«1. Os líderes políticos parecem cada vez mais aqueles feirantes em cima de camiões a anunciar por determinado preço uma faca que depois dá direito a duas navalhas, três garfos, cinco colheres e por aí fora. Os portugueses ouvem-nos apresentar medidas no Parlamento sobre os impostos, sobre as Scut ou sobre as negociações laborais na função pública, puxam pela experiência e pela memória e avaliam-nos como merecem: como vendedores de banha-da-cobra. Com os assuntos do estado e as medidas para a governação levados para uma feira onde se grita muito e se compete para ver quem dá mais à clientela, o grau zero da política fica ao virar da esquina. Todos os partidos, com excepção do Chega, vão pagar caro esta atitude.
A força motriz desta forma de fazer política é a urgência em seduzir eleitorado no mais curto espaço de tempo possível. Com o Governo ancorado numa frágil base de apoio e com o PS a uma unha negra de o suplantar, uns e outros fazem tudo para brilhar muito e depressa. No limbo da incerteza, eles serão tudo o que queiramos que eles sejam: generosos a cortar nos impostos, majestosos a acabar com as portagens, empenhados em proteger os desvalidos do serviço público e tão sábios e inteligentes que conseguem fazer tudo sem desbaratar o equilíbrio financeiro.
Julgam que continuam a governar o país arcaico dos tempos do salazarismo ou da pré-adesão europeia. Ainda acreditam que os portugueses se deixam atrair por um prato de lentilhas. Que, depois da amargura da troika, não aprenderam a desconfiar dos que prometem tudo a todos. Que, ao agirem como agem, deixaram de ser os que nos representam para cuidar dos negócios do país, para se representarem a eles próprios e aos negócios dos seus partidos. Como necrófagos, nada constroem para o futuro, limitam-se a gerir a putrefacção no parlamento e a levá-la perto do Governo.
Na campanha eleitoral foi fácil perceber que os partidos, da esquerda radical à direita extremista, esfregavam as mãos no excedente orçamental e permitiam-se fazer promessas a eito. No caso do PSD, suspeitava-se de que a demagogia populista das suas previsões acabasse no dia em que o ministro das Finanças fizesse as contas, o que, de resto, acabou por acontecer. O partido que tanto prometeu antes de chegar ao Governo está agora às arrecuas, enquanto os socialistas que tanto criticaram os seus desvarios decidem avançar ainda mais depressa. Não fora o Chega, e o PS teria já aprovado o fim das cobranças das Scut, que podem custar ao Estado aí uns mil milhões de euros. Até haver um tabefe de Bruxelas, a vilanagem não se farta.
Se Montenegro dá X, a oposição avança com X mais Y. O Governo tenta alargar a sua base política de apoio com promessas, e a oposição, com destaque para o PS, não deixa, tentando provar que essas promessas pecam por escassas. Se há uma ténue possibilidade de o Governo passar uma lei que, por exemplo, baixa os impostos, logo vai a oposição a correr travá-la para depois levar a votos uma proposta ainda mais simpática para os eleitores. Na cacofonia da Assembleia, apagaram-se os últimos vestígios da razão. Não se sabe onde começa o Governo e acaba a oposição, e vice-versa. A preocupação com o interesse do país e das pessoas não cabe neste festim.
O parlamento caminha para uma bolha de irresponsáveis. Bem se esforçam por propagar valores, princípios ou ideologias em nome do interesse nacional, mas bastaram poucas semanas para se perceber que toda essa encenação é pura hipocrisia. Tratar da Justiça ou da economia, tem tempo. O que importa é a distribuição do bodo aos pobres, à espera que os pobres retribuam em breve com o voto. Todos querem estar na primeira fila. O parlamento está a deixar de ser o lugar da política para dar lugar ao palco da hipocrisia e do cinismo. Nas últimas semanas, percebemos que dali sairão talvez medidas ditas populares, mas não medidas necessárias.
O que espanta é a persistência da ideia segundo a qual o sucesso na política se decide neste jogo do quem dá mais. Talvez esses atributos funcionassem se houvesse um pequeno espaço para a concertação e o compromisso. Não havendo, esses gestos tácticos transformam-se de imediato em ruído que serve apenas para alimentar o “eles só estão lá para se governar”, o “são todos iguais”, ou o “querem lá eles saber do país”. Nós sabemos quem se alimenta da lama que esta democracia exaltada e inconsequente produz: exacto, esses mesmos.
2. CAgora que, mais do que nunca, faz falta serenidade, bom senso, prudência e calculismo, o Presidente insiste em exponenciar a sua propensão para ser desabrido, causar ruído e deixar no país a sensação crescente de que estamos entregues à confusão e à imprevisibilidade.
Já muito se escreveu sobre as infelizes declarações do Presidente aos correspondentes da imprensa estrangeira em Portugal. O que mais preocupa no que disse e na forma como o disse não é a imprudência ou ausência total de oportunidade: é a manifesta falta de sentido de Estado. O Presidente agiu com a imponderação que as dores de cabeça ou as indigestões por vezes provocam no comum dos mortais. Só que, no exercício das suas funções, ele não tem o direito a estados de alma que tanto levam ao devaneio como ao erro crasso.
Falar de erros ou crimes do colonialismo em abstracto para exigir que se “paguem custos” ou se punam responsáveis é muito mais do que reconhecer esses crimes e pedir desculpas pela sua ocorrência. A maioria dos portugueses do século XXI já deu conta de que a sua história ultramarina está longe de ser domínio da glória exclusiva, que há por lá capítulos negros, escritos com abusos e crimes. Mas uma coisa é reconhecer o lado negro da memória e inscrevê-lo na forma como o país encara o passado. Outra, muito diferente, é conceder-lhe um valor material que exige reparações. Ao ir por este caminho sem falar com o Governo, que nestas matérias é quem decide, Marcelo abusou. Tratou de veicular a sua opinião como se fosse a opinião dos portugueses.
Marcelo Rebelo de Sousa está onde gosta de estar: no centro da vida política. Depois de dizer o que disse, porém, está lá em corpo. O seu espírito, esse parece andar por aí a pairar, longe do terrível drama da instabilidade política que se agrava a cada dia que passa.»
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