No suplemento P2 do Público de hoje, Fernando Rosas divulga um importante texto que aqui fica para quem não tenha tido oportunidade de o ler. Habituei-me a estar especialmente atenta a esta voz, «de topo», de certo modo a única que não tem andado envolvida nas tristes guerrilhas pós-eleitorais, que têm vindo a público durante as últimas semanas. (Os realces são meus.)
«Durante o passado fim de semana, alguns dos colunistas do costume voltaram a anunciar pela undécima vez o fim à vista do Bloco de Esquerda (BE). Desta feita, a debater-se com uma cavada e terminal dissidência interna potenciada pelos resultados das últimas eleições. Alguém terá de explicar a tais sábios que reincidem no erro ao confundir os seus desejos com a realidade, ou, para dizer as coisas como elas são, ao persistir em manipulá-la à luz de um velho e arreigado preconceito ideológico. Talvez por isso, resolvi desviar o nariz por umas horas dos trabalhos e teses dos meus alunos e aceitar o desafio do Público para escrever de minha justiça acerca do BE. Aí vai.
No trilho da esquerda grande
Glosou-se por aí, nestes dias de balanço pós-eleitoral, que, resolvidas as “causas fracturantes”, chegava agora ao fim o papel e a razão de ser do BE, nascido afinal como uma espécie de grupo urbano pró-modernização dos costumes. A afirmação merece atenção porque é duplamente falsa: não só as “causas fracturantes” se não esgotaram, como o Bloco aparece na sociedade portuguesa por razões políticas e ideológicas de fundo e que em muito transcendem essa visão diletante e falaciosa com que a direita e certas áreas do PS sempre o gostaram de identificar, em jeito de quem reduz e esconjura o perigo iminente.
Um perigo real para essa gente, é preciso dizê-lo. Porque o BE procurou e procura responder ao que era um vazio óbvio e essencial na esquerda: recriar o espaço político e ideológico dos muitos que se não reconhecem nem na rendição do PS à “terceira via”, ao blairismo e ao neoliberalismo, nem na ortodoxia de um PCP que ainda não matou o pai, que continua a identificar-se com os paradigmas da ex-URSS e a chamar de “irmãos” os partidos e regimes da China ou da Coreia do Norte.
Preencher esse espaço significa recriá-lo política e ideologicamente a todos os níveis: o BE surgiu neste contexto como o contrário do “partidão” vanguardista e manipulador, como um partido-movimento unindo várias esquerdas da esquerda à esquerda da rendição do PS e buscando pontes para se entender das formas mais variadas com todo o tipo de forças políticas, sociais, culturais, sindicais, etc… que se movimentam nesta área; o BE lá está na primeira linha das lutas do mundo do trabalho, mas quer ir além: pretende apoiar e dar voz, sem controleirismos absurdos, aos sectores populares emergentes na margem das organizações partidárias e sindicais tradicionais: os desempregados, os precários, os imigrantes, os movimentos de mulheres e de jovens, as minorias sexuais; o BE teve, e terá, neste quadro, uma intervenção decisiva para introduzir alterações históricas no regime dos direitos de cidadania: a legalização do aborto e dos casamentos gay, a criminalização da violência doméstica e o mais que está para vir.
Mas bem se compreende que o seu propósito vai muito para além deste item, aliás muito importante. Trata-se de criar, no sentido rigoroso do termo, um novo campo (político, social, cultural, económico) à esquerda, uma Esquerda Grande, combativa, moderna, plural que possa suportar social, política e ideologicamente uma mudança histórica: constituir-se como alternativa de governo ao monopólio da oligarquia rotativa que, do “centrão” à direita populista, tem gerido o país praticamente desde 1976. É o carácter radicalmente transformador deste projecto de renovação à esquerda que fez do BE a principal novidade da vida política doméstica no último decénio do século XX.
E, para falar verdade, é a importância estratégica deste projecto que lhe permitiu, apesar da gravidade do tsunami eleitoral, firmar-se como um partido com cerca de 250 mil votos e um grupo parlamentar de 8 deputados distribuídos pelo Porto, Aveiro, Lisboa, Setúbal e Faro. Os resultados da derrota eleitoral do BE excitaram de tal maneira as cassandras da extinção iminente que nem os souberam ler no que eles, apesar do revés, revelam: um Bloco que, com “causas fracturantes”, sem dúvida, mas muito para além delas, veio para ficar. Que criou a sua base social e política própria e traz consigo a tarefa, sobre todas subversiva, de contribuir para que a Esquerda Grande, popular, plural e socialista, unida em torno de uma plataforma de luta comum, chegue ao poder.
Dito isto, melhor se compreenderá a essencial inanidade das pressões que tentam, mais ou menos explicitamente, transformar o BE seja numa espécie de penduricalho radical de um PS rendido ao FMI (uma reprodução à esquerda da relação apendicular do CDS com o PSD), seja numa segunda versão dos Verdes relativamente ao PCP. Mesmo com o risco de desiludir os apóstolos do juízo final, sempre direi que tais posições não gozam de qualquer apoio significativo nas fileiras do BE. Pela simples razão de que para fazer isso não valeria a pena a aventura do Bloco. O original é sempre mais fiel do que a cópia.