«“Historicamente, os eventos passados em 25 de Novembro de 1975 (…) serão os mais importantes e decisivos em Portugal desde 28 de Maio de 1926.”
Do livro colectivo 50 Vezes 25 de Novembro
A frase que cito faz parte de um dos textos do livro 50 Vezes 25 de Novembro, com prefácio de Pedro Passos Coelho e a participação de 31 autores, na sua maioria de extrema-direita, muitos do Chega, candidatos autárquicos, membros do “governo-sombra”, do ADN, da ala passista do PSD e da multidão de “repetidores”, nas redes sociais, em podcasts e na academia, das posições do Chega. Se há extrema-direita e direita radical em Portugal ela está representada neste livro, cujo lançamento ocorreu no dia 25 de Novembro e que, penso, ainda não está disponível. À data em que escrevo este texto ainda não o pude comprar nas livrarias, o que obviamente farei. No entanto, há já na rede abundante informação, entrevistas e vários textos do livro publicados no Observador para se poder ter uma ideia do seu conteúdo. Todos são muito significativos dos esforços para usar o falseamento da história para legitimar a direita radical e tornar o 25 de Novembro, na sua interpretação, como “o farol ideológico do sistema político que sucederia ao Estado Novo”.
Há dois aspectos preliminares que são relevantes: um é a desvalorização e, nalguns casos, a diabolização do 25 de Abril — como se vê na citação, que passa de 1926, a data do golpe militar que abriu caminho a 48 anos de ditadura, ao 25 de Novembro —, e outro a dança das palavras simpáticas e moles para caracterizar entre o positivo e o neutro essa mesma ditadura. O resto é uma tentativa de legitimar a força da direita radical no presente dando-lhe uma “história” falsa e uma memória manipulada para, olhando para o passado, terem alguma coisa de aceitável para lembrar.
De facto, um dos problemas da direita radical em Portugal é que toda a sua história no século XX é maldita e, com excepção de alguma extrema-direita, impossível de valorizar. Ora, qualquer movimento político precisa de ter datas legitimadoras para não aparecer sem história, o que é sempre uma fragilidade. Na história portuguesa, o que é que vão lembrar? Os 48 anos de ditadura — palavra de que fogem como o Diabo da cruz —, Salazar, Caetano, a PIDE, a guerra colonial com o seu cortejo de violência, as prisões políticas, a repressão de trabalhadores e camponeses, a expulsão de professores das universidades, a cumplicidade com o regime do apartheid, o país que colocou a bandeira a meia haste quando morreu Hitler, o país pobre, o país do pé descalço, de onde se emigrava para escapar à miséria, analfabeto, com taxas de mortalidade infantil “africanas”, o país em que as mulheres eram gente de segunda, o país da censura que durou sem um dia de liberdade até à manhã do 25 de Abril, o país que assassinou Delgado para Salazar mentir — sabendo do que se tinha passado —, insinuando que tinham sido os seus “amigos” que o tinham matado, o país da corrupção — sim, o Chega mente quando sugere que não havia corrupção antes da democracia, simplesmente os “desfalques” da elite eram cortados pela censura —, o país da tortura, por aí adiante. Muito adiante, e é significativo dos dias de hoje que seja preciso lembrar estas evidências.
Claro que há uma escola revisionista desta história, que molda o Portugal dos 48 anos ao dito fascista em que se afirma que “Mussolini era um ditador, mas fez com que os comboios chegassem a horas”, como se a liberdade não fosse o valor primeiro que, no 25 de Abril, mudou tudo com a sua força. Vejam-se as fotografias dos primeiros momentos, a cara das pessoas, entre a alegria dos mais novos e a gravitas e alívio dos mais velhos. E é por isso que encontrar alguma coisa legitimadora, alguma data “boa”, é muito difícil para a direita radical.
A “história” falsa do 25 de Novembro assenta em omissões deliberadas, do 11 de Março, da contra-revolução a norte de Rio Maior, dos atentados, incêndios e assassínios que mataram mais gente do que o dia 25 de Novembro, do papel de partidos como o PCP, do contexto internacional da Conferência de Helsínquia. É esse o papel da “história” falsa do 25 de Novembro, o tal “farol” que só se acende com a manipulação, o esquecimento deliberado e o apagar daqueles que justificariam comemorar o verdadeiro 25 de Novembro.
Como fazia Staline, apagou-se o papel de Costa Gomes, que nem sequer o PS, como todos os outros, trouxe à sessão no Parlamento. Apagou-se ou secundarizou-se Mário Soares no plano civil e muitos outros dirigentes do PS que deram o corpo às balas como a direita da época nunca deu, ou o Grupo dos Nove, Melo Antunes, Vasco Lourenço, Sousa e Castro e Ramalho Eanes, cujo papel tem sido menorizado para valorizar um seu comandado, Jaime Neves, que também deve estar nesta lista.
No entanto, tenho uma sugestão construtiva aos autores deste livro: no dia 25 de Abril, centenas de milhares de pessoas saem à rua para o comemorar. Por que razão se fez uma parada militar e não uma manifestação, apelando aos portugueses para apoiarem a vossa visão do “farol” do 25 de Novembro? Não é por falta de meios, órgãos de comunicação social, autocarros, influencers e bots do Chega nas redes sociais para colocarem centenas de milhares de pessoas na rua. A não ser que só faltem os portugueses.»

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