«Quase três meses depois de anunciar um vago conjunto de novas medidas para “Construir Portugal”, através de um choque de oferta que controle os preços, só duas das 30 propostas anunciadas tinham sido apresentadas e aprovadas: isenção de IMT para os jovens e desagravamento fiscal para o AL. A escolha destas duas medidas é plena de significado político. É por isso que convém olhar para elas não apenas pelo seu valor facial, que não é curto, mas pelo que anunciam de programático.
Todas as medidas para, usando as palavras do Governo, “incentivar a oferta”, “promover a habitação pública”, “devolver a confiança no arrendamento” ou “assegurar a acessibilidade na habitação” ficaram para as calendas. A prioridade política foi começar pelos descontos fiscais em casas que a esmagadora maioria dos jovens não consegue pagar e diminuir a oferta habitacional, favorecendo o florescimento do alojamento turístico.
O choque de oferta na habitação, anunciado pelo PSD como o centro da resposta à crise que se vive, até agora apenas parece estar a retirar casas do mercado e tem os empreiteiros a dizer que congelaram novos empreendimentos à espera da suposta diminuição do IVA.
A primeira foi a isenção no IMT para jovens até aos 35 anos, aprovada com o voto do Chega e da IL, para garantir, como disse a ministra da Juventude, “uma poupança de quinze mil euros” para todos os jovens que comprem “uma casa de 450 mil euros”. Note-se que o valor médio a que estão a ser transacionadas as casas em Lisboa, a região mais cara do país, se encontrava, no ano passado, nos 340 mil euros. Mesmo em Lisboa, onde os preços são quase o triplo da média nacional, querer apoiar jovens a comprar casas a 450 mil euros é de quem governa para os filhos e netos da sua bolha.
A segunda medida foi a revogação da contribuição extraordinária sobre o Alojamento Local e o desagravamento do IMI a pagar por estas unidades, também aprovadas pelo Chega e pela IL.
A contribuição especial, agora revogada, tinha sido responsável pela anulação de 1024 licenças de Alojamento Local, só em Lisboa, no final do ano. "Só em dezembro de 2023 houve mais cessações voluntárias do que em 2022 (onde se registaram 220 pedidos)”, relata o DN. Uma medida que estava a colocar casas no mercado de arrendamento, pelo menos no de média duração ou destinado aos nómadas digitais, é revogada para que possam continuar a encontrar na operação turística o seu propósito.
Por falar em nómadas digitais, o recente anúncio de que o governo pretende retomar a borla fiscal para trabalhadores estrangeiros qualificados arrisca fazer disparar, novamente, os preços da habitação nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto.
No mesmo dia em que o Governo aprovava medidas para ceder aos ruidosos investidores no Alojamento Local, com a mão dada do Chega que tem nos empresários turísticos e da construção civil a nata do seu chorudo financiamento partidário, Barcelona anunciava que, até 2028, quer acabar com o alojamento turístico de curta duração nas zonas residenciais. Até lá irá suspender a emissão de novas licenças, uma medida que o Montenegro já disse querer revogar, e não renovará as que existem, outra das medidas na mira da sólida coligação fiscal e habitacional entre PSD, Chega e IL.
Em Barcelona, de acordo com a autarquia catalã, o número de licenças (10100) tem impulsionado o preço das casas, que aumentaram 68% no arrendamento e o de venda 38%. Ou seja, uma cidade três vezes maior que Lisboa tem menos duas mil licenças ativas de Alojamento Local do que a capital do nosso país, usando novamente números da autarquia. Mas, se formos a uma das principais plataformas que regista o número de licenças e as utilizadas de forma regular, veremos que a tendência se mantém ou até se agrava em Lisboa. Olhando apenas para as unidades que ocupam uma casa inteira (em vez de quartos) e que tiveram uma avaliação nos últimos seis meses, assim como hóspedes durante 60 noites, vemos que há 5567 casas ocupadas com alojamento local em Barcelona e 8412 em Lisboa.
Podemos pensar que a crise habitacional é pior em Barcelona do que nas principais áreas urbanas do nosso país. Nada mais errado. Os preços, em Lisboa, subiram bem mais do que em Barcelona. Nos últimos dez anos, o metro quadrado não aumentou 38%, como em Barcelona, mas 300%. Nos últimos cinco anos, o valor médio do arrendamento multiplicou por quatro em todo o distrito de Lisboa. O Porto, oito vezes mais pequeno que Barcelona, tem mais licenças do que a cidade catalã. E, em dez anos, o valor das casas no Porto triplicou. E, mesmo assim, Barcelona vai no sentido oposto ao de Lisboa e Porto.
O mesmo acontece com os governos nacionais. Enquanto Montenegro anuncia o fim das ténues limitações ao Alojamento Local e o ministro das Finanças pretende chamar em força os nómadas digitais, conhecendo-se o seu impacto no preço das casas, Sanchéz pretende impor novas regras para regular e limitar o arrendamento de curta duração.
A crise da habitação não é um tema exclusivamente nacional. Mas temos algumas especificidades: um parque de habitação pública insipiente e uma direita que não acredita que se deve gerir o conflito entre o direito à propriedade e direito à habitação. Por isso, medidas completamente consolidadas na Europa, como a regulação do aumento das rendas, existente em quase metade dos países europeus, foram equiparadas às do regime salazarista, explicadas por termos o "governo mais comunista que houve em Portugal desde a Revolução de Abril”. Não foram palavras de Ventura, mas de Leitão Amaro e Montenegro. Explicam o revanchismo com que o governo se atirou a todas as tímidas tentativas de regulação da habitação num dos mercados habitacionais mais desregulados de toda a Europa.
Podemos pensar que são Espanha e Barcelona que nadam contra a corrente e o governo português está, afinal, a corrigir desvios estatizantes do PS. Mas são Montenegro e Ventura que vão em contramão a vociferar contra todos os que encontram em sentido contrário. Só nos últimos meses, Amesterdão, que já limita o arrendamento no Alojamento Local a 30 dias por ano, aprovou um reforço na fiscalização e novas medidas restritivas para a troca de apartamentos. Nova Iorque aprovou um regulamento onde só permite aluguer de curta duração ao máximo de duas pessoas e num apartamento partilhado com os seus donos. E a Assembleia Nacional Francesa votou, há seis meses, um conjunto de medidas que permitem às autoridades locais atribuir uma licença de alojamento local por cada casa colocada, pelo proprietário, no mercado de arrendamento de longa duração.
Ninguém quer matar o alojamento local, mas encontrar soluções equilibradas entre o direito à habitação e o investimento. E, existindo direitos conflituantes, há hierarquias, porque a habitação, e não o lucro do turismo, é um direito constitucionalmente protegido. Mas para existir equilíbrio é preciso que se reconheça a o problema. Como vimos pelos discursos inflamados de Montenegro ou a presença de Moedas na manifestação pela desregulação do Alojamento Local, não é o caso. Não é por acaso que, de todas as divisões e conflitos que têm existido num parlamento fragmentado, a união mais sólida e estável é a das direitas nos temas fiscais e da habitação. Porque o direito único e absoluto, na sua mundividência, é o da propriedade. Não há crise habitacional que o possa limitar. Mesmo que ela tenha custos económicos brutais e continue a transferir, como é sina da nossa história, recursos produtivos para as únicas elites que sabemos criar: as do rentismo.»