27.7.24

Não temos cá disto (5)

 


Numa igreja, algures na Geórgia, 2012.

Perplexidade. Para além do proibicionismo militante, só uma coisa é certa: nem mulheres nem homens podem entrar de calções na igreja. Já quanto ao resto, nada impede os homens de envergarem uns mini-vestidos, tops de alças ou calças compridas, nem as mulheres de levarem revólveres, fumarem um cigarrito ou falarem ao telemóvel. É mais ou menos isto, não é?

Finalmente, há 54 anos

 



O velho foi à viola



Salazar morreu em 27.07.1970 e eu não encontro melhor maneira de assinalar a data do que repescar um texto que Diana Andringa escreveu há uns anos, no qual descreve como este dia foi vivido por ela na prisão de Caxias.

«Segunda-feira, 27 de Julho de 1970. Um inusitado toque de clarim interrompe a rotina matinal na prisão de Caxias.

Um toque diferente, desconhecido, num tom lamentoso que não lhe conhecíamos.

Numa cadeia, ganham-se mil ouvidos: habituamo-nos aos sons ciciados da chegada de um novo preso, ao esforço de distinguir qual a cela onde o colocam (da parte da frente, com o rio ao longe? Da de trás, tendo como única visão o muro e as pernas do guarda republicano andando nele?), à frase «Prepare-se para ir à António Maria Cardoso», que pode significar, para aquele a quem é dita, uma sessão de tortura, seja a pancada, o sono ou a estátua, o seu regresso («Quantas horas passou em interrogatórios? Quantas noites?»), à tosse que anuncia esse regresso, ao assobio longínquo de um camarada, identificando-se com uma canção comum (no nosso caso, uma coladera), até às crises de asma de alguém que necessita socorro, numa cela próxima. Então, um toque de clarim, a uma hora inabitual, desperta de imediato a atenção e a ansiedade.

Lá em baixo, na guarita, o jovem guarda republicano olha, também ele, o lado de onde o som surgiu. «Que toque é este?», perguntamos-lhe, gritando. Olha-nos e encolhe os ombros. Não como quem não quer responder à pergunta gritada por aqueles que tem o dever de guardar, mas como quem não sabe. E ouvimo-lo repetir a pergunta para a guarita seguinte: «“Que toque é este?» Do outro lado chega uma resposta, para nós inaudível. Mas o jovem ouve-a e repete-a para nós: «“É o toque dos mortos!» Para que, numa cadeia, toque o clarim por alguém que morreu, é que esse alguém é pessoa de importância. E a ansiedade e a curiosidade crescem. Gritamos, de novo, para o guarda: «E quem é que morreu?»

Tal como da primeira vez, ele repete, para a guarita seguinte, a nossa pergunta. E tal como da primeira vez, a resposta escapa-nos. Mas – tal como da primeira vez – o jovem que nos guarda logo no-la repete: «Foi o velho! O velho foi à viola!»

Não houve necessidade de perguntar mais nada. O «velho» com direito a clarim só podia ser um: Salazar. E logo nos abraçámos a rir, enquanto ouvíamos, vindos de outras celas, gritos de regozijo. Que a morte, tantas vezes desejada, do ditador, nos fosse anunciada pelo jovem que devia guardar-nos aumentava a ironia da notícia.

A cadeia explodiu em gritos, risos, murros nas paredes, comunicando de cela em cela, na velha caligrafia prisional – «Um toque é “a”, dois são “b”, três “c” e por aí adiante…» – a morte do antigo Presidente do Conselho.

Os mais lúcidos lembraram que já havia outro, Marcelo Caetano. Mas, nesse dia, a alegria prevaleceu. Mesmo quando a visita foi cancelada, mesmo quando nos cortaram os minutos de música diária, porque «o país está de luto». «De luto?», respondemos nós. «O vosso talvez esteja, o nosso país está em festa!»

E, desafinadas ou não, ergueram-se as vozes dos presos e ouviram-se pela Cadeia, nesses minutos sem música, canções de resistência.»

Diana Andringa

(Publicado no nº 26 da colecção Os anos de Salazar/ O que se contava e o que se ocultava durante o Estado Novo, coordenada por António Simões do Paço.)
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Porque é que na “geração mais preparada de sempre” a ignorância cresce

 


«Este é o tipo de artigos em que já se sabe de antemão as críticas, mais “bocas” do que críticas, que vai receber. Passadista, “velho do Restelo”, velho tout court, arrogante, reaccionário, antiquado, com incompreensão do que é a “nova” geração e as mudanças culturais em curso, com uma visão ultrapassada do que são as novas “competências”, não compreendendo os novos “saberes”, preso a um mundo que já acabou e a um elitismo sem sentido numa sociedade muito mais igualitária, em que os “saberes” do passado são inúteis. Muito bem, é tudo isto, mas, mesmo assim, reafirmo que o mundo cultural circulante nos dias de hoje é particularmente pobre, é pobre de referências, é pobre de “histórias”, é pobre de vocabulário, e alimenta uma ignorância agressiva, em particular nas redes sociais, e isso é péssimo para a democracia. Ainda mais, é um mundo que pela sua fragilidade cultural é particularmente sensível às modas, sem qualquer distanciação e consistência.

Tenho consciência de que este tipo de catastrofismo cultural, ainda por cima com uma componente geracional, é recorrente na história, tem características comuns que se repetem e tem-se revelado muitas vezes errado. É cíclico nas suas lamentações dos “velhos” para as gerações mais novas, mas se há coisa que a história também revela é que, às vezes, existe mesmo decadência. É um pouco aborrecido estar com estes caveats todos – aqui está uma palavra em desuso –, mas a ascensão da ignorância agressiva e o ataque ao saber são perigosos para a democracia e liberdade. Decadência é outra palavra maldita. 250 palavras gastas com prevenções.

Aqui há alguns anos eu dei aulas partilhadas com Jaime Gama sobre “relações internacionais” no ensino superior. Nos dias de exames, verifiquei que muitos alunos corriam à secretaria para obter um adiamento, “porque fazia muitas perguntas difíceis”. Tentei perceber quais eram as “perguntas difíceis” e de onde vinha o medo. Consegui identificar a origem num exame em que o tema que o aluno estava a expor eram os eventos da Revolta Húngara de 1956, que ele conhecia minimamente. De repente, suspeitei de algo estranho e perguntei-lhe esta simples coisa: onde é que é a Hungria. Pânico, e completa ignorância onde era a Hungria, onde estava o Danúbio, e após tentativas e erros a Hungria ficava para os lados do Cazaquistão. Comecei então a fazer perguntas deste tipo e estas eram as “perguntas difíceis”.

Tratava-se de estudantes do ensino superior prestes a acabar a licenciatura. Mas, andando para trás e para a frente, tenho as mais sérias dúvidas que seja possível hoje ler a grande maioria da grande literatura portuguesa, Camões, Camilo, Eça, por exemplo, mesmo que, no caso de Eça, seja um dos raros autores ainda presente numa lista de leituras em grande parte jornalística. Em linhas gerais, a parte narrativa de alguns livros que ainda sobrevivem talvez subsista, mas duas grandes fontes da nossa cultura ocidental desapareceram do saber circulante: a Bíblia e a cultura greco-latina. Ora, duvido muito que textos literários que falam como quem respira de Orfeu, Sísifo, David, Golias, da Guerra do Peloponeso, de Marte, de Salomão, do Bom Samaritano, de Péricles, da “voz clamando no deserto”, de Abraão, de Ulisses, do Cavalo de Tróia, de Homero, mesmo de Caim e Abel, de César Augusto, de Esparta, do Hades, de Diana, a caçadora, de Herodes, etc., etc., hoje signifiquem alguma coisa. O mesmo para muitas lendas, metáforas, ditos, alcunhas, etc.

É importante saber-se isto? Claro que é, por uma razão muito simples: é que não se sabendo é-se mais pobre da cabeça, até porque com esta ignorância vem um pacote de um mundo mais desértico. Há excepções, como é óbvio, mas as excepções não contam. O mundo cultural da “geração mais preparada” é como o das conversas dos participantes do Big Brother. Vale a pena ouvir, uma mistura que não passa de uma espécie de psicologia barata, e não é por acaso que uso esta comparação porque um dos alicerces desta ignorância agressiva é mesmo esse tipo de conversa, que vai muito para além da Casa e dos comentadores em estúdio. Ele estende-se aos/às influencers e ao mundo das redes do Chega, raiva, ressentimento, sentimentalismo barato, pseudodepressões, “bocas”, erros de ortografia, escasso vocabulário, e muita, muita ignorância. E tem um público jovem.

O mundo não está brilhante, porque este tipo de gente é particularmente fácil de manipular.»


26.7.24

Não temos cá disto (4)

 


Joya de Cerén («A Pompeia das Américas»), El Salvador, 2014.

Em Joya de Cerén, encontra-se um dos mais interessantes patrimónios arqueológicos da América Central, sobretudo porque apenas lá, tal como em Pompeia, podem ser observados pormenores da vida quotidiana – neste caso dos Maias –, até ao início do século VII d.c.

Por volta do ano 600, uma erupção do Vulcão Loma Caldera destruiu completamente o local que ficou coberto por três metros de cinzas até ser descoberto em 1976. As escavações foram interrompidas por causa da guerra civil, mas retomadas entre 1989 e 1996 e os trabalhos de prospecção arqueológica ainda continuam. Tipicamente, as casas familiares tinham duas divisões, onde se vêem camas de pedra, sendo cozinhas e outras áreas usadas comunitariamente. Muitíssimo interessante!

Infoexclusão

 


Pobres açorianos

 



Elogio da política

 


«É uma dança macabra. Ao ritmo das exigências mediáticas, as figuras dos principais partidos rodopiam para justificar e enquadrar a sua “atitude responsável” face ao orçamento. No contrapasso, à espera de uma qualquer novidade, artigos de jornal e sucessivos diretos dão nota das grandes intrigas ou dos pequenos deslizes dos protagonistas. Mais para o final da semana, comentadores e cronistas criticarão os políticos pela superficialidade do debate e, claro, por sucumbirem à politiquice. Assim é, de facto, mas para dançar o tango são precisos dois.

A meses da apresentação do documento, a política nacional está capturada. Dia após dia, sucedem-se as mesmas questões. Quem aprovará o próximo orçamento? A troco de quê? Da direita a parte da esquerda, todos querem estar na fotografia: ensaia-se um suspense “praticamente impossível” sobre o voto para mostrar “disponibilidade negocial”. A barganha orçamental horroriza-se com as diferenças ideológicas e dispensa grandes mundivisões. Encara com naturalidade que qualquer partido, de qualquer espectro político, o Chega ou o PS, viabilize o projeto da direita.

Haverá quem pense que esta foi a forma de governar inaugurada em 2015. Engana-se. A geringonça foi um acordo há quatro anos, entre forças que negociaram longamente e assumiram objetivos partilhados, claros, ainda que limitados no tempo e no modo. O entendimento não foi renovado em 2019, quando a falta de coincidência entre projetos políticos inibiu novos acordos.

É estranha e perigosa a ideia de que a participação dos partidos no processo orçamental só existe se houver negociação para viabilizar o documento. Não tem de ser assim e não deve ser assim. Essa visão reduz o trabalho parlamentar a uma guerra de claques — e, se for para isso, já há uma bastante ruidosa. Mais bizarro ainda é a tentativa de imposição de um novo senso comum, que naturaliza o apoio a uma governação de sentido oposto, desde que haja “sucesso na negociação” de meia dúzia de propostas a incluir ou excluir.

Não quero ser mal interpretada. É claro que o Parlamento é um lugar para procurar aproximações e até consensos: eles acontecem todos os dias, com geometrias diversas, sobre os mais variados temas. Mas o Parlamento na democracia é, antes de mais, o lugar de comparência das alternativas políticas, onde se confrontam ideias e mundividências. Uma democracia composta por versões aproximadas do mesmo algoritmo perde potência, desvitaliza-se, torna-se uma câmara corporativa, uma arena para a alternância de interesses, sugerindo que uma alternativa só pode sê-lo contra a própria democracia. Se “não há alternativa”, não há política. Se não há política, só sobra politiquice.

O programa do PSD, que o governo já recusou “desvirtuar” no Orçamento, carrega uma visão ideológica, política e cultural sobre Portugal. Carrega essa visão sobre o papel do Estado, sobre o trabalho, sobre a redistribuição de riqueza, sobre a organização da economia e sobre os direitos sociais. Não é apolítico, como nada é. É um programa de uma direita neoliberal. E tanto cumpre algumas promessas eleitorais de caráter social (apresentadas como “medidas de pacificação social”) como executa elementos da política para a imigração da extrema-direita. As escolhas já consumadas para privatizar a saúde, para abdicar estruturalmente de receita fiscal em benefício dos mais ricos ou para liberalizar o alojamento local não são business as usual. São medidas que deixarão marcas profundas no país, na economia, na vida das pessoas que partilham Portugal.

O impasse em que muitas democracias ocidentais estão enredadas não é circunstancial e não será solucionado por fracos arranjos temporários de geometria parlamentar subordinados às conveniências de calendário de lideranças partidárias. Neste difícil contexto histórico, o risco é mesmo a falta de escolha, por força da naturalização do programa ideológico da direita, pela diluição do confronto na coreografia inconsequente e pela descredibilização das políticas transformadoras de esquerda.

Perante tudo isto, “quem aprovará o orçamento?”. A pergunta é crucial, mas não pelas razões que embaraçam protagonistas e entretêm cronistas e comentadores. Não é conversa de políticos, é a política de um país.»


25.7.24

Não temos cá disto (3)

 


Metro de Moscovo, Rússia, 2012.

Com um luxo decorativo único no género, inaugurado em 15 de Maio de 1935, o metropolitano de Moscovo merece, sem dúvida, que se lhe dedique o tempo necessário para ver uma parte das mais de 200 estações de que dispõe actualmente. Algumas são fabulosas arquitectonicamente, todas as que vi são lindíssimas em termos de decoração.

Relevo especial para a «Praça da Revolução», com as suas dezenas de estátuas em bronze, sendo a de um homem com um cão a mais popular: os moscovitas passam e afagam o nariz do animal, ao mesmo tempo que exprimem um desejo.

Obrigada, Otelo

 


Otelo Saraiva de Carvalho morreu em 25.07.2021.

Desta Lisboa compassiva

 


AL: Portugal em contramão

 


«Quase três meses depois de anunciar um vago conjunto de novas medidas para “Construir Portugal”, através de um choque de oferta que controle os preços, só duas das 30 propostas anunciadas tinham sido apresentadas e aprovadas: isenção de IMT para os jovens e desagravamento fiscal para o AL. A escolha destas duas medidas é plena de significado político. É por isso que convém olhar para elas não apenas pelo seu valor facial, que não é curto, mas pelo que anunciam de programático.

Todas as medidas para, usando as palavras do Governo, “incentivar a oferta”, “promover a habitação pública”, “devolver a confiança no arrendamento” ou “assegurar a acessibilidade na habitação” ficaram para as calendas. A prioridade política foi começar pelos descontos fiscais em casas que a esmagadora maioria dos jovens não consegue pagar e diminuir a oferta habitacional, favorecendo o florescimento do alojamento turístico.

O choque de oferta na habitação, anunciado pelo PSD como o centro da resposta à crise que se vive, até agora apenas parece estar a retirar casas do mercado e tem os empreiteiros a dizer que congelaram novos empreendimentos à espera da suposta diminuição do IVA.

A primeira foi a isenção no IMT para jovens até aos 35 anos, aprovada com o voto do Chega e da IL, para garantir, como disse a ministra da Juventude, “uma poupança de quinze mil euros” para todos os jovens que comprem “uma casa de 450 mil euros”. Note-se que o valor médio a que estão a ser transacionadas as casas em Lisboa, a região mais cara do país, se encontrava, no ano passado, nos 340 mil euros. Mesmo em Lisboa, onde os preços são quase o triplo da média nacional, querer apoiar jovens a comprar casas a 450 mil euros é de quem governa para os filhos e netos da sua bolha.

A segunda medida foi a revogação da contribuição extraordinária sobre o Alojamento Local e o desagravamento do IMI a pagar por estas unidades, também aprovadas pelo Chega e pela IL.

A contribuição especial, agora revogada, tinha sido responsável pela anulação de 1024 licenças de Alojamento Local, só em Lisboa, no final do ano. "Só em dezembro de 2023 houve mais cessações voluntárias do que em 2022 (onde se registaram 220 pedidos)”, relata o DN. Uma medida que estava a colocar casas no mercado de arrendamento, pelo menos no de média duração ou destinado aos nómadas digitais, é revogada para que possam continuar a encontrar na operação turística o seu propósito.

Por falar em nómadas digitais, o recente anúncio de que o governo pretende retomar a borla fiscal para trabalhadores estrangeiros qualificados arrisca fazer disparar, novamente, os preços da habitação nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto.

No mesmo dia em que o Governo aprovava medidas para ceder aos ruidosos investidores no Alojamento Local, com a mão dada do Chega que tem nos empresários turísticos e da construção civil a nata do seu chorudo financiamento partidário, Barcelona anunciava que, até 2028, quer acabar com o alojamento turístico de curta duração nas zonas residenciais. Até lá irá suspender a emissão de novas licenças, uma medida que o Montenegro já disse querer revogar, e não renovará as que existem, outra das medidas na mira da sólida coligação fiscal e habitacional entre PSD, Chega e IL.

Em Barcelona, de acordo com a autarquia catalã, o número de licenças (10100) tem impulsionado o preço das casas, que aumentaram 68% no arrendamento e o de venda 38%. Ou seja, uma cidade três vezes maior que Lisboa tem menos duas mil licenças ativas de Alojamento Local do que a capital do nosso país, usando novamente números da autarquia. Mas, se formos a uma das principais plataformas que regista o número de licenças e as utilizadas de forma regular, veremos que a tendência se mantém ou até se agrava em Lisboa. Olhando apenas para as unidades que ocupam uma casa inteira (em vez de quartos) e que tiveram uma avaliação nos últimos seis meses, assim como hóspedes durante 60 noites, vemos que há 5567 casas ocupadas com alojamento local em Barcelona e 8412 em Lisboa.

Podemos pensar que a crise habitacional é pior em Barcelona do que nas principais áreas urbanas do nosso país. Nada mais errado. Os preços, em Lisboa, subiram bem mais do que em Barcelona. Nos últimos dez anos, o metro quadrado não aumentou 38%, como em Barcelona, mas 300%. Nos últimos cinco anos, o valor médio do arrendamento multiplicou por quatro em todo o distrito de Lisboa. O Porto, oito vezes mais pequeno que Barcelona, tem mais licenças do que a cidade catalã. E, em dez anos, o valor das casas no Porto triplicou. E, mesmo assim, Barcelona vai no sentido oposto ao de Lisboa e Porto.

O mesmo acontece com os governos nacionais. Enquanto Montenegro anuncia o fim das ténues limitações ao Alojamento Local e o ministro das Finanças pretende chamar em força os nómadas digitais, conhecendo-se o seu impacto no preço das casas, Sanchéz pretende impor novas regras para regular e limitar o arrendamento de curta duração.

A crise da habitação não é um tema exclusivamente nacional. Mas temos algumas especificidades: um parque de habitação pública insipiente e uma direita que não acredita que se deve gerir o conflito entre o direito à propriedade e direito à habitação. Por isso, medidas completamente consolidadas na Europa, como a regulação do aumento das rendas, existente em quase metade dos países europeus, foram equiparadas às do regime salazarista, explicadas por termos o "governo mais comunista que houve em Portugal desde a Revolução de Abril”. Não foram palavras de Ventura, mas de Leitão Amaro e Montenegro. Explicam o revanchismo com que o governo se atirou a todas as tímidas tentativas de regulação da habitação num dos mercados habitacionais mais desregulados de toda a Europa.

Podemos pensar que são Espanha e Barcelona que nadam contra a corrente e o governo português está, afinal, a corrigir desvios estatizantes do PS. Mas são Montenegro e Ventura que vão em contramão a vociferar contra todos os que encontram em sentido contrário. Só nos últimos meses, Amesterdão, que já limita o arrendamento no Alojamento Local a 30 dias por ano, aprovou um reforço na fiscalização e novas medidas restritivas para a troca de apartamentos. Nova Iorque aprovou um regulamento onde só permite aluguer de curta duração ao máximo de duas pessoas e num apartamento partilhado com os seus donos. E a Assembleia Nacional Francesa votou, há seis meses, um conjunto de medidas que permitem às autoridades locais atribuir uma licença de alojamento local por cada casa colocada, pelo proprietário, no mercado de arrendamento de longa duração.

Ninguém quer matar o alojamento local, mas encontrar soluções equilibradas entre o direito à habitação e o investimento. E, existindo direitos conflituantes, há hierarquias, porque a habitação, e não o lucro do turismo, é um direito constitucionalmente protegido. Mas para existir equilíbrio é preciso que se reconheça a o problema. Como vimos pelos discursos inflamados de Montenegro ou a presença de Moedas na manifestação pela desregulação do Alojamento Local, não é o caso. Não é por acaso que, de todas as divisões e conflitos que têm existido num parlamento fragmentado, a união mais sólida e estável é a das direitas nos temas fiscais e da habitação. Porque o direito único e absoluto, na sua mundividência, é o da propriedade. Não há crise habitacional que o possa limitar. Mesmo que ela tenha custos económicos brutais e continue a transferir, como é sina da nossa história, recursos produtivos para as únicas elites que sabemos criar: as do rentismo.»


24.7.24

Não temos cá disto (2)

 


Catedral de Sal, Zipaquirá, Colômbia, 2012

Não sei quantas catedrais já terei visitado, mas nenhuma como esta – feita DE SAL. Ocupa três camadas já desactivadas de minas e resulta de uma verdadeira proeza técnica que tirou partido dos túneis e das cavernas que sobraram da antiga actividade de extracção.

Atinge 180 metros de profundidade e nela se percorrem as 14 estações da Via Sacra, que desembocam na catedral propriamente dita, com três naves – tudo num impressionante percurso, complexo e muito bem iluminado. Foi construída entre 1991 e 1995 e substituiu uma outra mais antiga.

A primeira «pátria» – Moçambique

 


Sinto que tenho três «pátrias» (ou talvez por isso nenhuma, o que vai dar ao mesmo).

Quanto à do Império, deixo para Marcelo & Friends os respectivos festejos aquém e além-mar. Já assinalei o 21 de Julho, Festa Nacional da Bélgica. Faltava referir esta – a de Moçambique –, onde uma cesariana de alto risco me pôs na cidade das acácias vermelhas.

Lá fiz exames da 3ª e da 4ª classe, depois de aprender todos as estações e apeadeiros da Linha do Norte na «Metrópole», de fazer redacções sobre as latadas no Minho e de pôr algodão a imitar neve na árvore de Natal, embora esta estivesse montada ao ar livre.

Com pouco mais de nove anos, vim para Lisboa que detestei. E detestei porque se gravaram em mim imagens de uma cidade tristíssima, com pessoas vestidas de preto ou cinzento, a viverem em camadas dentro de prédios em ruas estreitas, ainda ao som de pregões e de gritos de vendedeiras que espalhavam canastras de peixe pelo chão. Faltavam-me as acácias vermelhas, a Polana, o calor, os cheiros e sobretudo os grandes espaços.

Só bem mais tarde percebi o que eram colonos e colonialismo. E, mais tarde ainda, senti o que foi o inevitável drama dos retornados.

Lisboa 35ºC

 


24.07.2011 – Machu Picchu

 


Qualquer pretexto é bom para se falar de Machu Picchu, onde tive a sorte de estar em 2004.

Foi num 24 de Julho que o explorador americano Hiram Bingham encontrou duas famílias que o levaram às ruínas da «velha montanha». Até lá, esta «cidade perdida dos Incas», que é o símbolo mais típico do seu império (e hoje também do Peru), construída no século XV a 2.400 metros de altitude, extraordinariamente bem conservada e com uma localização absolutamente excepcional, mantinha-se desconhecida. Tem duas áreas distintas, uma dedicada à agricultura, numa série impressionante de socalcos, e uma outra urbana com templos, casas e sepulturas, dispostos ao longo de ruas e de (terríveis!) escadarias.

Património da Humanidade desde 1983, Machu Picchu é destino inesquecível para quem já lá foi e fortíssima recomendação de viagem para quem puder fazê-la.

Tradicionalmente, parte-se de Cusco (uma cidade absolutamente mágica), segue-se pelo Vale Sagrado, com paragem obrigatória no mercado de Pisac, passa-se pelo Vale de Ollantaytambo e apanha-se o mítico comboio que chega às imediações das ruínas. Então… é ficar primeiro de boca aberta e depois descer, trepar, ouvir explicações, imaginar a vida por aquelas paragens, quando a França e a Inglaterra ainda se batiam na Guerra dos Cem Anos e o nosso Vasco da Gama lutava com o cabo das Tormentas. Um pouco impróprio para cardíacos pela altitude e pelo esforço para calcorrear pedregulhos, mas vale bem o sacrifício.











Os cinco na América

 


«Biden saiu de cena, Kamala Harris é a senhora que se segue. As primeiras sondagens dão Trump na frente, com uma vantagem de dois pontos. Não parece um mau resultado para a democrata. Descontada a margem de erro, estão empatados. E só passaram três dias. Ou seja, é possível que a vice-presidente chegue a novembro com dois ou três pontos de vantagem.

Sim, é possível que uma mulher negra some mais votos do que Trump. Um homem branco misógino, racista e narcisista. Mas também é provável que isso seja irrelevante. Não é presidente dos EUA quem tem mais votos nas urnas, mas quem tem mais votos no colégio eleitoral (formado por 538 grandes eleitores). E, nos tempos que correm, o sistema favorece os republicanos. Simplificando, há uma eleição em cada um dos 50 estados. O vencedor em cada estado recebe a totalidade dos seus grandes eleitores (na Califórnia são 55, no Arkansas são seis). Mas o historial das últimas eleições e as sondagens para a deste ano mostram que, com maior ou menor vantagem, está definido o partido vencedor em quase todos os estados.

Assim, a liderança do país mais poderoso do Mundo nos planos económico, tecnológico e militar joga-se em apenas cinco estados (os “swing states”): Arizona, Geórgia, Pensilvânia, Michigan e Wisconsin. E num punhado de votos.

Hillary Clinton conseguiu mais três milhões de votos do que Trump a nível nacional, em 2016. Mas perdeu por um total de 70 mil votos nos estados da Pensilvânia, Michigan e Wisconsin. Os correspondentes 46 grandes eleitores foram para o republicano, com o resultado que é conhecido.

Em 2020, Biden teve mais sete milhões de votos, mas a derrota de Trump ficou a dever-se aos 40 mil votos de vantagem do democrata nos estados do Arizona, Geórgia e Wisconsin (com os correspondentes 37 grandes eleitores). Quarenta mil votos de um total de 155 milhões depositados nas urnas por toda a América.»


Maria João Pires

 


Chegou ontem aos 80.

23.7.24

Não temos cá disto (1)

 


Livingstone, Zâmbia, 2007.

Perto do quarto do hotel, junto às Cataratas de Vitória: crocodilos à vista e macacos que partilham espreguiçadeiras com os turistas.




23.07.1975

 


Nesse dia, este cartaz foi capa do Diário de Notícias.

Juntamente com a cantiga («Força, força, companheiro Vasco»), deu corpo à campanha da 5.ª Divisão de apoio a Vasco Gonçalves, iniciada quatro dias antes. Foi sol de pouca dura, como é sabido: o IV Governo Provisório caiu em 8 de Agosto e o V iria durar pouco mais de um mês.
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20 anos sem Serge Reggiani



 
Serge Reggiani morreu em 23.07.2004 e marcou certamente algumas gerações, mesmo em Portugal, antes de a língua francesa ir desaparecendo lentamente da vida dos mais novos. Pela interpretação, pelo encanto pessoal, pelo compromisso político, certamente pelos poetas que ajudou a conhecer ao divulgá-los nas letras de muitas canções.

Nasceu em Itália e ainda criança instalou-se com os pais em França para escapar ao fascismo. Começou como ajudante de barbeiro, inscreveu-se no Conservatório com 19 anos, estreou-se no teatro onde contracenou com Jean Marais, entrou em alguns filmes. Passou no entanto rapidamente à clandestinidade na Resistência francesa. Regressou ao cinema depois do fim da guerra, mas foi como cantor que se consagrou, a partir de 1964. Entre muitos outros, cantou Boris Vian, Rimbaud, Prévert e Appolinaire.

Algumas das canções a não esquecer:







E esta, obviamente:


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A eleição começa agora

 


«É humano, demasiado humano, querer preservar o poder. O poder, dizem, não se oferece: perde-se. Que outro líder mundial faria o que Joe Biden fez hoje?

Para o 46.º Presidente dos EUA resta terminar o seu mandato presidencial com a maior dignidade possível.

Joe Biden ficará como Presidente de um só mandato -- como provavelmente acreditava que seria, quando concorreu há quatro anos --, mas com dois legados muitos relevantes: o de ter defendido a Ucrânia da agressão russa, apesar da opção estratégica americana de fletir forças para o Indo-Pacífico, e o bom desempenho económico dos EUA durante o seu consulado.

Os republicanos ficaram com as contas da vitória (até há horas, praticamente inevitável) totalmente baralhadas. O argumento estava preparado para derrotar um Biden velho e fragilizado. Só que, a partir de agora, é uma nova eleição.

Há um ou dois anos, Kamala Harris era para Donald Trump uma adversária muito mais fácil de derrotar do que Joe Biden. Menos competitiva nos estados decisivos. Menos aceite pelo eleitorado branco com baixas qualificações. Mais permeável à tese republicana de ser da onda “woke” (da qual o velho Joe escapava).

Mas o contexto é quase tudo.

A situação em que Joe Biden caiu nas últimas três semanas foi muito traumatizante para os democratas. A ideia instalada era a de que os esperavam três meses penosos até a uma derrota humilhante em novembro.

A desistência de Biden, tendo sempre um lado pessoal e afetivo muito custoso, tornou-se um alívio. E abriu uma janela de esperança que, na dinâmica de uma corrida presidencial, não pode ser negligenciável.

Kamala passou a ser mais que Kamala: passou a ser a herdeira da Administração Biden e beneficiou de um endosso claro e imediato do Presidente que abdicou da recandidatura.

Será demasiado tarde? Talvez.

A contagem decrescente aproxima-se perigosamente dos 100 dias finais. Trump está com a dinâmica de vitória, mas o efeito psicológico pode ganhar a corrida ao relógio.

Kamala nunca foi uma vice-presidente popular, tem dificuldade de afirmação até em setores democratas, recebeu do Presidente um presente envenenado ao tornar-se a “czarina” da gestão da fronteira Texas/México.

Se escolher Josh Shapiro, governador da Pensilvânia, que já a apoia, para seu vice é possível que a capacidade de Harris disputar a Trump o Midwest possa mudar rapidamente.

No plano internacional, Kamala perde aos pontos para a experiência de Biden, mas, ainda assim, foi ela quem representou os EUA na Cimeira da Paz realizada na Suíça, há um mês, e vai às conferências de segurança de Munique.

TRUMP E VANCE COMO ESCORPIÕES A LIDAR COM A RÃ?

Donald e JD Vance não deverão conseguir resistir à tentação de fazer uma campanha superagressiva, a roçar o racismo e o machismo, contra a nova opositora.

Ora, isso pode ser uma bela oportunidade para que os democratas recuperem o eleitorado independente e moderado, que já não aceita esse tipo de comportamento, mas estava a fugir do Biden versão fragilizada.

Elise Stefanik, congressista republicana de Nova Iorque, que chegou a estar na “shortlist” de Trump para a vice-presidência, vai apresentar já esta segunda, na Câmara dos Representantes, uma resolução a condenar Kamala pelo seu trabalho na gestão da fronteira. E Mike Johnson, speaker do Congresso, defende a demissão de Joe Biden como Presidente, dando cobertura à tese de JD Vance, que alega: “Se Biden não tem condições para ser candidato, como pode ter condições de ser Presidente?”

Este escalar institucional dos republicanos contra Biden e Harris pode ajudar os democratas a posicionarem-se como a solução mais aceitável para a maioria silenciosa que, em novembro, quer dizer nas urnas que está farta desta política hiperpolarizada e doentia.

  Esqueçam sentenças de vitória antecipada trumpista ou sondagens. comprometedoras feitas até aqui.

A eleição começa agora.»


22.7.24

Alguma dúvida?

 


Outra visão: podia Michelle Obama ser vencedora?

 


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EUA: quando tudo falhou, só há tempo para unir forças

 


«Primeiro, a justiça: se excluirmos a política externa, onde Gaza tem um papel cimeiro de incompetência e cobardia, mas onde também teria de recuar muitas décadas para me lembrar do último bom presidente norte-americano, Joe Biden foi um bom presidente. Mais progressista do que Obama (seguramente muito mais do que Clinton), não é por acaso que a esquerda do partido democrata queria a sua continuidade. Quantos presidentes estiveram em piquetes de greve?

Com piores condições políticas internas, tem um currículo de vitórias muitíssimo mais impressionante do que Barack Obama (no preço dos medicamentos, nas dívidas dos estudantes, no aumento dos salários dos trabalhadores mais pobres, para pegar em três exemplos), o que lhe valeu alguns ressentimentos. Mas, pela sua idade, Biden era um presidente de transição e não conseguiu ter a lucidez de sair quando devia. E ninguém o fez ver que tinha de sair. E ninguém de peso decidiu avançar contra ele, nas primárias.

É bem possível que a desistência de Joe Biden não venha a tempo. Mas as eleições estavam perdidas e só uma mudança rápida poderia fazer renascer uma ténue hipótese de vitória democrata. Nenhuma alternativa para além Kamala Haris tinha a capacidade de vencer três obstáculos: a transferência de fundos recolhidos por Biden (nos EUA, o dinheiro compra vitórias), ter notoriedade em todo o país (que é imenso e onde as primárias funcionam como pré-campanha) e não levantar questões de legitimidade política (resolvidas pelo facto de ser a vice-presidente de Biden). Uma escolha totalmente fora disto, para provocar uma surpresa e uma onda de entusiasmo, chocava com estes três obstáculos. E perder tempo a falar delas é enfraquecer a alternativa a Trump que subsiste.

Não vale a pena ter ilusões. Kamala tinha melhores sondagens do que Biden, mas ainda sem ter enfrentado a máquina de propaganda tóxica republicana, em que a misoginia terá lugar central. Ela junta todos os problemas de uma candidata liberal e de minorias, tendo poucas das suas virtudes: parece bem mais progressista do que é, está colada a causas minoritárias sem se ter batido assim tanto por elas. Tem algumas vantagens, como a possibilidade de recuperar eleitorado negro que estava a abandonar os democratas – por ser mais pobre, sofreu a mais com a inflação. Mas dificilmente vencerá no “Rust Belt”, onde Trump e Biden conquistaram as eleições em 2016 e 2020. Para compensar isto, a escolha do vice (o governador da Pensilvânia Josh Shapiro, por exemplo) pode ser determinante, sobretudo quando enfrenta J.D. Vance.

Kamala não é uma solução excelente mas as coisas são como são e as oportunidades para serem diferentes já se esgotaram. Agora, é unir forças, não perder tempo com outras possibilidades e tentar vencer o que parece estar perdido.

Este Trump não será, como já escrevi, o do primeiro mandato. Não será o Trump que ainda prestava contas aos restos já de si transfigurados do partido republicano. Este é o Trump que escolheu J.D. Vance como número dois. É o Trump da vingança que a maioria do Supremo que ele próprio nomeou declarou inimputável. Este é um momento incrivelmente perigoso para o mundo. Já se falhou quase tudo. Que não falhe o tão pouco que resta.»


EUA - Estado da questão

 


21.7.24

Gentes de vários mundos (1-12)

 


FIM.

Era bom, era...

 


21 de Julho – Festa Nacional da Bélgica

 


Foi em 21 de Julho de 1831 que Leopoldo I se tornou o primeiro rei da Bélgica.

É certamente uma das minhas «pátrias». Duas longas estadias naquele país, totalmente diferentes e separadas por mais de duas décadas, moldaram muito do que agora sou. Só quem nunca lá viveu desconhece a qualidade de vida possível, apesar do clima e de mais umas tantas minudências, e não tem saudades de belos tempos vividos.



Avec des cathédrales pour uniques montagnes / Et de noirs clochers comme mâts de cocagne / Où des diables en pierre décrochent les nuages / Avec le fil des jours pour unique voyage / Et des chemins de pluie pour unique bonsoir / Avec le vent de l'est écoutez-le vouloir / Le plat pays qui est le mien.
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Período democrático tardio

 


«Ao ritmo da política em direto, somos testemunhas diárias de “momentos históricos”. Mas vamos arriscar. Vamos imaginar que a bala que raspou a orelha de Trump será o marco do começo de uma nova era e que a fotografia deste momento, tão semelhante à de “Raising the Flag on Iwo Jima”, será o seu ícone. Não é o pequeno episódio protagonizado por um jovem perturbado que muda a História. A mudança segue o seu caminho há muito tempo. A imagem apenas a fixa no tempo. Num país que espera heróis, um Trump ensanguentado levanta o punho e quase parece segurar a bandeira americana — “lutem”. Num país que ouve profetas, o homem providencial “leva uma bala por nós” e é salvo por Deus para restaurar os valores americanos em declínio. Num país feito por pioneiros, um Trump enérgico na defesa dos valores de uma “América deixada para trás” enfrenta todos os interesses representados por um Biden decadente. Os tribunais quiseram prendê-lo, os jornalistas quiseram destruí-lo, os democratas roubaram-lhe a eleição, agora quiseram matá-lo. É tão perfeito que alguns se recusaram a acreditar que foi capricho do acaso.

Como sempre, não há um momento para o começo de uma nova era. Trump até teve um primeiro mandato, interrompido pelo desastre da gestão da pandemia. A extrema-direita cresce e vence em muitos países há muito tempo. Mas, neste arriscado exercício de adivinhação, vamos assumir que Trump vencerá as próximas eleições. Tudo se encaminha para isso. O Presidente, diminuído e pressionado pelos seus apoiantes para desistir, perdeu o discurso. Os democratas tiveram de retirar a campanha negativa contra um candidato condenado e julgado pelo seu papel numa tentativa de golpe. Biden teve de mostrar solida-riedade com quem fez piadas à agressão quase mortal ao marido da líder do Congresso. E, enquanto Trump vai anunciando que, se perder, haverá sangue, instala-se o discurso de que “ambos os lados” escalam a violência e que tratar Trump como um homem perigoso para a democracia é ser cúmplice de uma tentativa de homicídio.

Assumindo que Trump ganha, não devemos assumir que o segundo mandato será do Trump que conhecemos. Será, permitam-me mais adivinhações, uma nova coisa. Arrisco-me a dizer: uma coisa completamente diferente. Enquanto prometia unir o país contra o discurso divisivo e agressivo dos democratas, Trump anunciou o seu novo programa em forma de pessoa: J. D. Vance, candidato a vice-presidente. Um corte definitivo com a história de um Partido Republicano já desfigurado. Mike Pence era tenebroso, mas no seu último suspiro político impediu o golpe. Vance garante que, no lugar dele, não teria validado os resultados eleitorais, confirmando o golpe instigado pelos ocupantes do Capitólio.

A ascensão fulgurante de J. D. Vance, que chegou ao Senado há dois anos, só tem paralelo com a de Obama. Também coincidem na capacidade de construir narrativas políticas a partir dos seus percursos familiares. Vance é o “sonho americano”: jovem pobre vindo de uma família disfuncional, salvo pelos avós, um deles operário metalúrgico e democrata sindicalizado, chegou, depois de algumas histórias mal contadas, à alta roda dos homens de Silicon Valley, a nova aristocracia capitalista que lhe dá apoio e que ele representará, e ao topo da política. Vance conhece a linguagem, os anseios e as frustrações da classe trabalhadora branca abandonada pela desindustrialização. O seu livro de memórias, “Hillbilly Elegy”, fala da desintegração das estruturas familiares tradicionais e das comunidades que essa desindustrialização provocou. Foi um sucesso quando Vance ainda suspeitava que Trump pudesse vir a ser o “Hitler americano” que levaria a “classe branca trabalhadora para um lugar demasiado negro”. Vance fala para os eleitores do rust belt. Os que decidiram a vitória de Trump em 2016 e de Biden em 2020.

Mas não são estas contas que entrarão na História. É o que a escolha de Vance nos diz sobre a transformação de um projeto megalómano de um milionário narcisista num projeto com densidade ideológica. Vance quer transformar o Partido Republicano num partido revolucionário. Acredita que os EUA vivem “um período republicano tardio”, numa alusão de Roma à espera de um novo César: “Se vamos reagir a isso, temos de ser bastante selvagens e ir bastante longe, em direções desconfortáveis para muitos conservadores.” É ele que diz que muitos dos seus aliados defendem uma resposta que até pode ser “extraconstitucional” a um mundo dominado por uma esquerda que põe em causa os valores americanos. É um novo Orbán, émulo de Putin, que Trump, com 78 anos, apresenta como seu vice.

Parece impossível travar a caminhada imparável da História, de que a imagem ensanguentada de Trump, com a inevitável bandeira atrás, surge como símbolo inaugural. É possível que vivamos o ocaso da curta experiência democrática da Humanidade. Resta a esperança que nasce de se saber que a História nunca está escrita e que quase todos os exercícios de adivinhação falham. Pequenos episódios podem mudar tudo. Mas a esperança na sorte do destino é a dos derrotados.»