19.7.25

Eu gosto disto

 


Vaso Zsolnay de cerâmica, com decoração de pássaros e flores, Hungria, cerca de 1900.
Pécs Zsolnay.

Daqui.

Peguem lá o soneto e vão com Deus

 


19.07.1975 – Mário Soares na Fonte Luminosa




No seguimento do chamado «caso República», depois de muitas peripécias, o jornal saiu para a rua em 10 de Julho de 1975, com o nome de um director nomeado pelo MFA (e não com o de Raul Rego). Os ministros socialistas que faziam parte do IV Governo Provisório (Mário Soares, Salgado Zenha e Almeida Santos) pediram a demissão, e foram seguidos pelos do PSD, o que provocou a queda do Governo e a sua substituição pelo seguinte – o quinto e último presidido por Vasco Gonçalves –, que tomou posse em 8 de Agosto.

Entretanto, no dia 19 de Julho, o PS organizou a famosa manifestação da Fonte Luminosa – marco importante na história daquele Verão quente de 1975.

Foi António Guterres que organizou o comício, no qual discursaram vários dirigentes socialistas, sendo Salgado Zenha o penúltimo e Mário Soares a encerrar, com um discurso violentíssio contra o PCP e o governo de Vasco Gonçalves. Alguns excertos desse discurso (tirados de O Portal da História).

«O dia de hoje foi um dia grave na história do nosso povo. Depois de uma campanha alarmista de boatos sem precedentes, de uma ‘intentona’ artificial, de uma falsa conjura com intenção de enganar o povo; depois disso, organizaram-se barreiras para impedir que o povo dos arredores de Lisboa, deputações do povo de Portugal viesse aqui manifestar-se livremente, em favor da liberdade, da democracia, do socialismo. (...)

É uma cúpula de paranóicos, a direcção do PCP. É uma cúpula de irresponsáveis a dos dirigentes da Intersindical, que não representam o povo português. E as Forças Armadas, dando cobertura a esses irresponsáveis, indo acreditar que havia uma marcha sobre Lisboa, que nunca existiu – que só existiu na cabeça desses paranóicos – constituíram também graves responsabilidades. (...)

Dizemos que a reacção não passará, mas digamos também que a social-reacção não passará. Temos dito, e prova-se na prática da nossa acção política quotidiana, que nós não somos anticomunistas. Quem está a provocar o anticomunismo, como nem Caetano nem Salazar foram capazes de provocar é a cúpula reaccionária do PCP. (...)

A situação portuguesa é de tal maneira grave, o ambiente requer um Governo de salvação nacional e de unidade das forças políticas, que nós dizemos daqui ao Presidente da República e ao Conselho da Revolução que o primeiro-ministro designado para constituir o 5.º Governo Provisório não nos parece ser neste momento um factor de coesão e de unidade nacional. Portanto dizemos-lhes, com a autoridade de sermos um partido maioritário na representação do povo português, que será melhor eles escolherem uma outra individualidade que dê mais garantias de apartidarismo real, para que possa formar um governo de coligação nacional. (...)

O MFA que faça pois atenção, porque a hora é de autocrítica, é de emendar os erros passados. E esse MFA que iniciou esta revolução que foi chamada justamente a mais bela da Europa, uma revolução das flores, esse MFA se escutar a voz do Povo, tem todas as condições para, aliado ao Povo, poder salvar ainda a nossa revolução que está em perigo, porque há aqui e ali manchas de contra-revolucionários que querem polarizar à sua volta o descontentamento provocado pelo sectarismo e pelo fanatismo intolerável dos sociais-reaccionários que são a direcção do PCP». (...)

Este foi um dia de vitória. Tenhamos confiança no futuro, tenhamos confiança no nosso Povo. A revolução está em marcha e não pára.

Venceremos!»
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O mundo é dos brutos — a ascensão da violência e a queda da empatia

 


«Qualquer pessoa que conheça história sabe que aquilo a que chamamos “civilização” é muito mais frágil do que a crueldade, a violência, a prepotência, a vingança, o poder absoluto e brutal. Não é preciso sequer escolher grandes períodos da história, a “civilização” é uma raridade, acontece por pequenos períodos, torna a vida dos que vivem nesses tempos melhor e depois esgota-se e acaba. Não me interessa fazer grandes exercícios analíticos sobre qualquer das palavras que estou a usar, seja civilização, seja barbárie, toda a gente sabe a diferença entre um mundo, imperfeito que seja, desigual, muitas vezes injusto, mas onde as pessoas são senhoras do seu destino pelo voto, vivem no primado da lei, têm liberdade religiosa, acedem a condições mínimas de existência. Para contrariar o meu argumento podem vir com mil exemplos de imperfeição, de injustiça, de exclusão, mas o que sobra é melhor do que um mundo com pena de morte, tortura, censura, ausência de direitos, em que todos são indefesos face aos mais fortes.

A “civilização” como a conhecemos no mundo democrático ocidental está a acabar, diante dos nossos olhos, pela ascensão da brutalidade, da educação dos jovens pela distracção, da ignorância e do valor da força, do individualismo agressivo, do culto da ignorância e do pseudo-igualitarismo das redes sociais. A violência torna-se a regra nas relações como “outro” e o “outro” é fácil de encontrar nas nossas ruas, os imigrantes.

Não adianta virem-me dar lições de que este catastrofismo civilizacional é recorrente em certos momentos da história cultural, o que é verdade. Mas também é verdade que a catástrofe já ocorreu várias vezes, uma das quais nos anos 20-30 do século passado. O mundo que filósofos como Comte entendiam ter entrado numa senda de “progresso”, com a revolução técnico-científica do final do século XIX, entrou na barbárie da I e da II Guerra com milhões de mortos e anos de brutalidade em vários países “civilizados” da Europa e na URSS.

Há muitas explicações socioeconómicas para esta crise civilizacional, muito sérias, mas a guerra cultural dos nossos dias tem um papel fundamental. O culto imberbe pela modernidade, assente num deslumbramento tecnológico que oculta muita preguiça e manipulação, em que meia dúzia de gestos num telemóvel, explorando três ou quatro funções simples, passam por um saber semelhante ao falar português sem um erro ortográfico a cada palavra, a arrogância de dar opiniões sobre coisas que não se viram, ouviram e leram — tudo isto ajuda a erodir a frágil democracia porque “molda” a cabeça. É o que já cá está e o que vem aí.

Basta ver o X para se perceber o impacto em quem vive dependurado nas redes do que lá encontra: cenas de violência em que velhos, mulheres e brancos são atacados por imigrantes, em que mulheres de burka reclamam a conversão da Europa ao Islão, cenas de pancadaria para “punir” um ladrão ou um molestador apanhado em flagrante por “cidadãos verdadeiros”, acidentes de automóvel com pancadaria, uma sucessão elogiosa de enormes explosões na Síria, no Líbano, em Gaza, com origem nos “amigos de Israel”, a generalização da palavra “traidor” para designar quem não participa da fúria anti-imigrante e não quer participar na chamada “remigração” (e porque não organizar uns pogroms?), etc., etc.

No Instagram e no TikTok, um bom exemplo da platitude intelectual dos nossos dias é a classificação de “influenciadores”. Uma pequena multidão compete por essa “influência” nas redes sociais, alguns/algumas com alguma imaginação e esperteza, mas, por regra, com uma absoluta indigência intelectual, gigantesca ignorância, muito mau carácter, e truques de ganância que é, nos nossos dias, o principal motivador dinâmico do comportamento. Esses “influenciadores”, na sua maioria do sexo feminino, actuam para um público adolescente, também na sua maioria feminino, mas atingindo um público muito mais vasto e para além do nível etário da adolescência, embora, como se saiba, nos dias de hoje é-se jovem até aos 35 anos.

Alguns/algumas já cometeram crimes, desde violência sobre crianças (a história do banho de água fria para calar os berros da filha) ao atropelamento e fuga de um “criador de conteúdos”, forcado e apoiante do Chega. Ambos gabaram-se destes feitos, porque tudo é bom para terem os célebres 15 minutos de fama, e acabaram em tribunal. O facto de terem feito estas violências sem qualquer hesitação moral significa que olharam para elas como olham milhares de pessoas cuja principal preocupação, quando assistem a uma qualquer violência sobre os mais fracos, é puxar do telemóvel e filmar, para terem “material” para colocar nas redes sociais, e não ajudar.

No plano político, nestes “influenciadores”, predominam os homens e o Chega. Produzem uns comentários indigentes, mas sublinhando os temas da propaganda do partido, e fazem quase de imediato uns pequenos filmes em que qualquer das personagens da direita radical que tenha um debate com alguém à esquerda “arrasa”, “esmaga”, com imagem a condizer. As redes sociais, o YouTube, o Instagram, o TikTok estão cheios destes produtos, que funcionam como multiplicadores e são consumidos por um público jovem e adulto, o jovem mais atraído pela distracção que dá o confronto, quem “ganha” e quem “perde”, o adulto procurando um espelho daquilo que já pensa.

Este submundo é hoje o mundo. Sem princípios, sem saber, sem mediação, com apologia da força, elogio da violência e hostilidade aos mais fracos. Já estão a ganhar e, se os justos não lhes respondem alto e bom som, ainda vai ser pior.»


18.7.25

A teia da extrema-direita

 

«O acordo entre Montenegro e Ventura em matéria de regulação da imigração e restrições na obtenção da nacionalidade confirmou que a adesão da direita moderada a algumas das teses da extrema-direita avança sem controlo. E, se depender dos extremistas, a imigração será uma das questões que vão rodear a próxima legislatura. Basta ver como André Ventura se regozijou com o que alcançou com o primeiro-ministro, que deitou por terra o "não é não". É que a aceitação gradual de Luís Montenegro das posições do Chega incentiva a extrema-direita a radicalizá-las. Não tarda, estarão a exigir a deportação de 1,5 milhões de imigrantes que escolheram Portugal para trabalhar ou mesmo os de segunda geração, já nascidos em Portugal, como está o Vox a pedir em Espanha.»

Continuar a ler AQUI.

Foi assim na AR

 


Nelson Mandela

 


Seriam 107.

Aguiar-Branco é frouxo com Ventura e fanfarrão com o PS

 


«Quando ouvi Ventura a dizer que José Luís Carneiro era frouxo, até mais frouxo do que Pedro Nuno Santos, confesso que não achei nada sobre o assunto. Ventura tem dito tanta coisa sem travões na Assembleia da República que chamar frouxo ao comportamento de alguém não é nada, ainda que frouxo tenha conotações populares aborrecidas.

Mas a prova de que este debate do estado da nação teve um grande momento de sitcom foi quando, em resposta à acusação de “frouxo”, o educadíssimo José Luís Carneiro disse que “nunca tinha visto um deputado tão fanfarrão” como Ventura.

José Pedro Aguiar-Branco, para quem se “pode” dizer tudo na Assembleia da República, do racismo à xenofobia, da acusação de “corruptos” aos deputados da frente que governaram o país em muitos dos últimos 30 anos, em nome da liberdade de expressão, ficou chocado com a palavra “fanfarrão”.

Isto parece inventado e é bom material para sketch humorístico. José Pedro Aguiar-Branco afinal é uma flor muito sensível – mas só com alguns e com certas palavras. Fanfarrão é insulto onde? Edite Estrela disse isso mesmo ao presidente da Assembleia mas não obteve resposta. José Pedro Aguiar-Branco podia ter ido num instante ao Priberam mas se calhar não quis passar por uma vergonha.

Fui ao Priberam comparar as duas expressões. Deixei de lado outros dicionários online porque incorporam o sentido popular da palavra “frouxo”, que é desagradável e – digamos – pouco inclusivo.

No Priberam, “fanfarrão” é “aquele que alardeia valentias próprias, porém falsas ou exageradas” e também é sinónimo de “gabarola” e “bravateiro”.

A cena frouxo-fanfarrão podia ser apenas aquele momento a que os ingleses chamam de “comic relief” num dos debates mais importantes do ano. Mas, infelizmente, de uma maneira ridícula, consagra mais uma vez Aguiar-Branco como o protector do Chega na Assembleia.

Aguiar Branco, que nem tinha ouvido o “frouxo” de Ventura, depois de Carneiro lhe explicar que tinha sido acusado de “oposição frouxa”, defendeu Ventura. Segundo o presidente da Assembleia pode-se dizer que “uma oposição é frouxa”, não se pode dizer que alguém é fanfarrão, porque uma coisa é um ataque pessoal e outra um ataque político. Acho que Aguiar-Branco não estudou semiótica. Talvez Carneiro se tivesse safado se tivesse dito que “nunca tinha visto nenhum deputado a fazer uma oposição tão fanfarrona como Ventura”. Ou então não.»


O Luís trabalhou

 


17.7.25

Autárquicas em Lisboa

 


O PCP não quis entrar nesta coligação das esquerdas. Nem sonho que probabilidade tem A. Leitão de vencer Moedas, mas pode perder por uma diferença inferior aos votos do PCP.

Na eleição anterior não havia coligação à esquerda e Medina perdeu para Moedas apenas por 2.294 votos. O PCP teve 25.520.

17/18.07.1936 – A Guerra Civil Espanhola

 


Na noite de 17 para 18 de Julho de 1936, teve início a terrível Guerra Civil Espanhola que iria durar quase três anos.

**** Muita informação em arquivos da RTP

**** Um conjunto de textos em El País.

**** Dois vídeos:






**** Canções emblemáticas:




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João Semedo

 


Sete anos sem ele.



5% em defesa é perfeitamente defensável

 


«Ainda sou do tempo em que o nosso objectivo era aumentar o orçamento de Defesa para 2% do PIB. No entanto, ao contrário do que costuma acontecer quando alguém começa uma frase com as palavras “ainda sou do tempo”, desta vez o desabafo não denuncia a minha idade avançada. Quando recordo o tempo em que se pretendia subir os gastos em defesa para 2% do PIB refiro-me a Maio deste ano. No fim de Junho, porém, o objetivo passou a ser 5%. Foi tudo bastante rápido. Ainda estávamos a tentar perceber as contas que nos tinham levado a concluir que 2% era um número sensato. Mas depois Donald Trump foi à cimeira da NATO sugerir 5%, e os 32 Estados-membros concordaram que era uma excelente ideia. Enfim, nem todos. Os Estados Unidos, por exemplo, já avisaram que vão continuar a gastar menos de 3,5%. Mas os outros comprometeram-se com a meta dos 5%. Procurei na imprensa a justificação para o objectivo ter passado a ser 5% (em vez de 4,5%, ou 3,75%, ou 2,97%), mas não encontrei. Fiquei apenas com a sensação de que se trata de uma das ideias mais pacifistas de sempre. Em Maio, havia um relativo consenso relativamente ao facto de a meta dos 2% exigir a Portugal um esforço muito difícil. E se 2% é muito difícil, isso significa que 5% é impossível. Ora, perante uma tarefa muito difícil, o nosso país teria de se empenhar a sério. Mas quando o que se pede é impossível, parece-me que ficamos desobrigados sequer de tentar.

De acordo com o Expresso, quando a meta estava ainda nos dificílimos 2%, Portugal ia valer-se do seu melhor recurso: a doce vigarice. Não é bem vigarice, note-se. É doce vigarice. O nome técnico é “reclassificação de despesa”. Para cumprir o objectivo dos 2%, o nosso país inclui, no orçamento da Defesa, verbas que possam de algum modo ser interpretadas como militares. Por exemplo, os meios de combate aéreo a incêndios florestais passam a contar como despesa com Defesa, na medida em que são incorporados na força aérea. As pensões dos militares também passam a ser comunicadas à NATO como fazendo parte do orçamento da Defesa. Investimentos em fábricas de têxteis são, evidentemente, despesa militar, uma vez que essas fábricas podem ser utilizadas para produzir fardas. Agora é aplicar o mesmo raciocínio a outros gastos. Construir maternidades é, sem dúvida, despesa militar, pois é de lá que saem futuros soldados. Investimento em educação constitui, como me parece óbvio, despesa militar. As aulas de geografia são fundamentais para ensinar onde ficam os países aliados e inimigos, as de português são decisivas para interpretar ordens, as de matemática servem para contabilizar munições. Novos prédios de habitação terão forçosamente de ser incluídos no orçamento da Defesa, pela capacidade de serem também usados como quartéis. Cada cozinha é uma potencial messe; cada despensa, um hipotético paiol. Ter uma casa que de vez em quando pode ser usada pela NATO é melhor do que não ter casa nenhuma. Com jeito, ainda convencemos a NATO a pagar a renda.»


Não tens casa?

 


16.7.25

Gás e luz

 


Luzes de rua a gás, Paseo de Gracia, Barcelona. Cerca de 1890.
Pere Falqués.

Daqui e não só.

Montenegro e a esquerda

 


LM teve o cuidado de quantificar os partidos de esquerda que ousam «enfrentar» a maioria: BE/PAN (1), PCP (3), LIVRE (6). Desta vez, ainda não disse nomes mas lá chegará como o seu amigo Ventura.

Prefiro não usar adjectivos para classificar este ser.
 

Daqui.

Uma pedra no meio do caminho

 


O preço da “abstenção” socialista

 


«Com o entendimento entre PSD e Chega no que há de fundamental na lei da nacionalidade e nas mudanças na imigração, que teve como extra outro no IRS, não faz sentido continuar a falar do “não é não”. Morreu. E, com esta morte, alterou-se o xadrez político.

Até agora, Montenegro fazia um jogo de dupla chantagem, em que atirava para o PS e para o Chega a responsabilidade de qualquer crise política, mesmo que fosse, como foi a última, procurada por si. Com o resultado eleitoral, percebeu que o Chega nunca será punido. Isto poderia levá-lo a entender-se com o PS, mas teme entregar a oposição ao Chega, onde é muitíssimo mais eficaz do que o PS, e insuflá-lo. Por isso, o jogo mudou.

Tudo o que é essencial é negociado com o Chega, sobretudo o que é essencial para o próprio Chega. Onde deveria haver um cordão sanitário, o Chega é o interlocutor, assumindo o próprio PSD, em estilo sempre ligeiramente menos agressivo, a agenda da extrema-direita. Até porque, como já escrevi, esta agenda desvia atenção dos dois grandes falhanços do governo: saúde e habitação. Quando chegar a hora de aprovar a fatura, encosta o PS à parede, responsabilizando-o por uma crise. A postura colaborativa do PS (sem que o PSD esteja disponível para essa colaboração) tornará difícil a Carneiro fazer qualquer corte nessa altura. Teria de trabalhar nesse corte agora.

A estratégia de José Luís Carneiro é esperar por uma crise para pôr as garras de fora. Seja uma crise económica, seja uma crise política por Montenegro ser arguido. Quanto à primeira, se e quando ela chegar, é o Chega que estará preparado para colher os louros. Ventura tem garras que Carneiro nunca terá. Quanto à segunda, acontecerá o mesmo, com a agravante de ainda não ter sido compreendida a escolha de Amadeu Guerra para procurador-geral da República. Quem não percebeu, reveja o papel a que se prestou, com a absurda abertura de um processo a Pedro Nuno Santos nas últimas eleições.

É bom recordar que o entendimento com a extrema-direita não resulta da moderação do Chega. Pelo contrário. Foi o PSD que se aproximou, como se pode verificar neste artigo do Expresso. No passado, o PSD esteve, com mais ou menos discordâncias, alinhado com os mesmos valores do PS nos debates sobre a nacionalidade e a imigração. Até chegar ao governo, o PSD só votou ao lado do Chega uma vez nestes temas. Só no final do ano passado se começou a aproximar da extrema-direita. Até chegar à semana passada, em que o alinhamento se tornou geral, com Montenegro a dizer que o Chega “é um partido que tem apresentado pontos de vista que, de uma forma genérica, se enquadram em mais regulação e mais capacidade de integração”. No essencial, o pacote legislativo do governo integra a agenda do Chega.

Esta clarificação nasce do resultado eleitoral, das vantagens em haver manobras de diversão (que venha o debate sobre as burcas e os “ocupas”) para a ausência de resultados no que é importante e da convicção de que o PS, desta vez, não quer fazer a oposição. Voltou às “abstenções violentas”.

Enquanto se percebia que Pedro Nuno Santos desejava o lugar que os eleitores lhe destinaram (liderar a oposição), era preciso manter a tensão que lhe dificultasse essa escolha (e mesmo assim era sovado por comentadores que agora deixaram o PS, adormecido, em paz) e Montenegro tinha de manter o jogo duplo. Mal o PS se mostrou realmente disponível para um bloco central informal, Montenegro pôde descansar e dedicar-se apenas à relação com o Chega. E o Chega, tendo segura a liderança da oposição e o PS totalmente anestesiado, também se pode entender com o PSD. Não tem de competir com os socialistas.

Muitos acreditavam que se o PS se deslocasse para o centro para dar a mão ao PSD, salvaria a direita democrática. Pelo contrário, a política funciona como um balancé. Ao deslocar-se, o PS contribuiu para acentuar o desequilíbrio, permitiu que o PSD se deslocasse mais para a direita e, ao deslocar-se mais para a direita, normalizou as posições do Chega, tornando mais fáceis os entendimentos políticos. A estratégia defendida pelos falsos amigos dos socialistas levou o PS a anular-se e, com isso, a acentuar a perigosa rampa deslizante a que assistimos. Uma rampa que também influencia as posições do eleitorado. Até os autarcas do PS estão a ser levados nesta avalanche, como se vê em Loures, na Amadora ou em Benavente. Mas isso deixo para outro texto.

Esta posição do PS também contou com o contributo dos resultados dos partidos mais à esquerda, que deixaram de ser um risco no seu flanco esquerdo. O que quer dizer que a única forma de reequilibrar a política seria crescer, como acontece nos EUA, pode vir a acontecer no Reino Unido e aconteceu, no passado, em França e em Espanha, uma alternativa forte mais à esquerda. Por agora, não parece provável. O PCP está em defesa do forte sitiado, o BE está em coma e o Livre não tem implantação social e foco para cumprir essa função. Veremos se as coisas mudam, ou se a via portuguesa será a italiana, em que a esquerda não centrista desapareceu do espaço institucional, o que levou, como não podia deixar de ser, uma figura como Meloni ao poder. Seja qual for o futuro, a normalização do Chega acabou com os problemas da direita. O PSD já não paga, como se está a ver, qualquer preço por se entender com a extrema-direita, mesmo nas questões mais sensíveis. O que devia fazer a esquerda perceber que não tem de salvar quem nunca quis ser salvo. Tem de recuperar o lugar de oposição firme ao governo mais à direita da nossa história democrática. Tão à direita, que nem os valores básicos da fundação do PSD se mantêm intactos.

O papel da esquerda não é fazer oposição ao Chega. Não é tentar manter um cordão sanitário de que não resta qualquer vestígio. É ser a oposição a este governo. Tem até a vantagem de o chumbo do próximo Orçamento de Estado não poder resultar na dissolução do Parlamento. Se a esquerda não cumprir o seu papel, isto vai descambar ainda mais e ainda mais depressa.»


Artigo 13º

 


15.7.25

Existimos?

 


AD + CHEGA – Alguma dúvida?

 


«O primeiro-ministro admitiu esta tarde, numa conferência promovida pela SIC Notícias na sede do grupo Impresa (dono da SIC e do Expresso), que o Chega pode ser colocado como “alternativa futura de Governo”, razão pela qual o Governo o procura para um “consenso alargado” visando o aumento do investimento público na área da Defesa (tema da conferência) e não apenas ao PS, apesar do apelo para um pacto nos próximos três meses feito pelo secretário-geral socialista. Para Montenegro, PS e Chega estão no mesmo patamar.»


Moedas na CML?

 


AD-ega? Não é boa ideia

 


«Nunca me imaginei a ter saudades do momento em que a primeira prioridade do governo da AD foi mudar um logótipo. Os sinais que o novo Governo está a dar atestam o fim do “não é não” de Luís Montenegro, que sempre foi mais retórico do que real, dado que as suas piscadelas de olho à extrema-direita, durante a legislatura anterior, foram mais que muitas. A AD-ega é a nova “geringonça”, nesta coligação informal que se estabelece entre a AD e o Chega. O problema é que é mais do que uma coligação. É a submissão de um governo e a rendição a uma agenda perigosa de um partido que vive da destruição de valores de solidariedade e humanismo.

Percebe-se a estratégia de Luís Montenegro. Quer puxar para si alguns dos temas da extrema-direita, numa tentativa de esvaziar a agenda daquele partido e, eventualmente, de cativar parte do eleitorado que fugiu da abstenção , do PSD e até do PS para lá (cabe aqui relembrar o estudo divulgado pelo Professor António Costa Pinto que contradiz a ideia de que houve uma deslocação em massa de voto do PCP ou do PS para o Chega: 21% dos novos eleitores do Chega vêm da abstenção e da AD e apenas 7% e 1% do PS e da CDU, respetivamente).

Esta é a leitura benigna. A de que tudo se resume a um taticismo algo básico. A outra hipótese é a de que Luís Montenegro esteja a agir por convicção e que, verdadeiramente, acredite que o caminho para a governação é este. Estimo que a verdade esteja algures no meio, mas não duvido de que existe uma convicção enorme, num caminho de destruição de uma matriz democrática do PSD a que, felizmente, alguns resistem e que tem levado à indignação (e até afastamento) de alguns militantes que não reconhecem em Luís Montenegro a sucessão dos valores de Sá Carneiro.

A AD-ega não é uma boa ideia por várias razões.

Porque parte de uma deturpação de prioridades. Colocar a imigração como primeiro tópico de intervenção, ainda por cima nos termos em que tal foi feito, com propostas que ferem os princípios da nossa constituição, como bem notou o Professor Jorge Miranda, entre outros, é ceder a uma narrativa imposta pela extrema-direita. Falo de narrativa de forma consciente. O Chega tem sido altamente eficaz, através das suas estratégias recorrentes de difusão em massa de informação falsa, em criar um conjunto de perceções sobre imigração, pedidos de nacionalidade ou associações entre criminalidade e imigração. Há três ou quatro anos não havia este discurso público anti-imigração ou, mesmo quando não é de antagonismo, de manifestação de uma preocupação com o tema. E não existia porque, de facto, como os números mostram, não há um problema que justifique as medidas e o discurso adotado. Portugal não tem uma taxa de imigração preocupante, precisa da imigração para a sua sustentabilidade, não gasta mais do que recebe com os imigrantes, não tem uma criminalidade crescente nem associada à imigração, os pedidos de nacionalidade não são maioritariamente dos oriundos dos países que o Chega despreza (nem sequer de residentes!). O Chega foi tão eficaz que conseguiu contaminar o Governo (e até alguns autarcas do PS) com este discurso.

A natureza das medidas adotadas é completamente equivocada. O foco tem de ser no combate às máfias de exploração de pessoas e à melhoria das condições de vida para todos (imigrantes e não imigrantes) e não no combate às pessoas que nos procuram e que querem contribuir para o país como um todo e para a melhoria das suas vidas. Não se integra ou inclui hostilizando e dificultando a vida a quem chega a Portugal. São inqualificáveis algumas declarações na Assembleia da República de Leitão Amaro, que bem pode dizer-se humanista mas se trai no seu discurso. O regozijo do Chega com algumas das iniciativas aprovadas é o sinal da recompensa das suas falsidades propaladas.

O Governo está a cair numa armadilha perigosa. A agenda do Chega não tem nada a ver com preocupações com a imigração. São apenas racistas. Porque não leem os nomes de crianças de origem americana ou francesa. Porque não se pronunciam sobre nómadas digitais ou sobre americanos trumpistas ou brasileiros bolsonaristas que também nos procuram. São seletivos na discriminação e no ataque. E o Governo, ao se coligar, alimenta, espero que inconscientemente, este racismo militante.

As palavras importam. Os de pele escura e baixas qualificações são imigrantes. Os louros com estudos são “expats”. Na verdade, são todos pessoas, mas isso parece não importar para a AD-ega.

Acresce que o Governo não parece aperceber-se do perigo que traz para o país. A manchete do Diário de Notícias que revela que a criminalidade baixou 1,3% mas as notícias sobre crimes aumentaram 130% devia fazer o país parar. Governar a partir de perceções é errado porque é desonesto. Governar não é dizer o que as pessoas querem ouvir apenas porque isso dá votos. É, sobretudo, falar verdade, mesmo quando essa verdade é difícil até para quem governa. O mesmo PSD que inaugurou o seu “fact-check” não hesita em valorizar as ideias construídas pelos agentes da desinformação. A forma como a ex-Provedora de Justiça, atual Ministra da Administração Interna, desvalorizou a ex-Provedora de Justiça no relatório sobre a rusga no Martim Moniz revelou solidariedade com um Primeiro-Ministro que elogiou uma ação desproporcionada em nome das perceções. A forma como Carlos Moedas lamentou que a sua cidade esteja mais segura é um sinal preocupante do contágio do discurso radical. O perigo é óbvio. Basta lembrar a história de “Pedro e o lobo”. Quando for verdade, já ninguém acredita, porque fomentam que se acredite antes de ser verdade. A credibilidade das políticas passa pela sua adesão a problemas reais e não empolados ou imaginados. O PSD não parece entender que o original é sempre melhor do que a cópia. Ao investir na AD-ega, está a valorizar um ideário que – espero – não é o seu, alimentando um monstro que, um dia, o vai comer.

Luís Montenegro ainda está a tempo de emendar a mão. O Presidente da República ainda pode lembrar-se que é coautor da Constituição, cabendo-lhe proteger os valores fundamentais do nosso país. As bases do PSD podem mostrar que não é esta a sua matriz. O PS pode fazer a oposição séria de que o país precisa, mostrando o perigo do caminho que se iniciou com este Governo e apresentando propostas robustas e adequadas ao que é, de facto, real.

Diz-se, muitas vezes, que André Ventura está empenhado em transformar o Parlamento numa tasca. A isso contraponho que as tascas têm muito mais dignidade e valor do que o populismo de Ventura. Ainda que as adegas tenham melhor reputação junto do ideário popular, que esta AD-ega não continue o seu caminho e que Luís Montenegro arrepie caminho. A bem de todos nós.»


14.7.25

Luzes em duplicado

 


Candeeiros de mesa de vidro incolor multicamadas, com decoração floral em alto relevo. Cerca de 1907.
Émile Gallé.

Daqui.

Milos Forman



Miloš Forman, o cineasta nascido checo, mais tarde também norte-americano, morreu em 2018 com 86 anos. Teve  uma infância complicada: o pai, judeu, preso pela Gestapo quando Milos tinha apenas 8 anos, foi levado para Buchenwald onde veio a morrer em 1944, um ano depois de a mãe ter tido a mesma sorte em Auschwitz. Durante a invasão da Checoslováquia, em 1968, partiu para os Estados Unidos e em 1977 adquiriu a sua segunda nacionalidade.

Pretexto para recordar três filmes «monstruosos»: Amadeus, Voando sobre um ninho de cucos e o primeiro dos que vi – sem nunca mais perder o rasto do autor: O baile dos bombeiros.

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14.07.1918 – Ingmar Bergman

 


Ingmar Bergman chegaria hoje aos 107. Foi durante alguns anos o meu cineasta de eleição e criou-me um fascínio tal pelos seus filmes, pelo ambiente em que se passavam e pelo seu país, que me fez gastar os primeiros tostões que consegui poupar: fui a um balcão da TAP, comprei um bilhete e pus-me a caminho de Estocolmo sem nada planeado.

Para não o esquecermos, alguns vídeos entre muitos outros possíveis:






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O diabo da TAP está nos pormenores

 


«Sem TAP não há hub em Lisboa. Sem hub em Lisboa o país perde a sua centralidade económica. Para a TAP dar a Lisboa o seu hub, é preciso uma política de rotas que tenha isso em conta. Não há caderno de encargos que o resolva. Isso é determinado por decisões operacionais diárias. Só o controlo público da empresa o pode garantir, quando temos concorrentes tão próximos e somos uma economia periférica.

O drama de termos um aeroporto a rebentar pelas costuras gerido por quem apenas o vê como uma máquina barata de fazer dinheiro é todas as oportunidades que perdemos, apesar da nossa centralidade na ligação entre a Europa e as Américas. E isso teve tudo a ver com a sua irresponsável privatização.

Por outro lado, a TAP precisa de crescer. E, para crescer, precisa de investimento (interdito aos Estados por uma União Europeia que trabalha para a concentração) e das ligações permitidas pelos grandes grupos de aviação. Desde que não tenham interesses conflituantes, como é o caso da Iberia, só temos a ganhar, no contexto atual, com a abertura a capital privado. Tirando as rotas com os PALOP e com as ilhas, a função da TAP não tem de ser de serviço público. É a de uma empresa estratégica para economia nacional que, apenas por isso, deve continuar a ter controlo nacional que, como aprendemos com a banca, só é possível através do controlo público.

Se me permitem fazer o papel de Cavaco Silva e recordar posições passadas, sempre defendi a solução de privatizar a minoria da empresa. Diziam os desatentos que era um delírio. Que ninguém queria comprar a TAP sem ter a maioria. Sabia-se que isso não era verdade. Para os principais interessados, entrar na TAP é impedir que outros comprem o seu principal valor: a posição dominante nas ligações entre a Europa e o Brasil.

Impedir que a Iberia fique com uma posição totalmente dominante nas ligações com a América Latina, por exemplo. O interesse é pôr o pé na porta e impedir que outros lá estejam.

A decisão de Luís Montenegro de privatizar 49,9% da TAP (devia ser menos, para salvaguardar a necessidade de futuras capitalizações sem perder a maioria) corresponde à posição de Pedro Nuno Santos, diferente da que foi defendida, depois da sua saída do Ministério, por Fernando Medina e António Costa, que queriam a privatização total ou perto disso. Uma posição meramente contabilística, habitual em ministros das Finanças ou candidatos a lugares europeus, dominados pelo défice e totalmente desinteressados na importância estratégica das empresas.

Depois do que aconteceu à nossa banca, à REN, aos CTT, à EDP, à PT e à ANA, parece não se ter aprendido nada. A sucessiva desnatação da economia de um país sem moeda própria e muito limitado na capacidade de impor políticas económicas tem sido a nossa tragédia. Só não digo que resulta de ingenuidade por saber que interesses poderosos gravitam em torno de todos os governos. Não sou eu ingénuo a esse ponto.

Mas se a decisão do governo parece correta, o diabo está nos pormenores. Já nem falo de ter ouvido o primeiro-ministro a depreciar publicamente a empresa que pretende vender e que dá lucro. As suas intervenções raramente ultrapassam os limites da pequena política, do cálculo eleitoral, com total falta de pensamento estratégico ou de interesse nacional. E nem perco tempo com a escolha para chairman de mais um do círculo de poder de Montenegro, Passos e Pinto Luz, sem qualquer experiência relevante neste ramo. É mais arroz.

O que me deixa perplexo (ou talvez não) é ver o fantasma de David Neeleman à frente. Não o próprio, mas a aberração que levou a todos os equívocos: o Estado mantém a maioria, mas é o privado que trata da gestão quotidiana. A minoria manda como se fosse maioritária, a maioria está fora como se fosse minoritária. Estas falsidades nunca podem correr bem. São os que gostam de dizer que o Estado é mau a gerir o que é seu que encontram estas soluções, em que quem paga não manda.

Como se gerem as rotas, garantindo os interesses nacionais e a defesa do hub, se não se está na gestão quotidiana? No limite, até pode acontecer que a TAP venha a ser gerida por acionistas detidos ou comandados por outros Estados, como acontece na EDP. É perante este “pormenor” que a minha convicção inicial de que Pinto Luz estaria a pensar bem e não iria vender a TAP ao desbarato, como fez em 2015, se esmoreceu. Está tudo na mesma.»


14 juillet

 



Jessye Norman, 1989.

13.7.25

Cigarros

 


Pote para cigarros, Arte Nova, em bronze dourado e vidro. França, 1900.

Daqui.

Alguém tem dúvida?


 

Do Expresso.


13.07.1958 - Carta de um bispo do Porto a Salazar

 


Foi há 67 anos, cerca de um mês depois das eleições presidenciais de 1958 às quais Humberto Delgado tinha concorrido, que António Ferreira Gomes, bispo do Porto, escreveu uma longa e corajosa carta a Salazar, que lhe valeu dez anos de exílio em Espanha, França e Alemanha, entre 1959 e 1969.

Para muitos, sobretudo católicos, a conjugação destes dois acontecimentos – eleições com Delgado e carta do bispo do Porto – foi o verdadeiro pontapé de saída para a resistência e luta contra a ditadura durante as décadas que se seguiram.

Vale a pena ler ou reler o texto para se perceber a importância que teve na época.
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Nápoles e a Palestina

 


Afinal, o que pensa o primeiro-ministro sobre o SNS?

 


«Na última semana, a imagem do funcionamento do Serviço Nacional de Saúde (SNS) foi-se adensando nas preocupações dos cidadãos, devido a episódios diversos, mas que apontam para a eventual degradação deste importante serviço público, e que levantam a questão sobre qual o propósito do Governo do PSD e do CDS, em particular do primeiro-ministro, Luís Montenegro, em relação ao sector. Tanto mais que vai no seu segundo Governo, está à frente de executivos há mais de um ano e, quem sabe se por voluntarismo e ingenuidade de quem nunca tinha integrado um governo, fez uma campanha eleitoral, logo em 2024, a prometer apresentar soluções para os problemas do SNS.

Os episódios das últimas semanas são tão espantosos que nos levam a pensar se Portugal se pode considerar mesmo um país desenvolvido e do chamado primeiro mundo. De facto, se a situação não fosse trágica, era cómica. Os factos mais recentes levam à colocação de sérias dúvidas sobre a forma como é gerido e funciona o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM), e mostram a incapacidade de resposta em urgências de obstetrícia nestes casos em particular, no distrito de Setúbal.

Lembremos. Em duas semanas, no distrito de Setúbal, duas mulheres perderam filhos nos partos devido ao fecho de urgências médicas. Uma grávida de risco andou mais de uma hora a passear, dentro de uma ambulância, desde o Barreiro, onde reside, até ao Hospital de Cascais, onde finalmente foi atendida, depois de o Centro de Orientação de Doentes Urgentes não ter conseguido que ela fosse assistida, por falta de vaga, no hospital de Setúbal, no Hospital de Santa Maria ou na Maternidade Alfredo da Costa.

Antes, outra grávida acabou por perder o bebé, depois de ter sido atendida, em dias diferentes, nos hospitais de Setúbal, do Barreiro e de Almada, onde se dirigiu queixando-se de dores, mas foi, após os devidos exames, sucessivamente mandada para casa. Dias depois foi encaminhada para Cascais, onde não teve vaga, seguindo então para o Hospital de Santa Maria, tendo o bebé morrido pouco depois de nascer.

Por sua vez, um homem que sofreu um acidente de trotineta, e que sofreu um traumatismo craniano, teve de ser transportado, do hospital da Covilhã para o hospital de Coimbra, de helicóptero. Só que, como o único helicóptero da Força Aérea que voa durante a noite é demasiado grande e pesado para aterrar nos heliportos destes hospitais, o paciente foi transportado de ambulância da Covilhã para o aeródromo de Castelo Branco. Voou daí para Cernache, sendo depois transportado para o hospital de Coimbra, novamente de ambulância. Demorando, ao todo, entre hospitais, cerca de cinco horas. Isto porque o Governo teve de recorrer às Forças Armadas para colmatar o facto de o concurso para a assistência de transporte de doentes em helicóptero ter sido ganho por uma empresa de Malta que não tem ainda os meios aéreos suficientes para assegurar essa mesma missão, pelo que não a cumpre.

Depois dos três casos, a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, prestou declarações aos jornalistas. Em relação à primeira grávida que perdeu o filho, a ministra afirmou: “A forma como eu vejo o exercício da governação é assumir responsabilidades resolvendo os problemas, e não demitindo-me.” E sublinhou que “o director executivo [do SNS] está a trabalhar” num plano de reorganização dos serviços de urgência, acrescentando que, “muito brevemente, ele será apresentado ao Governo”, e frisando: “É, aliás, algo que estava no plano de emergência e que está no programa do Governo.”

Já após o caso da segunda grávida que perdeu o seu bebé, a ministra da Saúde voltou a prestar declarações aos jornalistas para dizer: “No dia em que o senhor primeiro-ministro, que é o meu primeiro-ministro, entender que chegou ao fim a minha missão, nesse dia, eu termino. Até lá, permanecerei, porque governar é enfrentar problemas e assumir responsabilidades, encontrando soluções. Nada para além disso. É assim que eu vejo a governação e assim será até ao último momento.”

E sobre o caso do transporte do paciente entre a Covilhã e Coimbra, Ana Paula Martins voltou a garantir: “Eu estou absolutamente de consciência tranquila, naturalmente, e todos os dias trabalho — quero que os portugueses saibam isso — para resolver problemas.” Acrescentando: “Nunca desistirei de nenhuma das missões que me forem conferidas pelo primeiro-ministro.”

Na quarta-feira, Ana Paula Martins deu uma entrevista à SIC, que pouco mais foi do que uma tentativa de operação de charme, em que até falou de si e da sua experiência numa gravidez. Quanto a soluções, pouco se ouviu. A não ser que, em Setembro, o Hospital Garcia de Orta, em Almada, vai ter as urgências de obstetrícia abertas, porque foram contratados médicos que estavam no sector privado. Bem podia o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, ter esperado sentado que fosse explicado como vai o SNS funcionar nos próximos quatro anos, como tinha previsto à tarde, em declarações aos jornalistas.

No fundo, a ministra Ana Paula Martins tem razão em não se demitir. O primeiro-ministro, Luís Montenegro, ao escolher a composição do seu segundo e actual Governo, manteve-a como titular do Ministério da Saúde. E, convenhamos, que nenhum membro de um governo tem tal autonomia que o torne responsável absoluto sobre as políticas sectoriais. Logo, o problema não é a ministra, nem fica resolvido com a sua demissão. A responsabilidade é do primeiro-ministro, como sempre, em qualquer governo.

A questão que se coloca não é, também, a de saber quando a ministra da Saúde é substituída. A dúvida é a de perceber se Luís Montenegro esqueceu o SNS e o papel vital que este tem de prestar. Não acredito que o primeiro-ministro ignore a importância deste pilar do Estado Social, que é essencial para as populações. Mas estranho que o líder de um partido com a história do PSD na democracia portuguesa descure o SNS e não tenha ainda dado a cara e explicado o que se passa com o aparente desleixo que grassa no SNS.

Onde está o primeiro-ministro? Por que razão não fala sobre o SNS? Parece que Luís Montenegro apenas tem como prioridade e preocupação combater a imigração, e que elegeu a propaganda populista radical de direita como bandeira, e como prioridade, para fazer de conta que governa. Até em Espanha, no congresso do Partido Popular, no sábado, fez questão de se vangloriar da prioridade dada ao combate estigmatizante dos imigrantes, continuando a associá-lo à segurança pública.

Será que tudo isto acontece por incapacidade? Será incúria? Ou é mesmo a vontade de fazer rebentar parte do SNS? De levar a população a pensar que há departamentos de saúde pública que não podem funcionar? Criar a ideia na sociedade, levar as pessoas a aceitar que há áreas em que apenas a medicina privada funciona. Claro que, em causa, estará a privatização apenas de mais alguns serviços, e não de todo o SNS. Até porque os operadores privados na área da saúde não o querem. Há departamentos médicos do SNS que são demasiado complexos e têm demasiados custos para serem rentáveis. Mas há muito que ainda pode ser privatizado. Quem sabe se vai ser a solução para o INEM? Afinal, até já foi aprovada uma comissão de inquérito parlamentar ao seu funcionamento.»


Lucidez