achismo” que, curiosamente, vai no sentido exatamente inverso às perceções a que tem reagido e que tem alimentado quando está em causa a criminalidade geral ou a imigração.
MANDA A TÁTICA
Num dos países mais seguros do mundo, Montenegro confirma a perceção popular e mediática, lançando uma enorme operação policial para fins políticos, dando assim força a essa perceção. Perante a perceção politicamente alimentada, que associa imigração a insegurança, monta um cerco a uma praça e a um centro comercial, impondo um clima de estado de sítio com resultados pífios, mas contribuindo para a criminalização pública dos imigrantes. Perante o crime que mais mata em Portugal, faz o oposto: explica que a perceção é ilusória, desvalorizando os números que, neste caso, dão razão a essa perceção.
Não acho que Montenegro não se preocupe com a violência doméstica. Acho que nunca deixa de fazer cálculos partidários. Não na forma como lida com a violência doméstica, mas na forma como lida com a criminalidade geral e com a imigração. Está a pensar no Chega, que esse, sim, se está nas tintas para a violência que não seja cometida por uma minoria ou por imigrantes.
As prioridades do Chega, que determinam as prioridades de Montenegro, têm muito a ver com a forma como a nossa sociedade olha para a violência doméstica e a distingue da restante criminalidade. Ela acontece na família. Não é cometida por "bandidos", mas pelos nossos vizinhos, amigos, familiares, colegas. Se é verdade que há uma lenta mudança cultural, que os números de violência no namoro e aceitação que ela parece ter entre os jovens obrigam a relativizar, o mais relevante crime violento em Portugal continua a ter um estatuto à parte. Não é um crime dos outros. Tem pouco uso político para quem viva do ódio. E é quem vive do ódio que determina as perceções e, com elas, as políticas públicas.»
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