«Caro leitor, cara leitora:
A concretizar-se, a sondagem do Instituto de Ciências Sociais (ICS) para a SIC/Expresso sobre as presidenciais, revelada nesta quinta-feira, significaria a implosão do sistema em Portugal, tal como até agora o conhecíamos. Há ainda 22% de indecisos, é certo. É uma sondagem realizada antes de os debates começarem. É, enfim, só uma sondagem, como se costuma dizer.
Mas os indicadores desta sondagem reflectem, mais do que nenhuma antes dela, a decadência da esquerda em Portugal. No topo da sondagem está André Ventura (que veio para implodir o sistema e está a conseguir), Gouveia e Melo (que vem de fora do sistema partidário e é muito crítico dos presidentes filiados em partidos) e Marques Mendes, o único que tem uma longa carreira política tradicional, como todos os seus antecessores, Marcelo, Cavaco, Sampaio e Soares.
E, no entanto, a percentagem de Marques Mendes está muito longe do que a AD obteve nas recentes legislativas: apenas 16% sem distribuição de indecisos, 23% com distribuição.
António José Seguro tem apenas 10%, percentagem que sobe para 14% com indecisos. Este número, que fica igualmente muito além do que o PS conseguiu nas legislativas, é um choque para os apoiantes de Seguro. A confirmar-se a sondagem, Seguro fica mesmo de fora de uma segunda volta.
E aqui reside a mudança decisiva que esta sondagem convoca: o risco da extinção da esquerda. O estudo não incluiu ainda Jorge Pinto, do Livre. Mas os outros candidatos da esquerda esfrangalhada e mínima são António Filipe (que tem 2%) e Catarina Martins (com 1%).
Sem distribuição de indecisos, a esquerda vale hoje 13% (ainda falta Jorge Pinto, mas é duvidoso que a percentagem que venha a atingir seja suficiente para alegrar a esquerda no seu todo).
Seria talvez o corte epistemológico mais grave na democracia portuguesa dos últimos anos. É verdade que foram oito anos de governos PS. É sabido que o Bloco de Esquerda e o PCP estiveram comprometidos com os primeiros cinco anos e, apesar dos ganhos obtidos nesse tempo, houve muitas coisas em que a geringonça falhou, como assinalou no PÚBLICO Pedro Nuno Santos esta semana.
Segundo esta sondagem, António José Seguro claramente não terá conseguido atingir os seus objectivos dentro do eleitorado base do PS. Os dez anos de afastamento não serviram para reconciliar o antigo líder do PS com o seu eleitorado. Nas últimas eleições a que Seguro concorreu, as europeias de 2014, o PS foi o partido mais votado, com 31%.
Eram tempos em que, como aconteceu nessas eleições para o Parlamento Europeu, a CDU conseguia mais de 12% dos votos. Todos esses votos, nesta sondagem, ou estão com Gouveia e Melo ou com André Ventura, duas personagens políticas que não existiam em 2014. Na melhor das hipóteses, estão no grupo dos "indecisos".
Estou a incluir o Gouveia e Melo na "direita" porque é o próprio que rejeita ser rotulado como sendo de "esquerda", embora já tenha uma vez afirmado ser partidário da social-democracia.
A maioria das vezes, Gouveia e Melo diz que é do "centro pragmático". Esta semana afirmou que já não faz sentido "a divisão esquerda/direita". Mas raramente esta frase é pronunciada por alguém de esquerda. E se alguém nos diz que é ou não é alguma coisa, tendencialmente devemos acreditar.
Com Seguro praticamente arredado da segunda volta (é só uma sondagem, sim), falta saber se também Marques Mendes fica de fora. Se isso acontecer, viveremos neste país uma espécie de momento francês: é preciso escolher entre um líder de extrema-direita e um cidadão que apresenta como currículo principal estar acima dos partidos. Macron, pelo menos, conseguiu montar lá o partido dele. Para lá de uma evidente crise da esquerda, estaríamos perante a mais completa crise do regime nascido depois do 25 de Abril.
E o que se faz?
Ninguém tem uma bola de cristal capaz de descobrir soluções fáceis para a emergência dos populismos e a crise da social-democracia que atravessam toda a Europa e os Estados Unidos. Até na Dinamarca, país onde a social-democracia sobrevivia com uma política de imigração hiper-restritiva, os socialistas estão a recuar: nas autárquicas desta semana o partido de Mette Frederiksen teve apenas 23%, menos 5% do que nas legislativas.
Ao fim de 100 anos, os socialistas perderam a câmara de Copenhaga, obtendo apenas 12,7% dos votos. É verdade que após 100 anos é natural haver rotatividade no poder, mas se a Dinamarca era um dos raros exemplos que os socialistas europeus tinham para apresentar, também já está em queda.
No meio disto, o PS acabou de viabilizar o Orçamento do Estado, deixando o Chega satisfeito no seu lugar de líder da oposição. Era possível fazer outra coisa? De início, José Luís Carneiro disse logo que não. Depois, disse que se houvesse coisas muito importantes no Orçamento – como as leis laborais – não viabilizaria. O Governo vai aprovar o que é de importante com o Chega (as leis laborais, como já fez com a lei da nacionalidade) e o PS sujeita-se ao papel de "jarra" de notário dos orçamentos do Governo. Resta saber quais serão as consequências desta estratégia. A repetir-se, aumentará o risco da extinção da esquerda.
E depois de todos estes tormentos, no fim, o PS ainda é insultado pelo primeiro-ministro, por – ó horror! – ter apresentado propostas que foram aprovadas pela maioria parlamentar. Não é que não haja dinheiro para elas, como acentuou Montenegro, o problema é que o PS não respeitou o mandamento "o Governo é que manda".
O sonho do primeiro-ministro é que o Orçamento seja um mero decreto do Governo, mas tem azar: a Constituição diz o contrário. Mas pode-se sempre mudar a Constituição e a direita já tem os dois terços necessários.
Até para a semana.»
Ana Sá Lopes
Newsletter do Público, 27.11.2025