27.7.24

Porque é que na “geração mais preparada de sempre” a ignorância cresce

 


«Este é o tipo de artigos em que já se sabe de antemão as críticas, mais “bocas” do que críticas, que vai receber. Passadista, “velho do Restelo”, velho tout court, arrogante, reaccionário, antiquado, com incompreensão do que é a “nova” geração e as mudanças culturais em curso, com uma visão ultrapassada do que são as novas “competências”, não compreendendo os novos “saberes”, preso a um mundo que já acabou e a um elitismo sem sentido numa sociedade muito mais igualitária, em que os “saberes” do passado são inúteis. Muito bem, é tudo isto, mas, mesmo assim, reafirmo que o mundo cultural circulante nos dias de hoje é particularmente pobre, é pobre de referências, é pobre de “histórias”, é pobre de vocabulário, e alimenta uma ignorância agressiva, em particular nas redes sociais, e isso é péssimo para a democracia. Ainda mais, é um mundo que pela sua fragilidade cultural é particularmente sensível às modas, sem qualquer distanciação e consistência.

Tenho consciência de que este tipo de catastrofismo cultural, ainda por cima com uma componente geracional, é recorrente na história, tem características comuns que se repetem e tem-se revelado muitas vezes errado. É cíclico nas suas lamentações dos “velhos” para as gerações mais novas, mas se há coisa que a história também revela é que, às vezes, existe mesmo decadência. É um pouco aborrecido estar com estes caveats todos – aqui está uma palavra em desuso –, mas a ascensão da ignorância agressiva e o ataque ao saber são perigosos para a democracia e liberdade. Decadência é outra palavra maldita. 250 palavras gastas com prevenções.

Aqui há alguns anos eu dei aulas partilhadas com Jaime Gama sobre “relações internacionais” no ensino superior. Nos dias de exames, verifiquei que muitos alunos corriam à secretaria para obter um adiamento, “porque fazia muitas perguntas difíceis”. Tentei perceber quais eram as “perguntas difíceis” e de onde vinha o medo. Consegui identificar a origem num exame em que o tema que o aluno estava a expor eram os eventos da Revolta Húngara de 1956, que ele conhecia minimamente. De repente, suspeitei de algo estranho e perguntei-lhe esta simples coisa: onde é que é a Hungria. Pânico, e completa ignorância onde era a Hungria, onde estava o Danúbio, e após tentativas e erros a Hungria ficava para os lados do Cazaquistão. Comecei então a fazer perguntas deste tipo e estas eram as “perguntas difíceis”.

Tratava-se de estudantes do ensino superior prestes a acabar a licenciatura. Mas, andando para trás e para a frente, tenho as mais sérias dúvidas que seja possível hoje ler a grande maioria da grande literatura portuguesa, Camões, Camilo, Eça, por exemplo, mesmo que, no caso de Eça, seja um dos raros autores ainda presente numa lista de leituras em grande parte jornalística. Em linhas gerais, a parte narrativa de alguns livros que ainda sobrevivem talvez subsista, mas duas grandes fontes da nossa cultura ocidental desapareceram do saber circulante: a Bíblia e a cultura greco-latina. Ora, duvido muito que textos literários que falam como quem respira de Orfeu, Sísifo, David, Golias, da Guerra do Peloponeso, de Marte, de Salomão, do Bom Samaritano, de Péricles, da “voz clamando no deserto”, de Abraão, de Ulisses, do Cavalo de Tróia, de Homero, mesmo de Caim e Abel, de César Augusto, de Esparta, do Hades, de Diana, a caçadora, de Herodes, etc., etc., hoje signifiquem alguma coisa. O mesmo para muitas lendas, metáforas, ditos, alcunhas, etc.

É importante saber-se isto? Claro que é, por uma razão muito simples: é que não se sabendo é-se mais pobre da cabeça, até porque com esta ignorância vem um pacote de um mundo mais desértico. Há excepções, como é óbvio, mas as excepções não contam. O mundo cultural da “geração mais preparada” é como o das conversas dos participantes do Big Brother. Vale a pena ouvir, uma mistura que não passa de uma espécie de psicologia barata, e não é por acaso que uso esta comparação porque um dos alicerces desta ignorância agressiva é mesmo esse tipo de conversa, que vai muito para além da Casa e dos comentadores em estúdio. Ele estende-se aos/às influencers e ao mundo das redes do Chega, raiva, ressentimento, sentimentalismo barato, pseudodepressões, “bocas”, erros de ortografia, escasso vocabulário, e muita, muita ignorância. E tem um público jovem.

O mundo não está brilhante, porque este tipo de gente é particularmente fácil de manipular.»


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