«A discussão que surge sobre a Justiça sempre que há um surto de grandes e pequenos casos é reveladora de tendências que são preocupantes sobre a democracia portuguesa, até porque traduzem correntes subterrâneas, que se manifestam aqui e ali, mas, no essencial, permanecem muito no fundo. Essas tendências misturam demasiadas coisas e são difíceis de identificar exactamente por isso, e surgem ao de cima sob muitas formas que nada têm que ver com a Justiça. Mas, quando surgem debaixo dessa bandeira da Justiça, essa forma é uma das mais perigosas. Essas tendências têm um traço em comum que não tem que ver com a Justiça mas sim com o poder político, e com o poder político de forma fáctica, exercido por quem manda e não por quem tem a legitimidade democrática e legal de mandar. Por isso, são particularmente corrosivas.
Aceitemos, para este efeito, uma definição simples de Justiça: Justiça significa que quem cometeu um crime ou uma ilegalidade deve pagar por esse crime ou ver reposta a legalidade em qualquer trato que seja ilegítimo. E deve pagar o preço do crime ou da ilegalidade seja qual for a sua profissão, condição social, cargo, riqueza ou pobreza. Eu sei também que esta fórmula é não só simples, mas também simplista; há toda uma nuance de crimes e ilegalidades, atenuantes e agravantes, circunstâncias e particularidades, e é sempre mais difícil punir os “de cima” do que os “de baixo”, mas, no essencial, serve-me. Acresce um outro factor cada vez mais importante: o direito é um produto social, logo é diferente nos tempos, nos lugares e nos modos, e, por isso, não é independente da forma como os indivíduos e os grupos percebem a escala da sua gravidade e do “preço” a pagar pelo crime. E, por último, e isso é cada vez mais relevante numa sociedade democrática, é sujeito a tensões e pressões que são, nalguns casos, democráticas e noutros demagógicas. Este efeito é hoje muito importante, porque o crime não é fácil de discutir em democracia, mas é facílimo em demagogia.
Agora vamos para o outro lado: o crime é tanto mais “político” e deve ser interpretado politicamente quando ele não remete para um desvario individual, ou uma cupidez especial. Num certo sentido os alegados crimes de Ricardo Salgado, José Sócrates, dos homens do BPN, de Luís Filipe Vieira, Rui Rangel, Manuel Vicente, dos homens da Operação Furacão, dos gestores maravilha da PT são todos crimes com uma forte componente política. Só foram possíveis porque esses homens tinham acesso ao poder desportivo, cultural, económico, social e político, num contexto que lhes facilitou os alegados crimes e a impunidade que tiveram durante muito tempo.
Por isso, a questão mais importante e que ajuda a compreender estes aspectos e a sua perigosidade para a democracia é perceber que quem manda em Portugal, ou pelo menos em quase tudo em Portugal, é um poder que não é democrático, é um círculo de poder e de confiança (prefiro esta fórmula à de oligarquia, por razões que ficam para depois), transversal no plano partidário e político, assente no mútuo conhecimento das elites, nas relações que estabelecem entre si, nos mecanismos de poder secreto e discreto que exercem. Ele atravessa todos os lugares de poder fáctico, consultoras financeiras, escritórios de advogados, em particular da chamada “advocacia de negócios”, consultores governamentais, conselhos de administração, mas também jornalistas com funções de direcção, juízes e magistrados, autarcas (poucos mas importantes), agências de comunicação, donos de jornais, televisões e órgãos online, e políticos. Contrariamente à percepção corrente, os lugares de deputados na Assembleia da República estão quase todos fora destes círculos de verdadeiro poder.