29.4.24

Não será fácil murchar este cravo

 


«Pela data redonda, esperava que o desfile do 25 de abril fosse o maior de sempre. Mas não esperava que fosse, provavelmente, a maior manifestação desde o 1º de maio de 1974. Maior do que qualquer protesto. Seria bom, aliás, que o jornalismo, que tantas vezes repete números absurdos das organizações, usasse os instrumentos que a tecnologia já oferece para saber quantas pessoas estiveram na avenida.

A razão da enchente impressionante parece-me óbvia: 50 anos depois, os inimigos mais frontais do 25 de abril elegeram 50 deputados. O desconforto de parte da direita democrática com a data, por nela ter tido um papel secundário (até a travagem do PREC foi liderada pelo centro-esquerda, tornando possível uma rápida reconciliação), não é uma novidade. É evidente na relação com os símbolos da revolução ou na tentativa de lhe acrescentar sempre um “mas”.

Primeiro tentaram vender a ideia da “evolução”, diminuindo o papel fundador de abril, que poderia ter sido substituído pela falhada primavera marcelista. Que teria sido melhor que, em Portugal, tivesse acontecido a morna transição espanhola. Como não resultou, tenta-se equiparar o 25 de novembro, a travagem de um processo que se estava a descontrolar, ao 25 de abril. Curiosamente, não são os principais autores do golpe de novembro a fazê-lo, mas os que desejavam que aquela data iniciasse uma revanche contra a esquerda. Ou seja, os que também foram derrotados nesse dia.

Com o aparecimento do Chega, o saudosismo perdeu a vergonha. A extrema-direita cresceu muito e é possível que vá crescer mais, como aconteceu no resto da Europa. O populismo cresce. A cedência aos apetites autoritários também. Mas o susto é tal que tendemos a ignorar que nós, os que amam abril, somos a larga maioria do país. Não estou a falar apenas dos democratas. Estou a falar dos que se reveem no processo revolucionário, mesmo que reconheçam os seus erros inevitáveis. Como se viu na quinta-feira, a memória da mais bela revolução do século XX é uma arma poderosa contra isso.

A força simbólica de abril não está apenas associada às indispensáveis liberdades políticas – o voto e a liberdade de expressão, de manifestação e de imprensa –, mas à descolonização e a um conjunto impressionante de conquistas sociais. O facto de a nossa democratização não ter resultado de uma transição tutelada pela elite que sustentou a ditadura, como aconteceu em Espanha, mas de um processo revolucionário que deu a cada conquista a força de não ter sido oferecida, garantiu, à nossa democracia, uma natureza única.

Somos uma democracia mais sólida do que a espanhola. Com menos traços autoritários, E não é apenas por causa da guerra civil, das nacionalidades ou do terrorismo. É por causa da revolução e da força popular de abril. É por isso que resisto a uma excessiva institucionalização da data, que a enfie nos corredores alcatifados do poder.

Graças à coragem dos capitães e à cobardia dos generais, o 25 de abril foi um golpe de baixa patente. E isso ajudou a que fosse tomado pelo povo ao fim de poucos dias, transformando-se numa revolução. As comemorações fazem-se com uma manifestação anual onde confluem protestos atuais, celebrando o seu espírito subversivo e popular. “25 de abril sempre”, que Jorge Sampaio fixou na memória coletiva, é muito mais do que um desejo. É o apelo que nos fará sair à rua sempre que a minoria do ódio mostrar os dentes.

O atraso histórico de um país pequeno, pobre e periférico, que segurou demasiado tempo um Império, somado a meio século de uma ditadura provinciana e conservadora, deixou um legado difícil de ultrapassar. Mas, mesmo em comparação com tantas democracias na Europa, a nossa tem uma força especial: não nos foi oferecida. Foi conquistada por militares vindos do povo e por um povo que não queria apenas o voto e a palavra, queria a paz e a dignidade, sair da guerra e sair do bairro de lata.

Na última quinta-feira, mostrámos que somos uma ruidosa maioria que não ficará calada perante a fanfarronice saudosista. Os nossos pais ensinaram-nos a beleza de abril. Nós ensinamos aos nossos filhos. Eles ensinarão aos nossos netos. Não será fácil murchar este cravo.»

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1 comments:

Manuel M Pinto disse...


"25 de Abril, Sempre"

https://otempodascerejas2.blogspot.com/2012/10/nao-tem-importancia-nenhuma-mas-aqui.html