«Na última semana, a imagem do funcionamento do Serviço Nacional de Saúde (SNS) foi-se adensando nas preocupações dos cidadãos, devido a episódios diversos, mas que apontam para a eventual degradação deste importante serviço público, e que levantam a questão sobre qual o propósito do Governo do PSD e do CDS, em particular do primeiro-ministro, Luís Montenegro, em relação ao sector. Tanto mais que vai no seu segundo Governo, está à frente de executivos há mais de um ano e, quem sabe se por voluntarismo e ingenuidade de quem nunca tinha integrado um governo, fez uma campanha eleitoral, logo em 2024, a prometer apresentar soluções para os problemas do SNS.
Os episódios das últimas semanas são tão espantosos que nos levam a pensar se Portugal se pode considerar mesmo um país desenvolvido e do chamado primeiro mundo. De facto, se a situação não fosse trágica, era cómica. Os factos mais recentes levam à colocação de sérias dúvidas sobre a forma como é gerido e funciona o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM), e mostram a incapacidade de resposta em urgências de obstetrícia nestes casos em particular, no distrito de Setúbal.
Lembremos. Em duas semanas, no distrito de Setúbal, duas mulheres perderam filhos nos partos devido ao fecho de urgências médicas. Uma grávida de risco andou mais de uma hora a passear, dentro de uma ambulância, desde o Barreiro, onde reside, até ao Hospital de Cascais, onde finalmente foi atendida, depois de o Centro de Orientação de Doentes Urgentes não ter conseguido que ela fosse assistida, por falta de vaga, no hospital de Setúbal, no Hospital de Santa Maria ou na Maternidade Alfredo da Costa.
Antes, outra grávida acabou por perder o bebé, depois de ter sido atendida, em dias diferentes, nos hospitais de Setúbal, do Barreiro e de Almada, onde se dirigiu queixando-se de dores, mas foi, após os devidos exames, sucessivamente mandada para casa. Dias depois foi encaminhada para Cascais, onde não teve vaga, seguindo então para o Hospital de Santa Maria, tendo o bebé morrido pouco depois de nascer.
Por sua vez, um homem que sofreu um acidente de trotineta, e que sofreu um traumatismo craniano, teve de ser transportado, do hospital da Covilhã para o hospital de Coimbra, de helicóptero. Só que, como o único helicóptero da Força Aérea que voa durante a noite é demasiado grande e pesado para aterrar nos heliportos destes hospitais, o paciente foi transportado de ambulância da Covilhã para o aeródromo de Castelo Branco. Voou daí para Cernache, sendo depois transportado para o hospital de Coimbra, novamente de ambulância. Demorando, ao todo, entre hospitais, cerca de cinco horas. Isto porque o Governo teve de recorrer às Forças Armadas para colmatar o facto de o concurso para a assistência de transporte de doentes em helicóptero ter sido ganho por uma empresa de Malta que não tem ainda os meios aéreos suficientes para assegurar essa mesma missão, pelo que não a cumpre.
Depois dos três casos, a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, prestou declarações aos jornalistas. Em relação à primeira grávida que perdeu o filho, a ministra afirmou: “A forma como eu vejo o exercício da governação é assumir responsabilidades resolvendo os problemas, e não demitindo-me.” E sublinhou que “o director executivo [do SNS] está a trabalhar” num plano de reorganização dos serviços de urgência, acrescentando que, “muito brevemente, ele será apresentado ao Governo”, e frisando: “É, aliás, algo que estava no plano de emergência e que está no programa do Governo.”
Já após o caso da segunda grávida que perdeu o seu bebé, a ministra da Saúde voltou a prestar declarações aos jornalistas para dizer: “No dia em que o senhor primeiro-ministro, que é o meu primeiro-ministro, entender que chegou ao fim a minha missão, nesse dia, eu termino. Até lá, permanecerei, porque governar é enfrentar problemas e assumir responsabilidades, encontrando soluções. Nada para além disso. É assim que eu vejo a governação e assim será até ao último momento.”
E sobre o caso do transporte do paciente entre a Covilhã e Coimbra, Ana Paula Martins voltou a garantir: “Eu estou absolutamente de consciência tranquila, naturalmente, e todos os dias trabalho — quero que os portugueses saibam isso — para resolver problemas.” Acrescentando: “Nunca desistirei de nenhuma das missões que me forem conferidas pelo primeiro-ministro.”
Na quarta-feira, Ana Paula Martins deu uma entrevista à SIC, que pouco mais foi do que uma tentativa de operação de charme, em que até falou de si e da sua experiência numa gravidez. Quanto a soluções, pouco se ouviu. A não ser que, em Setembro, o Hospital Garcia de Orta, em Almada, vai ter as urgências de obstetrícia abertas, porque foram contratados médicos que estavam no sector privado. Bem podia o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, ter esperado sentado que fosse explicado como vai o SNS funcionar nos próximos quatro anos, como tinha previsto à tarde, em declarações aos jornalistas.
No fundo, a ministra Ana Paula Martins tem razão em não se demitir. O primeiro-ministro, Luís Montenegro, ao escolher a composição do seu segundo e actual Governo, manteve-a como titular do Ministério da Saúde. E, convenhamos, que nenhum membro de um governo tem tal autonomia que o torne responsável absoluto sobre as políticas sectoriais. Logo, o problema não é a ministra, nem fica resolvido com a sua demissão. A responsabilidade é do primeiro-ministro, como sempre, em qualquer governo.
A questão que se coloca não é, também, a de saber quando a ministra da Saúde é substituída. A dúvida é a de perceber se Luís Montenegro esqueceu o SNS e o papel vital que este tem de prestar. Não acredito que o primeiro-ministro ignore a importância deste pilar do Estado Social, que é essencial para as populações. Mas estranho que o líder de um partido com a história do PSD na democracia portuguesa descure o SNS e não tenha ainda dado a cara e explicado o que se passa com o aparente desleixo que grassa no SNS.
Onde está o primeiro-ministro? Por que razão não fala sobre o SNS? Parece que Luís Montenegro apenas tem como prioridade e preocupação combater a imigração, e que elegeu a propaganda populista radical de direita como bandeira, e como prioridade, para fazer de conta que governa. Até em Espanha, no congresso do Partido Popular, no sábado, fez questão de se vangloriar da prioridade dada ao combate estigmatizante dos imigrantes, continuando a associá-lo à segurança pública.
Será que tudo isto acontece por incapacidade? Será incúria? Ou é mesmo a vontade de fazer rebentar parte do SNS? De levar a população a pensar que há departamentos de saúde pública que não podem funcionar? Criar a ideia na sociedade, levar as pessoas a aceitar que há áreas em que apenas a medicina privada funciona. Claro que, em causa, estará a privatização apenas de mais alguns serviços, e não de todo o SNS. Até porque os operadores privados na área da saúde não o querem. Há departamentos médicos do SNS que são demasiado complexos e têm demasiados custos para serem rentáveis. Mas há muito que ainda pode ser privatizado. Quem sabe se vai ser a solução para o INEM? Afinal, até já foi aprovada uma comissão de inquérito parlamentar ao seu funcionamento.»